Alberto Ribeiro não era propriamente um fadista de Coimbra, um estudante dado aos trinados entre o Choupal e a Lapa. Foi um actor de cinema, de teatro de revista, cantor de opereta. Uma personagem muito popular em Portugal nos anos quarenta do século XX e início dos anos cinquenta. Também adaptou fados de Coimbra a uma espécie de fado canção, como este Fado Hilário. A letra diz muito das relações sociais coimbrãs, das relações entre uma elite estudantil e boémia e as tricanas. É também um sintoma claro da cumplicidade da academia não tanto com os valores do conhecimento, mas com a referida boémia. Não é o saber a que se aspira, mas à boa vida, a qual não é, propriamente, uma vida boa. Nesta interpretação, excelente e bem recuperada, Alberto Ribeiro é acompanhado pela Orquestra Ligeira da Emissora Nacional, dirigida pelo maestro João Nobre.
domingo, 28 de fevereiro de 2021
sábado, 27 de fevereiro de 2021
A Garrafa Vazia 48
sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021
Sonhos numa noite de Verão 29
Eliot Elisofon, Marcel Duchamp walking down a flight of stairs in a multiple exposure, 1952 |
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
Beatitudes (40) Tempestades de neve
Ansel Adams, Oaks in Storm, Yosemite Valley, Winter, 1937 |
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
A insânia tribal
Francisco de Goya, Que Locura! |
Em vez de se cuidar da democracia liberal, aquele regime em que todos são iguais perante a lei, em que esta governa os próprios governantes, onde estes podem ser despedidos por vontade popular, em que cada um pode dizer o que lhe apetecer e fazer o que bem entender da sua vida, entusiasmamo-nos com aquilo que abre o caminho para a desigualdade perante a lei, para os regimes onde os governantes estão acima dela e governam enquanto lhes apetecer, em que a palavra pode ser censurada e os comportamentos privados significativamente controlados.
Tudo isto em nome de identidades ficcionais, de grupos maioritários e minoritários que se pensam como tribos arcaicas. Tudo isto acompanhado por uma grande gritaria, como se cada grupo achasse que possui os monopólios da verdade e da dor e como tal tem uma legitimidade acrescida para vituperar a tribo inimiga. Tudo isto fundado num profundo desprezo pela singularidade de cada pessoa e pela natureza individual das acções – boas ou más – cometidas. Insânia, dir-se-á, embora a palavra possa não ter a força suficiente para dar sentido à tragédia que pode estar a fermentar neste caldo cultural.
terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
Simulacros e simulações (14)
Eugène Atget, Avenue des Gobelins, 1925 |
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021
A Garrafa Vazia 47
Oskar Kokoschka, Cavaleiro errante, 1915 |
domingo, 21 de fevereiro de 2021
Nocturnos 52
Eugène Carrière, Place Clichy, Nuit, 1899-1900 |
sábado, 20 de fevereiro de 2021
Perfis 15. O varredor de ruas
Wolf Suschitzky, Street Cleaner, Westminster, London,1937 |
sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021
A pandemia, o Estado e os portugueses
Se se observar o comportamento dos portugueses perante a
pandemia, talvez seja possível ter um vislumbre daquilo que somos e de como
gostamos de ser governados. Obviamente que não nos comportamos todas da mesma forma
e não gostamos todos de ser governados da mesma maneira. No entanto, pode-se
argumentar que temos mais inclinação para certas coisas do que para outras.
Tanto no primeiro confinamento como no actual, o comportamento dos portugueses
tem sido exemplar e os resultados são óptimos na contenção do perigo. Quando,
porém, os portugueses ficaram entregues à sua responsabilidade, quando o
enfrentamento da pandemia dependeu da autonomia de cada um, os resultados foram
catastróficos. Portugal passou de um caso exemplar para a situação de país,
proporcionalmente, com mais contágios em todo o mundo.
