domingo, 28 de fevereiro de 2021

Alma Pátria 69: Alberto Ribeiro, Fado Hilário


 

Alberto Ribeiro não era propriamente um fadista de Coimbra, um estudante dado aos trinados entre o Choupal e a Lapa. Foi um actor de cinema, de teatro de revista, cantor de opereta. Uma personagem muito popular em Portugal nos anos quarenta do século XX e início dos anos cinquenta. Também adaptou fados de Coimbra a uma espécie de fado canção, como este Fado Hilário. A letra diz muito das relações sociais coimbrãs, das relações entre uma elite estudantil e boémia e as tricanas. É também um sintoma claro da cumplicidade da academia não tanto com os valores do conhecimento, mas com a referida boémia. Não é o saber a que se aspira, mas à boa vida, a qual não é, propriamente, uma vida boa. Nesta interpretação, excelente e bem recuperada, Alberto Ribeiro é acompanhado pela Orquestra Ligeira da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro João Nobre.

sábado, 27 de fevereiro de 2021

A Garrafa Vazia 48

Georges Rouault, ¿Quién no se maquilla?, 1930
Parado no semáforo
espero o deslizar
do vermelho
para o pasto verde,
onde ruminarei
sem descanso
a erva do vazio
semeada
no cansaço de mim.

Dezembro de 2020

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Sonhos numa noite de Verão 29

Eliot Elisofon, Marcel Duchamp walking down a flight of stairs in a multiple exposure, 1952
A pergunta não pára de me atormentar: haverá o infinito? Ressoa-me na consciência, surge grafitada nas paredes. Poderosos altifalantes transmitem-na continuamente. Atormentado pela questão, não acabo de me multiplicar. De mim sai um outro eu, e desse um outro exactamente idêntico a mim. Cada novo eu se reproduz, não uma vez, mas num processo sem fim. Anúncios luminosos repetem a pergunta, agora presa ao néon. Os eus são uma multidão e crescem, alinhando-se atrás de mim. Descemos os degraus de uma escada que tem sempre um novo degrau. Alcançado esse, logo se desdobra num outro. Quando acordei, estava só. A casa tinha sido abandonada e de todos os eus apenas um ficara. Este que vos pergunta pela existência do infinito. 

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Beatitudes (40) Tempestades de neve

Ansel Adams, Oaks in Storm, Yosemite Valley, Winter, 1937

Quando se sonha com tempestades de neve, a terra coberta por um algodão branco e as árvores tocadas por uma floração feita de flocos de água e nuvens de frio, o corpo recorda as horas em que, resguardado no lar, se envolve no calor do fogo e no silêncio que abre o coração às longas peregrinações pelo jardim ameno dos dias auspiciosos.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A insânia tribal

Francisco de Goya, Que Locura!

Há qualquer de malsão no ar. Não se trata apenas do famigerado vírus que não pára de se expandir e de se entregar às mais impúdicas metamorfoses. Ele ocupa, é verdade, o primeiro plano, mas sob ele movimentam-se coros de indignados preocupadíssimos com identidades. O que parece entusiasmar as claques é a questão dos brancos e dos pretos ou dos castanhos, dos homo e dos hétero ou dos trans e de não sei mais quantas identidades tribais. É com isto que se perde tempo e se incendeiam as redes sociais.

Em vez de se cuidar da democracia liberal, aquele regime em que todos são iguais perante a lei, em que esta governa os próprios governantes, onde estes podem ser despedidos por vontade popular, em que cada um pode dizer o que lhe apetecer e fazer o que bem entender da sua vida, entusiasmamo-nos com aquilo que abre o caminho para a desigualdade perante a lei, para os regimes onde os governantes estão acima dela e governam enquanto lhes apetecer, em que a palavra pode ser censurada e os comportamentos privados significativamente controlados.

