sábado, 28 de fevereiro de 2015

Impressões (XXII) - avançavam na viagem

Cesar Biseo - Paesaggio desertico con carovana (1870)

xxii. avançavam no viagem

avançavam  na viagem
o destino por horizonte
os dias na bagagem
e água no coração

perseguidos pelos céus
abandonados ao silêncio
à deriva no deserto
chamando pelo deus
tão longe ou tão perto

(26/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A mercearia e a salvação


Enquanto andamos entretidos com as peripécias do caso grego, uns ansiando pela humilhação de Tsipras e de Varoufakis, outros cantando hossanas ao novo paraíso social que vêem no horizonte, o mundo desloca-se rapidamente e parece tomar caminhos insuspeitos, caminhos que as nossas categorias mentais são incapazes de perceber. Na verdade, aquilo que se passa na Europa, onde se inclui a questão grega e a nossa pequena miséria, não passa de um problema de mercearia insignificante. Não é que as questões de mercearia não sejam importantes, são-no, mas há mais mundo do que aquele que se vende numa mercearia, mesmo que esta seja um hipermercado. As questões de mercearia tomaram conta dos sonhos dos políticos, cegando-os para aquilo que está aí.

A questão para nós europeus – em especial para os ibéricos – tem uma natureza religiosa e não económica. O problema vem crescendo há muito, mas só agora começa a tomar contornos claros, que permitem perceber o quanto estão desfocadas as nossas interpretações do mundo. Trata-se do avanço e do poder de atracção do denominado Estado Islâmico (ISIS). As pessoas não fazem ideia, mas esse grupo já domina uma área geográfica, na Síria e no Iraque, idêntica à da Grã-Bretanha. Faz incursões no Egipto e penetrou na Líbia, onde espera abrir uma porta para entrar na Europa. Nesta reivindicam como território próprio a Península Ibérica, embora as fronteiras possíveis do Califado sejam o planeta. Aquilo que chama a atenção das pessoas é o espectáculo da extrema crueldade com que o grupo age, a ausência de compaixão perante os que são diferentes, a insensatez dos jovens ocidentais que se lhe juntam, a capacidade militar que tem evidenciado.

O perigo central, porém, vem das ideias que estão por detrás do movimento. Para nós, são incompreensíveis, pois eles representam uma absoluta recusa do mundo moderno. Crêem firmemente que se aproxima o apocalipse, que nos aproximamos do Juízo Final, e que o Islão – sob sua direcção – se prepara para derrotar Roma (o mundo cristão) e governar sobre a Terra, segundo a lei corânica. Enquanto nós discutimos empréstimos, enquanto estamos visceralmente ocupados com a evolução dos mercados, aqui ao lado estão a preparar o fim do nosso mundo. Se o puderem fazer, se puderem destruir toda a nossa cultura e civilização, eles fá-lo-ão. E têm algumas vantagens sobre nós: não têm medo de morrer e crêem que são os emissários de Deus para pôr ordem na desordem do mundo. O que mais pode mover um jovem do que sentir que a salvação da humanidade depende da sua acção? Discutamos então a mercearia.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A nostalgia da comunidade

Antonio Bisquert - Cabeça de Karl Marx (1986)

As voltas que o mundo dá! Afinal, no coração dos alemães há uma nostalgia pelo velhos tempos do comunismo. Nas regiões da antiga República Democrática Alemã, aquela que viveu sob um regime comunista, uma sondagem indica que 59% dos cidadãos acham os ideais comunistas e socialistas benéficos para a sociedade. Mesmo no território da antiga República Federal são 37% dos cidadãos que têm a mesma opinião (ver aqui). Podemos perguntar como é que isso pode acontecer, se a Alemanha actual (onde 60% dos cidadãos considera não haver uma autêntica democracia) nos é vendida, a cada telejornal, como o paraíso que todos, em especial os indigentes do Sul, devem emular?

Haverá múltiplas explicações para o fenómeno. Umas de carácter social, outras económico, outras político. Gostaria, porém, de sublinhar um aspecto de natureza metafísica. As sociedades liberais distorcem a realidade humana ao pensar e promover a ideia de que a sociedade é o resultado de um contrato entre indivíduos, que perseguem racionalmente os seus interesses e que, por isso, se associam. A sociedade seria, então, o resultados da inter-relação das intenções e interesses individuais. Isto, porém, é uma falsificação. O homem é, originariamente, um ser comunitário. A comunidade é a casa do homem singular, antecede-o e abriga-o. Ela não resulta de nenhum contrato racional, mas do desenvolvimento histórico da própria espécie.