Quando é que as decisões políticas foram eficazes? Quando foram drásticas e impostas pela força. Isso aconteceu no primeiro confinamento e está a acontecer no actual. Quando é que as decisões políticas foram ineficazes? Quando se entendeu confiar no comportamento razoável dos portugueses, em vez de se exercer uma autoridade muito clara. A catástrofe do mês de Janeiro deveu-se a uma errada interpretação política – a começar no governo e no Presidente da República – do comportamento de parte significativa dos portugueses, o que conduziu a consequências terríveis. Confiar que parte dos cidadãos iria comportar-se racionalmente no Natal, sem que houvesse qualquer proibição e ameaça, foi um acto de grande irresponsabilidade política tanto do governo como do Presidente da República, bem como dos partidos representados na Assembleia.
O que diz isto sobre os portugueses, ou parte significativa deles? Diz que estão muito dependentes da autoridade do Estado. Diz que gostam pouco da autonomia individual, quando esta implica responsabilidade pessoal. Quando a autoridade do Estado se exerce de forma clara e ameaçadora, os portugueses obedecem. Quando o Estado apela a comportamentos racionais dos cidadãos, sem exercer autoridade, parte significativa das pessoas comporta-se de forma perigosa e irracional. Este é um problema estrutural na nossa sociedade, a ausência de um comportamento liberal. Um comportamento liberal significa aqui que os indivíduos agem razoavelmente sem necessitarem da ameaça do Estado. Usam a sua liberdade para se conter e evitar situações perigosas. Enquanto parte dos portugueses dispensar este comportamento liberal, o Estado será um pai – ora benevolente, ora ríspido – que lhe ditará como se deve comportar.
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021
Descrições fenomenológicas 64. Paisagem de silêncio
Robert Ryman, Regis, 1977 |
Imóveis, as
águas do rio repousam da sua caminhada para a foz. Esquecem a nascente e o
caminho que fizeram. Retemperam as forças para o que falta. Da sua imobilidade
nascem reflexos de nove ciprestes que se erguem na margem. Um terá secado. Uma
ilusão, leva o espectador a pensar na existência de um duplo renque daquelas
árvores, o que se alteia em direcção aos céus e o outro que se abisma nas águas
em direcção ao centro da terra. Estranha linha divisória, habitada por segredos
que ninguém desvenda. O horizonte está coberto por uma névoa de onde nasce uma
luz cansada pela esforço de romper o véu. Não se vêem animais, nem homens,
apenas a paisagem despida na sua geometria, o encanto das águas pousadas sobre
a quietude da terra, os ciprestes alinhados como uma coluna militar, o céu perdido
numa mancha sonâmbula de cinza. Sobre tudo isto cai o silêncio e o visitante
hesita em entrar nesse mundo, não vá acordar os elementos, raptá-los do sossego
em que adormeceram e entregá-los à mácula do alvoroço. Do céu cai uma gota de
água, depois outra e outra, no rio nascem círculos concêntricos, que ondulam até
se pacificarem e fundirem no magma líquido, restabelecendo-se a ordem primitiva.
De súbito, um pássaro poisa no cipreste morto. Canta. Um barco movido a remos sulca
a água. O barqueiro move os braços e as pernas, enquanto a pequena embarcação desliza,
o murmúrio das águas se fecha sobre si mesmo e a paz se restabelece no momento
em que o pássaro levanta voo e o visitante desaparece tragado pela neblina.
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021
A Garrafa Vazia 46
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Simulacros e simulações (13)
Ralph Gibson, Tabletop still life, 1974 |
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021
Nocturnos 51
domingo, 14 de fevereiro de 2021
Beatitudes (39) Utopia à beira-mar
António Carneiro, Praia da Figueira da Foz, 1921 |
sábado, 13 de fevereiro de 2021
Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty
Publicado em 1970, o romance A angústia do guarda-redes
antes do penalty é uma das obras mais conhecidas do escritor austríaco
Peter Handke, Nobel da literatura em 2019. O leitor de imediato sente a possibilidade
de carrear alguns pontos genealógicos que se configuram elos de uma corrente
que levam ao romance de Handke. Kafka e Ungar, Broch e Musil, mas ainda Camus,
de O Estrangeiro, ou Sartre, de A Náusea. A obra faz parte de uma
paisagem pesada que parte da literatura europeia foi construindo, num jogo de
espelhos, com a realidade dessa Europa que, no século XX, orgulhosa da sua
civilização material, não teve a contenção necessária para evitar duas guerras
mundiais e um número desmedido de patifarias. Uma paisagem devastada de homens
sem qualidades. A ausência de qualidades é também a ausência de qualificativos.