Tudo isto em nome de identidades ficcionais, de grupos maioritários e minoritários que se pensam como tribos arcaicas. Tudo isto acompanhado por uma grande gritaria, como se cada grupo achasse que possui os monopólios da verdade e da dor e como tal tem uma legitimidade acrescida para vituperar a tribo inimiga. Tudo isto fundado num profundo desprezo pela singularidade de cada pessoa e pela natureza individual das acções – boas ou más – cometidas. Insânia, dir-se-á, embora a palavra possa não ter a força suficiente para dar sentido à tragédia que pode estar a fermentar neste caldo cultural. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Simulacros e simulações (14)

Eugène Atget, Avenue des Gobelins, 1925
Manequins são emanações de um país cujo dialecto desconhecemos. Imitam os homens para por eles seres imitados, mas nunca os olham dentro dos olhos. Ensimesmados, julgam-se a verdadeira humanidade. Enfrentam a indiscrição e nunca se entregam a confidências. Não choram, não riem, não os atinge a culpa silenciosa do sentimento.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

A Garrafa Vazia 47

Oskar Kokoschka, Cavaleiro errante, 1915
Tivesse eu o talento
e o tempo,
e de Aquiles, a ira,
e de Orlando, a fúria,
haveria de cantar.

Saiu-me por arte
a falta de engenho
e cheguei tão tarde
que outros
antes as cantaram.

Para herói de alfurja
chego-me eu.
Pego na garrafa vazia
e estremeço
encardido de carvão.

Dezembro de 2020

domingo, 21 de fevereiro de 2021

Nocturnos 52

Eugène Carrière, Place Clichy, Nuit, 1899-1900

Contra a noite luminosa ergue-se uma outra feita de sombras e figuras sem contorno, puros esboços movidos pelo combustível da cegueira. Um grito, uma palavra resignada, o restolhar de répteis pelo chão. Alguém fechas as pálpebras e caminha sonâmbulo pela praça da escuridão.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Perfis 15. O varredor de ruas

Wolf Suschitzky, Street Cleaner, Westminster, London,1937
Não têm fim as folhas mortas, pensa o varredor. O vento é o pior, diz sem emoção, esquecido do tempo em que havia sentimentos a borbulhar na sua consciência. Ele varre, junta as folhas em pequenos montes, com a pá deposita-as no carro, mas logo, como Sísifo, terá de recomeçar a tarefa, pois o arvoredo não se cansa de deixar cair as folhas exaustas para dentro do Inverno. Um dia sonhou com o seu lugar no mundo, imaginou-se rei, homem rico, como aqueles que por vezes via nos jornais velhos, amarfanhados pelos cantos da rua. Abria-os e olhava ávido as fotografias. Talvez os seus sonhos fossem mais modestos e, como muitos rapazes, se visse como polícia a perseguir os malvados do mundo, ou, então, como bombeiro a salvar uma bela rapariga das chamas, com quem haveria de casar. Porventura nem isso, pois até no mundo onírico a desigualdade impera. Nem toda a gente sonha com as mesmas coisas, nem da mesma maneira. O varredor não terá sonhado o suficiente e a vida colocou-o agarrado ao carro onde deposita as folhas secas caídas pelos passeios, que outros precisam de pisar sem o temor de escorregar nalguma folha morta. Sob a capa da névoa há mais folhas caídas à sua espera, e essa é a única certeza que tem. Varre-as, amontoa-as, empurra-as para a pá e deposita-as, sem acrimónia nem lassidão, no carro que há-de ficar cheio. O corpo inclinado, o olhar dirigido para o chão, a vida vergada ao destino. Empurra o carro, mas não olha em frente, pois tudo o que o rodeia está coberto pelo nevoeiro. Também a sua vida está recoberta de uma névoa densa. O passado engolido num desvão da memória, o futuro preso ao carro que empurra e onde deposita, sem descuido, as folhas mortas em que se transformou a sua vida.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A pandemia, o Estado e os portugueses

Se se observar o comportamento dos portugueses perante a pandemia, talvez seja possível ter um vislumbre daquilo que somos e de como gostamos de ser governados. Obviamente que não nos comportamos todas da mesma forma e não gostamos todos de ser governados da mesma maneira. No entanto, pode-se argumentar que temos mais inclinação para certas coisas do que para outras. Tanto no primeiro confinamento como no actual, o comportamento dos portugueses tem sido exemplar e os resultados são óptimos na contenção do perigo. Quando, porém, os portugueses ficaram entregues à sua responsabilidade, quando o enfrentamento da pandemia dependeu da autonomia de cada um, os resultados foram catastróficos. Portugal passou de um caso exemplar para a situação de país, proporcionalmente, com mais contágios em todo o mundo.

