sábado, 13 de fevereiro de 2021

Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty

Publicado em 1970, o romance A angústia do guarda-redes antes do penalty é uma das obras mais conhecidas do escritor austríaco Peter Handke, Nobel da literatura em 2019. O leitor de imediato sente a possibilidade de carrear alguns pontos genealógicos que se configuram elos de uma corrente que levam ao romance de Handke. Kafka e Ungar, Broch e Musil, mas ainda Camus, de O Estrangeiro, ou Sartre, de A Náusea. A obra faz parte de uma paisagem pesada que parte da literatura europeia foi construindo, num jogo de espelhos, com a realidade dessa Europa que, no século XX, orgulhosa da sua civilização material, não teve a contenção necessária para evitar duas guerras mundiais e um número desmedido de patifarias. Uma paisagem devastada de homens sem qualidades. A ausência de qualidades é também a ausência de qualificativos. Os homens são substâncias nas quais a essência se despiu dos acidentes, para falar à maneira de Aristóteles.

Assim como, na Metamorfose, de Kafka, Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, acorda uma manhã transformado num insecto gigante, também é subitamente que Joseph Bloch, um mecânico, se vê despedido da empresa onde trabalha. Não é claro, todavia, se ele foi efectivamente despedido ou se julgou tê-lo sido. Esse é, na narrativa, o primeiro sinal de uma desvinculação ontológica entre o sujeito e a realidade social, na qual se inclui a sua própria realidade de ser social. A referência à doutrina de Aristóteles pode não ser despropositada. Desvincular-se dos acidentes – das qualidades que não constituem o cerne da identidade – deixa os homens reduzidos à sua essência, mas estranhamente a perda do acidental produz uma profunda alienação, em vez de glorificar aquilo que é. O que conduziu Bloch a esse estado não se sabe. Duas qualidades acidentais são referidas, mas ele, no tempo da narrativa, já as perdeu. A de ser um mecânico e, também, a de ter sido um guarda-redes conhecido de uma equipa de futebol, também ela conhecida. Durante a narrativa, contudo, ele já está despido dessas qualidades. Perdido o emprego, Bloch entregou-se à pura errância, a deambular por Viena, primeiro, e depois numa outra cidade, na fronteira sul do país.

Desqualificação e errância são sintomas do estranhamento, da alienação. Um descomprometimento emerge na atitude do antigo guarda-redes. Descompromisso com os lugares, as pessoas, com os próprios actos, sentimentos e situação existencial. Nessa errância, comete um homicídio. Não porque tivesse motivo algum para o cometer. Aconteceu estrangular uma rapariga que trabalhava na bilheteira de um cinema, com quem tinha ido para a cama. No seu acto não houve qualquer finalidade ou motivo. Dir-se-ia que não foi uma acção, mas um mero acontecimento, idêntico a uma avalanche ou a um raio. Esse evento não teve qualquer ressonância interior. Reduzido à sua pura essência, Joseph Bloch não apenas perdeu os acidentes como não o move qualquer objectivo. É isto que transforma os seus actos em puros processos naturais. O estranhamento do mundo social, dos jogos de linguagem e das convenções rituais conduz à pura naturalização do indivíduo.

A própria personagem, por vezes, chega a uma consciência próxima do seu estado. Quando suspeita que certos jogos de linguagem – frases ou conversas – não são sérios, não passarão de uma brincadeira. O mesmo se passa com certos acontecimentos ocorridos nas interacções sociais. Esta desconfiança para com a seriedade da vida social ou da linguagem é um sinal da desvinculação com todo o mundo ritualizado da cultura humana, com os seus jogos linguísticos e representações sociais. Nada daquilo pode ser sério. A autenticidade de um ser puramente natural está aquém do jogo e da representação teatral. Como se sabe, jogo e representação são elementos estruturantes da vida em sociedade, fundamentos do que se convencionou chamar cultura. Joseph Bloch não transcende o social e o cultural na imersão mística no mundo do espírito, mas retorna ao estado de natureza. O romance pode ser lido como uma experiência mental ou, melhor, um ensaio sobre o que seria um homem que decaísse do estado social para o estado natural. O estado natural não é um lugar de emancipação, mas de degradação. Toda a queda se inscreve num movimento de degradação, e a história de Joseph Bloch é também a história de uma queda.

Cair na natureza é também cair fora da história. Isso explica – talvez mais do que o suposto experimentalismo do autor – o tipo de narrativa escolhido por Handke. Sem intriga e sem desenlace. Por exemplo, o leitor percebe que a polícia começa a aproximar-se do assassino da rapariga da bilheteira, mas isso não tem qualquer impacto no romance nem no destino de Bloch. Na natureza não há acções e não há história, apenas acontecimentos. A narrativa tenta ser uma descrição exaustiva de acontecimentos, mesmo que estes tenham aparência de acções humanas. Isto conduz ao papel do narrador. Se há um romance em que se sente a presença obsessiva do narrador é neste. Narrado na terceira pessoa, A angústia do guarda-redes antes do penalty é um exercício literário de registo minucioso de ocorrências, como se o narrador omnisciente redefinisse a natureza dessa omnisciência. Ele é omnisciente não porque sabe o desenrolar e o desenlace da história que está a contar, mas porque regista de forma hiperbólica a factualidade. No universo narrado – um universo natural e não um mundo humano – não há uma história para contar, mas factos para registar, numa espécie de relatório descritivo de um narrador obsessivo com a exactidão do que acontece.

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