Os homens são substâncias nas quais a essência se despiu dos acidentes, para
falar à maneira de Aristóteles.
Assim como, na Metamorfose, de Kafka, Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda uma manhã transformado num insecto gigante, também é subitamente que Joseph Bloch, um mecânico, se vê despedido da empresa onde trabalha. Não é claro, todavia, se ele foi efectivamente despedido ou se julgou tê-lo sido. Esse é, na narrativa, o primeiro sinal de uma desvinculação ontológica entre o sujeito e a realidade social, na qual se inclui a sua própria realidade de ser social. A referência à doutrina de Aristóteles pode não ser despropositada. Desvincular-se dos acidentes – das qualidades que não constituem o cerne da identidade – deixa os homens reduzidos à sua essência, mas estranhamente a perda do acidental produz uma profunda alienação, em vez de glorificar aquilo que é. O que conduziu Bloch a esse estado não se sabe. Duas qualidades acidentais são referidas, mas ele, no tempo da narrativa, já as perdeu. A de ser um mecânico e, também, a de ter sido um guarda-redes conhecido de uma equipa de futebol, também ela conhecida. Durante a narrativa, contudo, ele já está despido dessas qualidades. Perdido o emprego, Bloch entregou-se à pura errância, a deambular por Viena, primeiro, e depois numa outra cidade, na fronteira sul do país.
Desqualificação e errância são sintomas do estranhamento, da alienação. Um descomprometimento emerge na atitude do antigo guarda-redes. Descompromisso com os lugares, as pessoas, com os próprios actos, sentimentos e situação existencial. Nessa errância, comete um homicídio. Não porque tivesse motivo algum para o cometer. Aconteceu estrangular uma rapariga que trabalhava na bilheteira de um cinema, com quem tinha ido para a cama. No seu acto não houve qualquer finalidade ou motivo. Dir-se-ia que não foi uma acção, mas um mero acontecimento, idêntico a uma avalanche ou a um raio. Esse evento não teve qualquer ressonância interior. Reduzido à sua pura essência, Joseph Bloch não apenas perdeu os acidentes como não o move qualquer objectivo. É isto que transforma os seus actos em puros processos naturais. O estranhamento do mundo social, dos jogos de linguagem e das convenções rituais conduz à pura naturalização do indivíduo.
A própria personagem, por vezes, chega a uma consciência próxima do seu estado. Quando suspeita que certos jogos de linguagem – frases ou conversas – não são sérios, não passarão de uma brincadeira. O mesmo se passa com certos acontecimentos ocorridos nas interacções sociais. Esta desconfiança para com a seriedade da vida social ou da linguagem é um sinal da desvinculação com todo o mundo ritualizado da cultura humana, com os seus jogos linguísticos e representações sociais. Nada daquilo pode ser sério. A autenticidade de um ser puramente natural está aquém do jogo e da representação teatral. Como se sabe, jogo e representação são elementos estruturantes da vida em sociedade, fundamentos do que se convencionou chamar cultura. Joseph Bloch não transcende o social e o cultural na imersão mística no mundo do espírito, mas retorna ao estado de natureza. O romance pode ser lido como uma experiência mental ou, melhor, um ensaio sobre o que seria um homem que decaísse do estado social para o estado natural. O estado natural não é um lugar de emancipação, mas de degradação. Toda a queda se inscreve num movimento de degradação, e a história de Joseph Bloch é também a história de uma queda.