Quando é que as decisões políticas foram eficazes? Quando foram drásticas e impostas pela força. Isso aconteceu no primeiro confinamento e está a acontecer no actual. Quando é que as decisões políticas foram ineficazes? Quando se entendeu confiar no comportamento razoável dos portugueses, em vez de se exercer uma autoridade muito clara. A catástrofe do mês de Janeiro deveu-se a uma errada interpretação política – a começar no governo e no Presidente da República – do comportamento de parte significativa dos portugueses, o que conduziu a consequências terríveis. Confiar que parte dos cidadãos iria comportar-se racionalmente no Natal, sem que houvesse qualquer proibição e ameaça, foi um acto de grande irresponsabilidade política tanto do governo como do Presidente da República, bem como dos partidos representados na Assembleia.

O que diz isto sobre os portugueses, ou parte significativa deles? Diz que estão muito dependentes da autoridade do Estado. Diz que gostam pouco da autonomia individual, quando esta implica responsabilidade pessoal. Quando a autoridade do Estado se exerce de forma clara e ameaçadora, os portugueses obedecem. Quando o Estado apela a comportamentos racionais dos cidadãos, sem exercer autoridade, parte significativa das pessoas comporta-se de forma perigosa e irracional. Este é um problema estrutural na nossa sociedade, a ausência de um comportamento liberal. Um comportamento liberal significa aqui que os indivíduos agem razoavelmente sem necessitarem da ameaça do Estado. Usam a sua liberdade para se conter e evitar situações perigosas. Enquanto parte dos portugueses dispensar este comportamento liberal, o Estado será um pai – ora benevolente, ora ríspido – que lhe ditará como se deve comportar. 

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Descrições fenomenológicas 64. Paisagem de silêncio

Robert Ryman, Regis, 1977

Imóveis, as águas do rio repousam da sua caminhada para a foz. Esquecem a nascente e o caminho que fizeram. Retemperam as forças para o que falta. Da sua imobilidade nascem reflexos de nove ciprestes que se erguem na margem. Um terá secado. Uma ilusão, leva o espectador a pensar na existência de um duplo renque daquelas árvores, o que se alteia em direcção aos céus e o outro que se abisma nas águas em direcção ao centro da terra. Estranha linha divisória, habitada por segredos que ninguém desvenda. O horizonte está coberto por uma névoa de onde nasce uma luz cansada pela esforço de romper o véu. Não se vêem animais, nem homens, apenas a paisagem despida na sua geometria, o encanto das águas pousadas sobre a quietude da terra, os ciprestes alinhados como uma coluna militar, o céu perdido numa mancha sonâmbula de cinza. Sobre tudo isto cai o silêncio e o visitante hesita em entrar nesse mundo, não vá acordar os elementos, raptá-los do sossego em que adormeceram e entregá-los à mácula do alvoroço. Do céu cai uma gota de água, depois outra e outra, no rio nascem círculos concêntricos, que ondulam até se pacificarem e fundirem no magma líquido, restabelecendo-se a ordem primitiva. De súbito, um pássaro poisa no cipreste morto. Canta. Um barco movido a remos sulca a água. O barqueiro move os braços e as pernas, enquanto a pequena embarcação desliza, o murmúrio das águas se fecha sobre si mesmo e a paz se restabelece no momento em que o pássaro levanta voo e o visitante desaparece tragado pela neblina.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A Garrafa Vazia 46

Edvard Munch, Melancolia, 1894-5
Trôpego, caminho
aos tropeções.
Os pés enrolam-se
na corda de sebo
em que a vida
se prende.

O corpo inclina-se
para a maré
vazia,
e dos lábios caem
sílabas,
se a saliva escorre
pelos cantos da boca.

Dezembro de 2020

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Simulacros e simulações (13)

Ralph Gibson, Tabletop still life, 1974
A mesa sem ninguém, um prato e um copo, a toalha de papel levantada num canto. Tudo isso é uma metáfora astuciosa onde se esconde a alusão da fome que ali se há-de descobrir e saciar. Antes da fome ser fome, ela é a simulação de uma necessidade, e nesta encontra o caminho que a fará sentar naquela mesa, diante da tristeza que inunda aquele prato e aquele copo.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Nocturnos 51

Bill Brandt, The Adelphi, 1939
Essa estranha noite onde sibilas extasiadas profetizam as dores do mundo abre-se ao indiscreto olhar da Lua. O pálido clarão semeia sombras e nelas escondem-se os fantasmas que dormem na caverna do coração dos homens.

