Vítor Fortes, Pintura, 1972 (Gulbenkian) |
segunda-feira, 24 de junho de 2024
Ensaio sobre a luz (119)
sábado, 22 de junho de 2024
O futebol e o radicalismo de direita
Decorre o Europeu de futebol, hora em que o fervor nacionalista se exalta. O futebol, na sua dimensão industrial, foi colonizado por perspectivas ideológicas que fomentam, na consciência dos adeptos, uma visão do mundo muito específica. Essa visão associa três ideias centrais. Por um lado, a ideia de competição. Por outro a ideia de mérito. Por fim, a ideia de pertença à tribo e à nação. Quem defende valores racionais na convivência humana e regimes políticos demo-liberais está espantado e preocupado pela emergência da extrema-direita e da direita radical. Não se interroga, porém, como o desporto de alta competição, no caso da Europa e de parte do mundo, o futebol, foi fundamental para difundir um conjunto de crenças que facilitaram a adesão a essas visões ideológicas. Embora, há décadas, nos campos de futebol, existam sinais claros disso.
A indústria do futebol propaga uma visão da vida que se alinha com o neoliberalismo e o tribalismo nacional. Dois dos elementos centrais dessa indústria são a competição, como se se estivesse num mercado, e o mérito. Só os melhores têm lugar nos sítios onde se é muito bem pago. A relação entre essa visão do futebol de alta competição e as nossas sociedades é tão clara que não vale a pena explicá-la. Um terceiro elemento da indústria do futebol é a emoção do adepto. Não a emoção estética de um grande golo ou de uma bela jogada, mas o orgulho de derrotar os adversários, de os humilhar, de mostrar que somos ontologicamente superiores, super-homens, enquanto os outros são sub-humanos. Isto manifesta-se no clubismo e, ao nível de selecções, no nacionalismo. O nacionalismo, durante muito tempo na Europa, apenas subsistiu no futebol, onde era cultuado ao extremo.
Apesar de parte da extrema-direita actual se apresentar com programas economicamente antiliberais, outra parte combina o radicalismo libertário na economia com o tribalismo nacionalista. Contudo, mesmo essas direitas que, aparentemente, querem limitar a concorrência do mercado, apenas o fazem em nome da concorrência entre tribos, entre nós e os outros. A progressão dessas direitas extremadas e radicais encontrou, nas consciências das pessoas, uma visão do mundo, formatada, durante décadas, pela indústria do futebol. Parte da população tinha a consciência disponível para acolher aquele tipo de ideologia. Não é um acaso que a liderança portuguesa desses sectores ideológicos tenha vindo do exaltado comentário futebolístico. O futebol é um belo jogo, mas a indústria do futebol, onde pertencem os campeonatos de selecções, não é ideologicamente neutra e, muito menos, pura. Bons jogos.
segunda-feira, 17 de junho de 2024
Beatitudes (70) Melancolia
Mário Eloy, Paisagem, 1930 (Gulbenkian) |
sábado, 15 de junho de 2024
Poemas fluviais 5
Karl von Pidoll, River scenery, ca. 1889 |
Era
o primeiro rio que me nascia nas mãos.
Naquele
regaço arfava uma rosa-púrpura,
rosa
inchada pelos dias,
olhos
inclinados entre folhas de loureiro.
Vacilavam
as águas presas na indecisão,
os
barcos arvoravam bandeiras
de
países perdidos pela terra.
Como
te chamas?
A
urze é corrida pelo vento,
círculos
ondulam a água deste rio,
cavado
na memória,
perdido
nos alcatruzes do tempo,
no
fundo de uma areia fina,
branca
como a palidez da morte.
No
rosto do rio, risos de mulher.
Rio
feminino, fêmea aberta sobre as margens.
Quando
a água corre entre o lodo,
abre
as longas pernas.
No
centro do útero cresce a voz,
o
poder intocado pelo medo.
O
rio procura um nome,
perde-se
entre meandros,
perde-se
nas orações quebradas
numa
língua incógnita.