Cair na natureza é também cair fora da história. Isso explica – talvez mais do que o suposto experimentalismo do autor – o tipo de narrativa escolhido por Handke. Sem intriga e sem desenlace. Por exemplo, o leitor percebe que a polícia começa a aproximar-se do assassino da rapariga da bilheteira, mas isso não tem qualquer impacto no romance nem no destino de Bloch. Na natureza não há acções e não há história, apenas acontecimentos. A narrativa tenta ser uma descrição exaustiva de acontecimentos, mesmo que estes tenham aparência de acções humanas. Isto conduz ao papel do narrador. Se há um romance em que se sente a presença obsessiva do narrador é neste. Narrado na terceira pessoa, A angústia do guarda-redes antes do penalty é um exercício literário de registo minucioso de ocorrências, como se o narrador omnisciente redefinisse a natureza dessa omnisciência. Ele é omnisciente não porque sabe o desenrolar e o desenlace da história que está a contar, mas porque regista de forma hiperbólica a factualidade. No universo narrado – um universo natural e não um mundo humano – não há uma história para contar, mas factos para registar, numa espécie de relatório descritivo de um narrador obsessivo com a exactidão do que acontece.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
A Garrafa Vazia 45
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021
Nocturnos 50
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
Sonhos numa noite de Verão 28
Berenice Abbott, Portrait of the Artist as a Young Woman, c. 1930 (negative) c. 1950 (distortion) |
terça-feira, 9 de fevereiro de 2021
Perfis 14. A rapariga do girassol
Édouard Boubat, Tournesol, 1985 |
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021
Simulacros e simulações (12)
Nina Leen, Margaret Severn - Mask dances |
domingo, 7 de fevereiro de 2021
A Garrafa Vazia 44
sábado, 6 de fevereiro de 2021
Nocturnos 49
Georgia O'keeffe, City Night, 1926 |
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021
O estranho caso das vacinas
O estranho caso das vacinas não reside no facto de ter havido usos oportunistas e desenquadrados do planeamento das autoridades. Isso faz parte de uma cultura inscrita no tecido social e a que se dá o título de chico-espertismo. O chico-espertismo é a busca, através de um expediente imoral e/ou ilegal, de uma vantagem pessoal em detrimento do cumprimento de regras universais e imparciais. Na verdade, existe uma grande condescendência para com esse tipo de atitude. Essa condescendência chega a ser laudatória no ditado popular que sublinha que quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é burro ou não tem arte. A indignação perante o acontecimento é que causa estranheza.
Se se observar o tecido social, as instituições públicas,
políticas e administrativas, até as empresas privadas, encontramos o chico-espertismo
como o elemento ideológico que se sobrepõe até às clivagens políticas. A cunha,
o pedido, a busca de uma excepção, a existência de regras universais e
imparciais só para inglês ver, tudo isso domina as relações comunitárias. Não
se pense que o chico-espertismo é um problema da democracia. O
salazarismo era totalmente dominado pelo chico-espertismo. A palavrinha
que se dava ao senhor prior para um emprego, o favor que se pedia aos
influentes no regime, etc. Toda a estrutura política, social e económica do
país estava penetrada por esta cultura, que é uma cultura de corrupção. Manda a
verdade dizer que não foi uma criação do ditador de Santa Comba. Ele apenas
cavalgou a onda e fomentou-a para solidificar o seu poder. Já era assim na
primeira República, que herdou o vício do liberalismo monárquico, o qual o
herdara da monarquia absoluta.
Se a indignação com o caso das vacinas for um sintoma de que as pessoas estão cada vez menos predispostas a aceitar essa corrupção moral, em que o chico-esperto é um herói louvado, então talvez estejamos no caminho de nos tornarmos uma nação com uma cultura cívica decente. Será possível pensar que os portugueses estarão cada vez menos predispostos a aceitar os truques que enxameiam a vida pública. Será também a altura de os partidos políticos reformarem as suas práticas de chico-espertismo, onde abundam o nepotismo, o favorecimento pessoal, o interesse particular, etc., etc., etc. O pior, porém, é se estas reacções se devem apenas a que se ficou de fora da tramóia e que é um outro que, com mais arte, melhor parte e reparte. Estaremos num ponto de viragem da nossa cultura comunitária?