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Beatitudes (39) Utopia à beira-mar

António Carneiro, Praia da Figueira da Foz, 1921

Esse tempo em que as praias se regiam ainda por um princípio de justa distância seria propício para nelas ver um lugar de beatitude. Uma visão de um mundo utópico no qual os homens não tivessem de obedecer aos ditames da estrita necessidade e pudessem entregar-se ao devaneio luminoso do Sol, escutando o murmúrio musical do mar.

sábado, 13 de fevereiro de 2021

Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty

Publicado em 1970, o romance A angústia do guarda-redes antes do penalty é uma das obras mais conhecidas do escritor austríaco Peter Handke, Nobel da literatura em 2019. O leitor de imediato sente a possibilidade de carrear alguns pontos genealógicos que se configuram elos de uma corrente que levam ao romance de Handke. Kafka e Ungar, Broch e Musil, mas ainda Camus, de O Estrangeiro, ou Sartre, de A Náusea. A obra faz parte de uma paisagem pesada que parte da literatura europeia foi construindo, num jogo de espelhos, com a realidade dessa Europa que, no século XX, orgulhosa da sua civilização material, não teve a contenção necessária para evitar duas guerras mundiais e um número desmedido de patifarias. Uma paisagem devastada de homens sem qualidades. A ausência de qualidades é também a ausência de qualificativos. Os homens são substâncias nas quais a essência se despiu dos acidentes, para falar à maneira de Aristóteles.

Assim como, na Metamorfose, de Kafka, Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda uma manhã transformado num insecto gigante, também é subitamente que Joseph Bloch, um mecânico, se vê despedido da empresa onde trabalha. Não é claro, todavia, se ele foi efectivamente despedido ou se julgou tê-lo sido. Esse é, na narrativa, o primeiro sinal de uma desvinculação ontológica entre o sujeito e a realidade social, na qual se inclui a sua própria realidade de ser social. A referência à doutrina de Aristóteles pode não ser despropositada. Desvincular-se dos acidentes – das qualidades que não constituem o cerne da identidade – deixa os homens reduzidos à sua essência, mas estranhamente a perda do acidental produz uma profunda alienação, em vez de glorificar aquilo que é. O que conduziu Bloch a esse estado não se sabe. Duas qualidades acidentais são referidas, mas ele, no tempo da narrativa, já as perdeu. A de ser um mecânico e, também, a de ter sido um guarda-redes conhecido de uma equipa de futebol, também ela conhecida. Durante a narrativa, contudo, ele já está despido dessas qualidades. Perdido o emprego, Bloch entregou-se à pura errância, a deambular por Viena, primeiro, e depois numa outra cidade, na fronteira sul do país.

Desqualificação e errância são sintomas do estranhamento, da alienação. Um descomprometimento emerge na atitude do antigo guarda-redes. Descompromisso com os lugares, as pessoas, com os próprios actos, sentimentos e situação existencial. Nessa errância, comete um homicídio. Não porque tivesse motivo algum para o cometer. Aconteceu estrangular uma rapariga que trabalhava na bilheteira de um cinema, com quem tinha ido para a cama. No seu acto não houve qualquer finalidade ou motivo. Dir-se-ia que não foi uma acção, mas um mero acontecimento, idêntico a uma avalanche ou a um raio. Esse evento não teve qualquer ressonância interior. Reduzido à sua pura essência, Joseph Bloch não apenas perdeu os acidentes como não o move qualquer objectivo. É isto que transforma os seus actos em puros processos naturais. O estranhamento do mundo social, dos jogos de linguagem e das convenções rituais conduz à pura naturalização do indivíduo.

A própria personagem, por vezes, chega a uma consciência próxima do seu estado. Quando suspeita que certos jogos de linguagem – frases ou conversas – não são sérios, não passarão de uma brincadeira. O mesmo se passa com certos acontecimentos ocorridos nas interacções sociais. Esta desconfiança para com a seriedade da vida social ou da linguagem é um sinal da desvinculação com todo o mundo ritualizado da cultura humana, com os seus jogos linguísticos e representações sociais. Nada daquilo pode ser sério. A autenticidade de um ser puramente natural está aquém do jogo e da representação teatral. Como se sabe, jogo e representação são elementos estruturantes da vida em sociedade, fundamentos do que se convencionou chamar cultura. Joseph Bloch não transcende o social e o cultural na imersão mística no mundo do espírito, mas retorna ao estado de natureza. O romance pode ser lido como uma experiência mental ou, melhor, um ensaio sobre o que seria um homem que decaísse do estado social para o estado natural. O estado natural não é um lugar de emancipação, mas de degradação. Toda a queda se inscreve num movimento de degradação, e a história de Joseph Bloch é também a história de uma queda.

