O romance de Afonso Cruz, Flores, foi publicado em 2015 e obteve o Prémio Fernando Namora em 2016. O autor, com vasta bibliografia e múltiplos interesses, é um dos mais importantes da geração que está na casa dos cinquenta anos. A obra, uma narrativa na primeira pessoa, lida com o problema da identidade, a do vizinho do narrador e, de forma especular, com a do próprio narrador, um jornalista. O trabalho sobre estas duas identidades segue, todavia, processos diferenciados. A do vizinho do narrador é procurada através de um inquérito que combina as técnicas do jornalismo e as da investigação de detective privado. A busca da própria identidade obedece ao monólogo interior ou, para ser mais exacto, ao diálogo consigo mesmo, desdobrando-se o jornalista em duas pessoas, nem sempre as mesmas, que dialogam entre si.
Casado com Clarisse e pai de Beatriz, o jornalista leva uma vida autocentrada, um exercício pouco discreto de narcisismo, ao mesmo tempo que assiste à morte do casamento. Uma morte porque, com o tempo, a relação perdeu a excitação do primeiro beijo. Entregava-se, para compensar o baixo nível de adrenalina matrimonial, a umas infidelidades, mais ou menos ocasionais com uma colega. Ao mesmo tempo acabou por se interessar por um vizinho, Manuel Ulme. Uma personagem aparentemente deslocada daquele meio. Ulme é um homem de idade. A certa altura confessa que nunca viu uma mulher nua. Questionado sobre a situação, diz que se viu não se lembra. Sofrera um aneurisma e o passado apagara-se. Perdera parte significativa da memória, a que estava relacionada com a identidade e com o que fizera e lhe acontecera durante a vida. Isso, porém, não impedia de ser efectivamente um self estruturado em torno de um conjunto de atitudes e crenças, com as suas idiossincrasias e apreciações do mundo e, fundamentalmente, da maldade do mundo.
O romance introduz na realidade uma ambiguidade fundamental em relação ao peso do passado e da memória relativamente ao que se é no presente. Manuel Ulme não necessitava do seu passado para ser aquilo que é no presente. Essa ausência pode assombrá-lo, mas não é uma condição necessária para conduzir razoavelmente a sua existência na nova condição. Dito de outra maneira, o romance parece, ainda que de forma não totalmente clara, abrir um rasgão na sutura que une memória e identidade. A narrativa é atravessada pela repetição, como se fora um mantra, de uma frase enigmática pelo senhor Ulme: Entremos mais dentro da espessura! Uma leitura imediata poderá compreendê-la como a formulação de um desejo de penetrar na névoa em que se tinha tornado o passado. No entanto, não é claro que o seja, pois a frase é um verso de S. João da Cruz. A espessura em que Manuel Ulme deseja entrar pode muito bem ser a autêntica realidade, que ele tenha adquirido a consciência de que o que se chama o real não passe de uma aparência.
Na reconstituição do passado do vizinho, o jornalista, a partir do que encontra na casa daquele, consegue chegar à aldeia alentejana onde ele nasceu, descobre que vinha de uma família rica e reconstrói a sua teia de relações sociais, de amizade e familiares. A identidade que é assim reconstruída é sempre uma identidade perspectivística e exterior ao self de Manuel Ulme. Entre louvores e censuras, o jornalista reconstitui a vida do vizinho, construindo uma imagem contraditória, ao mesmo tempo que perpassa por um conjunto de cenários do Portugal anterior ao 25 de Abril e, também, do que veio depois. No trabalho de investigação, descobre-se uma linha de continuidade entre o antes e o depois do aneurisma, a preocupação com o mal do mundo, com o facto de este ser palco de um teatro onde a canalhice e a maldade humanas são sempre as principais protagonistas. Na fase desmemoriada da existência, Manuel Ulme colecciona notícias de jornais onde se relatam as perversões do homem. Descobre-se, porém, que já antes o fazia e até com o papel acumulado tinha construído um gigantesco golem – um ser artificial ligado à tradição mística do judaísmo, que pode ser trazido à vida – talvez com a esperança de que este fizesse aquilo que nem os homens nem Deus fazem, dissuadir os homens do mal. Estava escondido num armazém da aldeia, cuja chave Manuel Ulme trazia sempre ao pescoço, embora não soubesse para que servia ela. Era a chave da continuidade entre o antes e o depois da doença.
Este trabalho de investigação com as suas descobertas são o contraponto das descobertas que o próprio jornalista faz de si e da sua vida. O exercício fundamental de autodescoberta passa-se na casa de banho no diálogo com o espelho. Fala consigo mesmo, embora se desdobre em dois. O que está em jogo, nessas conversas, não é apenas um passado real, mas também um presente e um futuro desejados. Vê-se como um herói, imagina-se outro de si mesmo, em versão magnificada. Isso, todavia, é contraposto com decomposição da sua vida conjugal e da sua vida amorosa em geral. Se Manuel Ulme tinha uma obsessão pelas malfeitorias da humanidade, ele tinha-a pela ordem. Percebeu que alguma coisa ia mal quando a mulher não arrumou um dos seus chapéus no lugar, deixando-o ficar em cima de uma cama, sabendo que ele não suportava essa pequena desordem. Este pequeno esquecimento era o sinal de que o casamento se desfizera, a excitação há muito dera lugar à morte do desejo. A saída de casa da mulher e da filha é, na verdade, o desmentido do seu narcisismo, dessa imagem superlativa que, diante do espelho, construía de si mesmo. Uma identidade falhada, um self sem consistência, sem elevação. A fractura da memória de Manuel Ulme pode não ser decisiva para a existência de um self consistente. A existência de uma continuidade mnemónica de si está longe de ser uma garantia de uma identidade sólida e capaz de lidar com a realidade.
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