Tumulto
após tumulto, sossega o rio o desejo.
O
nome é uma palavra inominável,
o
secreto recanto da alma.
Sente
o rio a noite, as lâmpadas acesas
sobre
o bordo dos barcos,
as
canções fluviais em surdina.
De
que lhe serve uma voz?
Da
noite, nasce a aurora,
um
cavalo abandonado sobre a terra.
Acende-se
o rio nas sílabas de luz,
na
fonética imprevisível do dia.
Cavaleiros
fluviais debruçam-se
na
topografia das águas,
traçam
mapas no veludo do olhar.
O
rio corre entre tábuas,
preso
em paredes caiadas, tocadas pelo lodo.
Nas
veias, o visco dos séculos,
uma
cadeia de fungos,
o
bolor cinzelado pelas mãos.
Como
chegar ao fundo do rio?
Cresce
na margem uma habitação silenciosa,
rumor
de água pelo moinho,
pesadas
mós moem o trigo da melancolia.
O
moleiro olha a mulher,
uma
agonia sem nome cresce na alma do rio.
A
hidra volta todos anos,
traz
o recibo de um tributo nunca pago.
Sobre
a esquina do rio, um cântaro esquecido.
Nas
margens, cães e crianças,
vozes
de sombra e latidos lunares,
a
erva fresca alimenta impérios de insectos,
flores
vermelhas voltadas para a colmeia.
No
centro da água sopra o vento,
vozes
ecoam no álcool das destilarias.
Corre
um mundo sem tréguas,
uma
batalha inédita de peixes e patos.
Arvorado
pelo anzol,
um
homem de sebo é o dono desse mundo.
Quando
da janela deita os olhos entre as águas,
crescem
rochas esventradas na saliência do rio.
O
tecto traz o zinabre da memória,
as
águas a corroer paredes e almas,
pássaros
esquivos poisados na roupa branca,
um
quintal de ervas daninhas,
pedaços
de vidro pelo chão.
Deitado
na vida, a aguardente corria
pelas
margens tocadas pela sombra da tarde.
Mulheres
gritavam,
entre
as silvas ouviam-se guinchos,
ratos
especados,
o
fio de água entontecendo os choupos,
salgueiros
quebrados na margem do corpo.
Com
as mãos entreteço uma armadilha,
aprisiono
o mistério das águas e calo-me.
Um
cesto de verga,
a
sombra enxertada na luz solar
e
todos os dias uma água prisioneira
foge
de minhas mãos vazias,
perde-se
na torrente do rio que corre.
Agosto de 1993
[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]
quinta-feira, 13 de junho de 2024
Comentários (20)
Godofredo Ortega Muñoz, Tierras, 1967 |
terça-feira, 11 de junho de 2024
Máximas (20)
domingo, 9 de junho de 2024
Simulacros e simulações (64)
Júlio Resende, Cabeças de homens, 1946 (Gulbenkian) |
sexta-feira, 7 de junho de 2024
Teixeira de Queiroz e o mundo português
“A primeira vez que Salústio Nogueira entrou na Câmara dos Deputados, como eleito do povo, foi sob o patrocínio de uma senhora, D. Josefa Lencastre, que, num baile de caridade, no Clube, disse ao ministro da Guerra: Tenho um grande favor a pedir-lhe, general.” Assim começa o segundo romance da Comédia Burguesa, com o título O Salústio Nogueira – Estudo de política contemporânea. A conversa entre a jovem e bela D. Josefa e o ministro da Guerra prossegue, com ela a manipular o delíquio amoroso que habitava o coração do militar. Chegado o momento, ela diz: “Então aí vai o meu pedido: eu quero que o senhor me faça um deputado.” Ao que o General respondeu: “Ora adeus! ... Era isso?! Deputados! ... Faço-lhe dois ... Faço-lhe vinte de uma vez, se Vossa Excelência mo pedir.” E acrescentou: “Faço-lhe um ministro aqui de pronto.”