Cair na natureza é também cair fora da história. Isso explica – talvez mais do que o suposto experimentalismo do autor – o tipo de narrativa escolhido por Handke. Sem intriga e sem desenlace. Por exemplo, o leitor percebe que a polícia começa a aproximar-se do assassino da rapariga da bilheteira, mas isso não tem qualquer impacto no romance nem no destino de Bloch. Na natureza não há acções e não há história, apenas acontecimentos. A narrativa tenta ser uma descrição exaustiva de acontecimentos, mesmo que estes tenham aparência de acções humanas. Isto conduz ao papel do narrador. Se há um romance em que se sente a presença obsessiva do narrador é neste. Narrado na terceira pessoa, A angústia do guarda-redes antes do penalty é um exercício literário de registo minucioso de ocorrências, como se o narrador omnisciente redefinisse a natureza dessa omnisciência. Ele é omnisciente não porque sabe o desenrolar e o desenlace da história que está a contar, mas porque regista de forma hiperbólica a factualidade. No universo narrado – um universo natural e não um mundo humano – não há uma história para contar, mas factos para registar, numa espécie de relatório descritivo de um narrador obsessivo com a exactidão do que acontece.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

A Garrafa Vazia 45

Amadeo de Souza-Cardoso, título desconhecido, 1913
O vinho avinagrou
na vertigem
da garrafa esquecida.

A gangrena cresce
por dentro
dos gânglios da vida.

Bebo o vinagre
na esponja
da necrose que sou.

Dezembro de 2020

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Nocturnos 50

Berenice Abbott, Multiple Exposure of Swinging Ball, 1958–61

O gotejar da luz irrompe pelas trevas da noite eterna. Como as contas de um colar, as gotas de luz rodopiam em torno de um centro, e na velocidade que as move há uma ameaça de escuridão e a súbita promessa de um relâmpago.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Sonhos numa noite de Verão 28

Berenice Abbott, Portrait of the Artist as a Young Woman, c. 1930 (negative) c. 1950 (distortion)
Não sei se o que vou contar foi um sonho ou se, na realidade, o vivi. Não interessa. A sua perfeição cegava-me. Cortejei-a, não me rejeitou. Os dias passaram e ela cresceu em beleza dentro dos meus olhos. Eu, aos dela, seria uma encarnação do príncipe encantado, presumi. As coisas, como seria de esperar, precipitaram-se e não tardou que a Igreja se abrisse para o nosso casamento. No momento em que o padre me perguntou se a aceitava, olhei-a e senti uma vertigem. Não havia simetria no rosto e os olhos deambulavam perdidos, como se não tivessem lugar fixo. Era uma encarnação diabólica, pensei e fugi. Fui capturado e a minha família internou-me, mas não sei se sonhei tudo isto ou se fui construindo a história nos anos que levo neste hospício. 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Perfis 14. A rapariga do girassol

Édouard Boubat, Tournesol, 1985
Não tem rosto a rapariga do girassol. Perdida na seara, esconde o que é na máscara vegetal com que se deixa fotografar. Não é outra coisa senão a sua fotografia, um ser puro que veio à existência para ser fotografado e exposto no altar do mundo, por onde passam fiéis e perguntam quem é a rapariga do girassol. Há os que passam indiferentes, há os que contemplam e se entregam à cobiça dos seios, ao desejo de mergulhar na seara e de descobrir uma sereia perdida entre o cereal. A sombra do girassol projecta-se no ombro, mas quem olha não vê a sombra, nem pensa no que pensará a rapariga, tão exposta e tão escondida, tão tocada pelo pudor, que se poderia pensar numa inocência virginal. Há quem a imagine reencarnação de uma deusa. Há quem conjecture sobre a beleza que a flor oculta, há quem esteja certo da feiura que assim se esconde, há quem deseje desfolhar o girassol, mas a rapariga permanece serena na sua pose, impávida perante o desejo, como se tivesse vindo ao mundo para cultivar a placidez da eternidade, enquanto quem a olha se entrega à perturbação que a tranquilidade provoca. No girassol há a promessa de um rosto, um esboço que os olhares procuram retirar da obscuridade onde se vela, para lhe dar vida e fazê-lo habitar na alegria do olhar que o visse. Ela não pensa nos olhares que a querem, não pensa em quem passa, em quem se ajoelha e lhe dirige uma promessa, em quem lhe contempla os seios ou se põe a adivinhar a nudez. Ela é simples e pura como um girassol e como este não tem pensamentos nem desejos, não sofre de paixões. É tão simples e tão leve que o Sol a arrasta na carruagem do dia e leva-a para a gruta da noite. Também ele a olha e se deixa levar pelo desejo insensato de iluminar o rosto que assim se vela.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Simulacros e simulações (12)