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
Afonso Cruz, Flores
O romance de Afonso Cruz, Flores, foi publicado em 2015 e obteve o Prémio Fernando Namora em 2016. O autor, com vasta bibliografia e múltiplos interesses, é um dos mais importantes da geração que está na casa dos cinquenta anos. A obra, uma narrativa na primeira pessoa, lida com o problema da identidade, a do vizinho do narrador e, de forma especular, com a do próprio narrador, um jornalista. O trabalho sobre estas duas identidades segue, todavia, processos diferenciados. A do vizinho do narrador é procurada através de um inquérito que combina as técnicas do jornalismo e as da investigação de detective privado. A busca da própria identidade obedece ao monólogo interior ou, para ser mais exacto, ao diálogo consigo mesmo, desdobrando-se o jornalista em duas pessoas, nem sempre as mesmas, que dialogam entre si.
Casado com Clarisse e pai de Beatriz, o jornalista leva uma vida autocentrada, um exercício pouco discreto de narcisismo, ao mesmo tempo que assiste à morte do casamento. Uma morte porque, com o tempo, a relação perdeu a excitação do primeiro beijo. Entregava-se, para compensar o baixo nível de adrenalina matrimonial, a umas infidelidades, mais ou menos ocasionais com uma colega. Ao mesmo tempo acabou por se interessar por um vizinho, Manuel Ulme. Uma personagem aparentemente deslocada daquele meio. Ulme é um homem de idade. A certa altura confessa que nunca viu uma mulher nua. Questionado sobre a situação, diz que se viu não se lembra. Sofrera um aneurisma e o passado apagara-se. Perdera parte significativa da memória, a que estava relacionada com a identidade e com o que fizera e lhe acontecera durante a vida. Isso, porém, não impedia de ser efectivamente um self estruturado em torno de um conjunto de atitudes e crenças, com as suas idiossincrasias e apreciações do mundo e, fundamentalmente, da maldade do mundo.
O romance introduz na realidade uma ambiguidade fundamental em relação ao peso do passado e da memória relativamente ao que se é no presente. Manuel Ulme não necessitava do seu passado para ser aquilo que é no presente. Essa ausência pode assombrá-lo, mas não é uma condição necessária para conduzir razoavelmente a sua existência na nova condição. Dito de outra maneira, o romance parece, ainda que de forma não totalmente clara, abrir um rasgão na sutura que une memória e identidade. A narrativa é atravessada pela repetição, como se fora um mantra, de uma frase enigmática pelo senhor Ulme: Entremos mais dentro da espessura! Uma leitura imediata poderá compreendê-la como a formulação de um desejo de penetrar na névoa em que se tinha tornado o passado. No entanto, não é claro que o seja, pois a frase é um verso de S. João da Cruz. A espessura em que Manuel Ulme deseja entrar pode muito bem ser a autêntica realidade, que ele tenha adquirido a consciência de que o que se chama o real não passe de uma aparência.
Na reconstituição do passado do vizinho, o jornalista, a partir do que encontra na casa daquele, consegue chegar à aldeia alentejana onde ele nasceu, descobre que vinha de uma família rica e reconstrói a sua teia de relações sociais, de amizade e familiares. A identidade que é assim reconstruída é sempre uma identidade perspectivística e exterior ao self de Manuel Ulme. Entre louvores e censuras, o jornalista reconstitui a vida do vizinho, construindo uma imagem contraditória, ao mesmo tempo que perpassa por um conjunto de cenários do Portugal anterior ao 25 de Abril e, também, do que veio depois. No trabalho de investigação, descobre-se uma linha de continuidade entre o antes e o depois do aneurisma, a preocupação com o mal do mundo, com o facto de este ser palco de um teatro onde a canalhice e a maldade humanas são sempre as principais protagonistas. Na fase desmemoriada da existência, Manuel Ulme colecciona notícias de jornais onde se relatam as perversões do homem. Descobre-se, porém, que já antes o fazia e até com o papel acumulado tinha construído um gigantesco golem – um ser artificial ligado à tradição mística do judaísmo, que pode ser trazido à vida – talvez com a esperança de que este fizesse aquilo que nem os homens nem Deus fazem, dissuadir os homens do mal. Estava escondido num armazém da aldeia, cuja chave Manuel Ulme trazia sempre ao pescoço, embora não soubesse para que servia ela. Era a chave da continuidade entre o antes e o depois da doença.