Será o Portugal
político do século XXI tão diferente daquele que Teixeira de Queiroz descreve? Não
temos Rei, as famílias aristocráticas – D. Josefa Lencastre era sobrinha da
Viscondessa de Águas Santas – são uma relíquia e os generais de hoje estão, por
enquanto, mais distantes da política. Será, porém, o método de produção de
deputados e até de ministros tão diferente? Teixeira de Queiroz, em meia dúzia
de linhas, mostra-nos a íntima relação entre eros e poder, o sistema de cunhas
que domina a vida social portuguesa e a força que sustenta, no nosso país,
aquilo que antigamente se dava o nome de videirinhos. Tudo isto continua vivo e
de boa saúde, embora com outros protagonistas. Não somos nórdicos e a nossa
cultura ancestral é esta. A literatura serve para muitas coisas. Uma delas é
mostrar aquilo que um povo é. Teixeira de Queiroz é um dos que o fez com
talento. Merece que se volte a ele.
quarta-feira, 5 de junho de 2024
Poemas fluviais 4
Ignacio Zuloaga y Zabaleta, Paisaje, 1939-1940 |
Um
rio cresce em castelo inexpugnável,
império
de lodo sobre o barro,
serpente
de geometria variável
a
arder no fogo branco de toda a água.
Quando
pelas manhãs o mundo estremece,
a
luz fluvial estreita no seu abraço
a
erva fresca, o salgueiro debruçado,
aberto
no solstício das margens.
Um
rio de pescadores sonâmbulos,
acordado
pela noite,
pelo
correr das gerações, os peixes lívidos
deitados
no chão da barcaça.
Destilado
na tristeza, cresce incógnito,
a
alma desolada entre pomares,
grávido
de vozes inúteis, sem sol, sem sal
sem
uma janela aberta para o mar.
Um
rio é uma paixão soterrada na memória,
cântico
saturado pela resina do tempo,
cuidado
por uma lavoura arcaica,
pela
bênção de púrpura da estrela da tarde.
Cisnes
e sombras cruzam as águas
e
no rasto da recordação abre-se um sulco,
a
constelação embriagada
sobre
o instante apresado pela voz.
Julho de 1993
[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]
segunda-feira, 3 de junho de 2024
O progresso moral da humanidade (18)
sábado, 1 de junho de 2024
A esquerda e a indignação
A moralidade na esquerda manifesta-se, por norma, sob a forma da indignação. Por exemplo, a questão colocada por Alexandra Leitão, do PS, aquando do episódio dos turcos, ao Presidente da Assembleia da República, transpira de indignação. Contudo, teria sido melhor que a sua intervenção, caso quisesse falar das considerações sobre os turcos, lembrasse que a Turquia é uma aliada de Portugal, no âmbito da NATO, e não é patriótico estar a desconsiderar, na Assembleia da República, um povo com o qual estabelecemos uma aliança de defesa, acrescentando que não devemos tratar os outros como não gostamos que nos tratem a nós, recordando o episódio de um certo comissário holandês e o que ele disse dos povos do Sul da Europa. Seria uma intervenção política e colocaria o líder do Chega numa situação mais difícil.
Não é que a direita e, em particular, a extrema-direita não recorra às emoções e à indignação. Contudo, quando o faz, consegue capitalizar apoios. O mesmo não se está a passar à esquerda. O recurso à moralidade e à indignação não lhe tem sido favorável, pois aquilo que emociona e indigna a esquerda deixou de ter poder para penetrar no eleitorado. O espírito do tempo não lhe é propício. Por isso, deveria ser mais racional nas reacções, não se comportar segundo os princípios do reflexo condicionado de Pavlov, e não se indignar sempre que a extrema-direita quer que ela se indigne, bastando a esta uma expressão provocatória para tirar proveito da reacção indignada da esquerda, capitalizar apoios, afirmar a sua agenda e ridicularizar a esquerda. Nos dias de hoje, é necessário, à esquerda, muita inteligência e a indignação não ajuda ao uso dessa inteligência.