Nina Leen, Margaret Severn - Mask dances
O rosto é apenas o simulacro de cada máscara que usa para, no espaço público, desempenhar o papel que se impôs. Ao mudar de máscara, nasce uma nova simulação, mas o que está sob ela não deixa de ser o simulacro que é. Toda a máscara é apenas a máscara de uma outra máscara.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

A Garrafa Vazia 44

Gerardo Rueda, Campanar, 1963
Retalho com vagar
o vácuo de sombra
posto em mim.
Deixo cair fatias
de nada
para a poeira
do soalho
e soletro na cólera
da tarde
pragas de ocasião.

Dezembro de 2020

sábado, 6 de fevereiro de 2021

Nocturnos 49

Georgia O'keeffe, City Night, 1926
A noite desce como um harmónio sobre a cidade, traça geometrias de pedra e betão, onde o silêncio cresce para que os homens adormeçam dentro dos seus sonhos. Depois, ao levantar do pano, a Lua paira sobre o palco e deixa ver tudo o que de nocturno se esconde no ventre da noite.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

O estranho caso das vacinas

O estranho caso das vacinas não reside no facto de ter havido usos oportunistas e desenquadrados do planeamento das autoridades. Isso faz parte de uma cultura inscrita no tecido social e a que se dá o título de chico-espertismo. O chico-espertismo é a busca, através de um expediente imoral e/ou ilegal, de uma vantagem pessoal em detrimento do cumprimento de regras universais e imparciais. Na verdade, existe uma grande condescendência para com esse tipo de atitude. Essa condescendência chega a ser laudatória no ditado popular que sublinha que quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é burro ou não tem arte. A indignação perante o acontecimento é que causa estranheza. 

Se se observar o tecido social, as instituições públicas, políticas e administrativas, até as empresas privadas, encontramos o chico-espertismo como o elemento ideológico que se sobrepõe até às clivagens políticas. A cunha, o pedido, a busca de uma excepção, a existência de regras universais e imparciais só para inglês ver, tudo isso domina as relações comunitárias. Não se pense que o chico-espertismo é um problema da democracia. O salazarismo era totalmente dominado pelo chico-espertismo. A palavrinha que se dava ao senhor prior para um emprego, o favor que se pedia aos influentes no regime, etc. Toda a estrutura política, social e económica do país estava penetrada por esta cultura, que é uma cultura de corrupção. Manda a verdade dizer que não foi uma criação do ditador de Santa Comba. Ele apenas cavalgou a onda e fomentou-a para solidificar o seu poder. Já era assim na primeira República, que herdou o vício do liberalismo monárquico, o qual o herdara da monarquia absoluta.

Se a indignação com o caso das vacinas for um sintoma de que as pessoas estão cada vez menos predispostas a aceitar essa corrupção moral, em que o chico-esperto é um herói louvado, então talvez estejamos no caminho de nos tornarmos uma nação com uma cultura cívica decente. Será possível pensar que os portugueses estarão cada vez menos predispostos a aceitar os truques que enxameiam a vida pública. Será também a altura de os partidos políticos reformarem as suas práticas de chico-espertismo, onde abundam o nepotismo, o favorecimento pessoal, o interesse particular, etc., etc., etc. O pior, porém, é se estas reacções se devem apenas a que se ficou de fora da tramóia e que é um outro que, com mais arte, melhor parte e reparte. Estaremos num ponto de viragem da nossa cultura comunitária?