Este trabalho de investigação com as suas descobertas são o contraponto das descobertas que o próprio jornalista faz de si e da sua vida. O exercício fundamental de autodescoberta passa-se na casa de banho no diálogo com o espelho. Fala consigo mesmo, embora se desdobre em dois. O que está em jogo, nessas conversas, não é apenas um passado real, mas também um presente e um futuro desejados. Vê-se como um herói, imagina-se outro de si mesmo, em versão magnificada. Isso, todavia, é contraposto com decomposição da sua vida conjugal e da sua vida amorosa em geral. Se Manuel Ulme tinha uma obsessão pelas malfeitorias da humanidade, ele tinha-a pela ordem. Percebeu que alguma coisa ia mal quando a mulher não arrumou um dos seus chapéus no lugar, deixando-o ficar em cima de uma cama, sabendo que ele não suportava essa pequena desordem. Este pequeno esquecimento era o sinal de que o casamento se desfizera, a excitação há muito dera lugar à morte do desejo. A saída de casa da mulher e da filha é, na verdade, o desmentido do seu narcisismo, dessa imagem superlativa que, diante do espelho, construía de si mesmo. Uma identidade falhada, um self sem consistência, sem elevação. A fractura da memória de Manuel Ulme pode não ser decisiva para a existência de um self consistente. A existência de uma continuidade mnemónica de si está longe de ser uma garantia de uma identidade sólida e capaz de lidar com a realidade.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021
A novidade eleitoral
Comecemos pelas más razões. Na votação de AV estarão votos de quem odeia a democracia, de adeptos de regimes fascistas e nazis. Haverá votos de saudosistas do Estado Novo, ou seus descendentes, gente que nunca se conformou com a democracia. Haverá ainda votos de pessoas ressentidas com a vida, com o seu falhanço pessoal, o qual é atribuído aos políticos e encontram em Ventura o redentor – ou o vingador – de vidas falhadas. Também não é de descartar a atracção, em eleitores masculinos mais novos, pelo discurso violento, pelo prazer da humilhação dos outros. A violência é coisa que fascina. Haverá de tudo isto, mas não será suficiente para explicar quase meio milhão de votos. É preciso lembrar que, como alguém disse, os populismos são respostas erradas a problemas reais.
Quatro questões poderão ajudar a explicar o resto, embora não o esgotem. A interioridade – e o abandono sentido aí – pode ser uma das explicações. Em todos os distritos do interior, AV tem votações acima de 13%. Um segundo motivo, estará nas zonas de contacto e fricção interétnica – essas espalham-se pelo interior e pelo litoral – onde os eleitores sentirão pouco a presença do Estado e vivem em tensão com comportamentos que não reconhecem como adequados. Um terceiro motivo prende-se ao desprestígio que atinge as elites políticas. Umas vezes, por culpa das próprias – casos de corrupção, de nepotismo, de privilégio, de ausência de um comportamento frugal tipo nórdico –, e outras por campanhas sujas que exploram o ressentimento irracional com as elites. Uma quarta razão, prender-se-á com a existência de novas gerações altamente qualificadas, mas sem emprego ou com um emprego não compatível com a formação. Se se preza a democracia liberal, o melhor será não fingir que os problemas não existem, que a votação de AV caiu dos céus ou veio do inferno.