terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Perfis 14. A rapariga do girassol

Édouard Boubat, Tournesol, 1985
Não tem rosto a rapariga do girassol. Perdida na seara, esconde o que é na máscara vegetal com que se deixa fotografar. Não é outra coisa senão a sua fotografia, um ser puro que veio à existência para ser fotografado e exposto no altar do mundo, por onde passam fiéis e perguntam quem é a rapariga do girassol. Há os que passam indiferentes, há os que contemplam e se entregam à cobiça dos seios, ao desejo de mergulhar na seara e de descobrir uma sereia perdida entre o cereal. A sombra do girassol projecta-se no ombro, mas quem olha não vê a sombra, nem pensa no que pensará a rapariga, tão exposta e tão escondida, tão tocada pelo pudor, que se poderia pensar numa inocência virginal. Há quem a imagine reencarnação de uma deusa. Há quem conjecture sobre a beleza que a flor oculta, há quem esteja certo da feiura que assim se esconde, há quem deseje desfolhar o girassol, mas a rapariga permanece serena na sua pose, impávida perante o desejo, como se tivesse vindo ao mundo para cultivar a placidez da eternidade, enquanto quem a olha se entrega à perturbação que a tranquilidade provoca. No girassol há a promessa de um rosto, um esboço que os olhares procuram retirar da obscuridade onde se vela, para lhe dar vida e fazê-lo habitar na alegria do olhar que o visse. Ela não pensa nos olhares que a querem, não pensa em quem passa, em quem se ajoelha e lhe dirige uma promessa, em quem lhe contempla os seios ou se põe a adivinhar a nudez. Ela é simples e pura como um girassol e como este não tem pensamentos nem desejos, não sofre de paixões. É tão simples e tão leve que o Sol a arrasta na carruagem do dia e leva-a para a gruta da noite. Também ele a olha e se deixa levar pelo desejo insensato de iluminar o rosto que assim se vela.

6 comentários:

  1. Belíssimo texto para uma não menos bela fotografia.
    Pelo penteado, que adivinho, fez-me lembrar alguém que conheci; mas não pode ser ela, ela nunca permitiu que a fotografassem assim...
    🌻

    ResponderEliminar
  2. Belo texto, como sempre...tive que aqui vir para ler os seus textos, que, aliás, eram das poucas coisas que me despertavam a atenção naquela «coisa» de onde o Jorge saiu...só me apercebi disso ontem, estranhando não ver os seus textos como era habitual. Então, voltou aos tempos de A Ver o Mundo, blogue de que tive imensa pena que acabasse...mas pronto, poderemos continuar a lê-lo e isso é bom!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, Maria Correia. De facto, suspendi a conta do Facebook. Não é o melhor dos mundos possíveis e estava a perder tempo, muitas vezes com coisas que não têm qualquer importância. Voltei à velha condição de blogger acidental.

      Eliminar
    2. Fez bem...ando para fazer o mesmo, especialmente depois de ter visto O Dilema das Redes Sociais, um belíssimo documentário sobre o assunto. Não é um mundo limpo, nada limpo mesmo.

      Eliminar
    3. Parece mesmo que não. No entanto, até nem era uma má ideia, mas é pervertível com muita facilidade.

      Eliminar

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.