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Afonso Cruz, Flores

O romance de Afonso Cruz, Flores, foi publicado em 2015 e obteve o Prémio Fernando Namora em 2016. O autor, com vasta bibliografia e múltiplos interesses, é um dos mais importantes da geração que está na casa dos cinquenta anos. A obra, uma narrativa na primeira pessoa, lida com o problema da identidade, a do vizinho do narrador e, de forma especular, com a do próprio narrador, um jornalista. O trabalho sobre estas duas identidades segue, todavia, processos diferenciados. A do vizinho do narrador é procurada através de um inquérito que combina as técnicas do jornalismo e as da investigação de detective privado. A busca da própria identidade obedece ao monólogo interior ou, para ser mais exacto, ao diálogo consigo mesmo, desdobrando-se o jornalista em duas pessoas, nem sempre as mesmas, que dialogam entre si. 

Casado com Clarisse e pai de Beatriz, o jornalista leva uma vida autocentrada, um exercício pouco discreto de narcisismo, ao mesmo tempo que assiste à morte do casamento. Uma morte porque, com o tempo, a relação perdeu a excitação do primeiro beijo. Entregava-se, para compensar o baixo nível de adrenalina matrimonial, a umas infidelidades, mais ou menos ocasionais com uma colega. Ao mesmo tempo acabou por se interessar por um vizinho, Manuel Ulme. Uma personagem aparentemente deslocada daquele meio. Ulme é um homem de idade. A certa altura confessa que nunca viu uma mulher nua. Questionado sobre a situação, diz que se viu não se lembra. Sofrera um aneurisma e o passado apagara-se. Perdera parte significativa da memória, a que estava relacionada com a identidade e com o que fizera e lhe acontecera durante a vida. Isso, porém, não impedia de ser efectivamente um self estruturado em torno de um conjunto de atitudes e crenças, com as suas idiossincrasias e apreciações do mundo e, fundamentalmente, da maldade do mundo. 

O romance introduz na realidade uma ambiguidade fundamental em relação ao peso do passado e da memória relativamente ao que se é no presente. Manuel Ulme não necessitava do seu passado para ser aquilo que é no presente. Essa ausência pode assombrá-lo, mas não é uma condição necessária para conduzir razoavelmente a sua existência na nova condição. Dito de outra maneira, o romance parece, ainda que de forma não totalmente clara, abrir um rasgão na sutura que une memória e identidade. A narrativa é atravessada pela repetição, como se fora um mantra, de uma frase enigmática pelo senhor Ulme: Entremos mais dentro da espessura! Uma leitura imediata poderá compreendê-la como a formulação de um desejo de penetrar na névoa em que se tinha tornado o passado. No entanto, não é claro que o seja, pois a frase é um verso de S. João da Cruz. A espessura em que Manuel Ulme deseja entrar pode muito bem ser a autêntica realidade, que ele tenha adquirido a consciência de que o que se chama o real não passe de uma aparência. 

Na reconstituição do passado do vizinho, o jornalista, a partir do que encontra na casa daquele, consegue chegar à aldeia alentejana onde ele nasceu, descobre que vinha de uma família rica e reconstrói a sua teia de relações sociais, de amizade e familiares. A identidade que é assim reconstruída é sempre uma identidade perspectivística e exterior ao self de Manuel Ulme. Entre louvores e censuras, o jornalista reconstitui a vida do vizinho, construindo uma imagem contraditória, ao mesmo tempo que perpassa por um conjunto de cenários do Portugal anterior ao 25 de Abril e, também, do que veio depois. No trabalho de investigação, descobre-se uma linha de continuidade entre o antes e o depois do aneurisma, a preocupação com o mal do mundo, com o facto de este ser palco de um teatro onde a canalhice e a maldade humanas são sempre as principais protagonistas. Na fase desmemoriada da existência, Manuel Ulme colecciona notícias de jornais onde se relatam as perversões do homem. Descobre-se, porém, que já antes o fazia e até com o papel acumulado tinha construído um gigantesco golem – um ser artificial ligado à tradição mística do judaísmo, que pode ser trazido à vida – talvez com a esperança de que este fizesse aquilo que nem os homens nem Deus fazem, dissuadir os homens do mal. Estava escondido num armazém da aldeia, cuja chave Manuel Ulme trazia sempre ao pescoço, embora não soubesse para que servia ela. Era a chave da continuidade entre o antes e o depois da doença. 

Este trabalho de investigação com as suas descobertas são o contraponto das descobertas que o próprio jornalista faz de si e da sua vida. O exercício fundamental de autodescoberta passa-se na casa de banho no diálogo com o espelho. Fala consigo mesmo, embora se desdobre em dois. O que está em jogo, nessas conversas, não é apenas um passado real, mas também um presente e um futuro desejados. Vê-se como um herói, imagina-se outro de si mesmo, em versão magnificada. Isso, todavia, é contraposto com decomposição da sua vida conjugal e da sua vida amorosa em geral. Se Manuel Ulme tinha uma obsessão pelas malfeitorias da humanidade, ele tinha-a pela ordem. Percebeu que alguma coisa ia mal quando a mulher não arrumou um dos seus chapéus no lugar, deixando-o ficar em cima de uma cama, sabendo que ele não suportava essa pequena desordem. Este pequeno esquecimento era o sinal de que o casamento se desfizera, a excitação há muito dera lugar à morte do desejo. A saída de casa da mulher e da filha é, na verdade, o desmentido do seu narcisismo, dessa imagem superlativa que, diante do espelho, construía de si mesmo. Uma identidade falhada, um self sem consistência, sem elevação. A fractura da memória de Manuel Ulme pode não ser decisiva para a existência de um self consistente. A existência de uma continuidade mnemónica de si está longe de ser uma garantia de uma identidade sólida e capaz de lidar com a realidade.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

A novidade eleitoral


As eleições para a Presidência da República teriam sido banais não fora a votação do candidato André Ventura (AV). Ela representa a emergência em força da extrema-direita e a aceitação por uma parte dos portugueses de uma linguagem política pouco civilizadas. Representa ainda, depois das reportagens da SIC sobre o partido de AV, a aceitação de tudo aquilo que seria severamente reprovado caso existisse nos outros partidos. Significa também o acolhimento de um programa político em que muitos dos votantes no candidato seriam vítimas das suas políticas. Constata-se a existência de uma predisposição forte para a contestação do regime democrático. Em tudo isto existem más razões e problemas sérios.

Comecemos pelas más razões. Na votação de AV estarão votos de quem odeia a democracia, de adeptos de regimes fascistas e nazis. Haverá votos de saudosistas do Estado Novo, ou seus descendentes, gente que nunca se conformou com a democracia. Haverá ainda votos de pessoas ressentidas com a vida, com o seu falhanço pessoal, o qual é atribuído aos políticos e encontram em Ventura o redentor – ou o vingador – de vidas falhadas. Também não é de descartar a atracção, em eleitores masculinos mais novos, pelo discurso violento, pelo prazer da humilhação dos outros. A violência é coisa que fascina. Haverá de tudo isto, mas não será suficiente para explicar quase meio milhão de votos. É preciso lembrar que, como alguém disse, os populismos são respostas erradas a problemas reais.

Quatro questões poderão ajudar a explicar o resto, embora não o esgotem. A interioridade – e o abandono sentido aí – pode ser uma das explicações. Em todos os distritos do interior, AV tem votações acima de 13%. Um segundo motivo, estará nas zonas de contacto e fricção interétnica – essas espalham-se pelo interior e pelo litoral – onde os eleitores sentirão pouco a presença do Estado e vivem em tensão com comportamentos que não reconhecem como adequados. Um terceiro motivo prende-se ao desprestígio que atinge as elites políticas. Umas vezes, por culpa das próprias – casos de corrupção, de nepotismo, de privilégio, de ausência de um comportamento frugal tipo nórdico –, e outras por campanhas sujas que exploram o ressentimento irracional com as elites. Uma quarta razão, prender-se-á com a existência de novas gerações altamente qualificadas, mas sem emprego ou com um emprego não compatível com a formação. Se se preza a democracia liberal, o melhor será não fingir que os problemas não existem, que a votação de AV caiu dos céus ou veio do inferno.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2021

A Garrafa Vazia 43

Hugo Canoilas, The landscape of Burma, 2016
Bem se podia amordaçar
quem na praça pública
rasga as vestes,
em movimento
moderado
se deita por terra
e da boca deixa sair
em vórtice de veneno
a angústia tecida
no tear da simulação.

Dezembro de 2020

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Simulacros e simulações (11)

André Kertész, Luxembourg Gardens, Paris, 1925

Como preparar uma criança para a vida? Simulando esta num cavalo em pleno galope. Há que segurar as rédeas e conduzi-la a grande velocidade. O principal é não cair e evitar os coices furiosos de um animal descontrolado.