Quando vivemos em sociedades cada vez mais atomizadas, onde os indivíduos são deixados a si mesmos e incentivados a competirem uns com os outros, o mais natural é que cresça uma nostalgia pela vida em comunidade, pela valorização dos laços de partilha e de inter-ajuda. Os próprios ideais comunistas e socialistas representavam já no século XIX a expressão dessa nostalgia, uma reacção ao atomismo social, mesmo que os intelectuais e os militantes que os defendiam não tivessem disso consciência. A melancólica saudade dos alemães de leste é a manifestação da doença que afecta as sociedades liberais, fundadas numa metafísica social em contradição com a própria natureza comunitária do homem. Esta nostalgia germânica pelo comunismo sublinha a inumanidade de um liberalismo puro e duro (o ordo-liberalismo alemão ou o neoliberalismo anglo-saxónico) e o sentimento de uma doença metafísica na ordem social que é a nossa.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

A Europa e o minotauro

Pablo Picasso - Minotauro herido, caballo y personajes (1936)

A eleição e as primeiras negociações do actual governo grego com as instituições europeias trouxeram ao de cima uma realidade sempre presente mas que, por norma, permanece escondida. Trata-se da natureza puramente ideológica dos comentários e das reacções em Portugal. Por exemplo, perante o acordo conseguido entre a Grécia - com um governo completamente fora dos parâmetros dos actuais governos europeus - e o eurogrupo, o que se discutiu foi se a Grécia se submeteu ou se conseguiu alguma coisa de diferente. E esta discussão, absolutamente idiota, enche de ardor as partes em confronto, cada uma, através de contorções semânticas, tentando mostrar que o seu lado ganhou.

Que isso se passe nas conversas de café ou nos comentários das redes sociais é normal. No fundo, somos todos o homem do táxi que, por melancolia e entre bandeiradas, expõe a solução para os males do mundo, onde nunca falta o "só presos", para os malandros dos políticos. Já devia ser menos normal para quem faz opinião. Mas a identidade ideológica está tão arreigada dentro das pessoas que estas sentem, como uma questão de vida ou de morte, a necessidade de defender os seus. Qualquer facto que desminta a explicação do mundo que têm é pura e simplesmente descartado. No mundo da paixão política, não há factos, não há conhecimento. Há apenas paixão, pura e dura. Uma paixão irracional.

Muitas vezes esta paixão é desencadeada pelos actores políticos, como forma de obter ganhos eleitorais e manter ou conquistar o poder (a sua finalidade essencial). Isso, porém, tem uma contrapartida. É a própria paixão popular, a que se manifesta no espaço público, que contamina a decisão política e a afasta daquilo que poderia levar à morte do minotauro, esse monstro que assedia a Europa e se esconde no centro do labirinto da política europeia. A ausência de racionalidade na análise da situação, a sua transformação num despique entre hooligans de clubes rivais, a contaminação dos eleitorados por este tipo de jogos alimentam posições patológicas dos actores políticos, as quais nada contribuem para uma solução serena e equilibrada.

O que deveria estar em discussão no caso grego? Como pode a Grécia voltar a crescer para, desse modo, poder honrar os compromissos. Como poderá a Europa encontrar um caminho que consiga parar a sua decadência? Aquilo que esteve em jogo, contudo, foi outra coisa. Foi, e é, se a Grécia obedece ou não ao que lhe é imposto e que a levou, assim como a nós, ao abismo. Há uma racionalidade perversa nestas posições: reforçam a irracionalidade dos eleitorados de alguns países, tornando o ambiente cada vez mais efervescente. Em vez da serena racionalidade de Teseu, a Europa agita-se entre paixões, enquanto o minotauro vai devorando os seus filhos. Se, por acaso, surge um Teseu, as próprias vítimas do minotauro começam a tremer e a desejar a sua morte.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Impressões (XXI) - o vento incendeia a tarde

Alfred Sisley - Dia de Viento en Veno (1882)

xxi. o vento incendeia a tarde

o vento incendeia a tarde
e sobre as avenidas erguem-se
a luz dos campos abrasados
o silêncio da nostalgia
com que as folhas deslizam
do tempo para a eternidade

 (25/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Brinquedos de crianças


As opiniões humanas são brinquedos de crianças. (Heraclito, fr. 70)

Por vezes é necessário voltar a tomar consciência dos limites da natureza humana. Apesar de racionais, os homens são limitados e finitos. As opiniões que emitem são o fruto dos seus desejos, interesses e medos, muito mais do que um compromisso com a verdade. Quando pretendem antecipar aquilo que o futuro irá trazer, para melhor se protegerem, balbuciam algumas profecias, que o tempo se encarrega de mostrar o ridículo. Como Heraclito  sublinhou há cerca de 2500 anos, as opiniões humanas são brinquedos de crianças.

Assistimos continuamente à emissão de opiniões sobre as quais, na verdade, temos uma limitada capacidade para relacionar com a verdade dos factos. O que vai ser o futuro da Europa e de Portugal? Perante nós temos um banco de nevoeiro. Há coisas que, todavia, sabemos. Sabemos que temos um problema na Ucrânia, que a guerra civil que por lá grassa tem potencial para infectar toda a Europa, até porque esta é parte interessada e não está inocente no processo. A triste história das dívidas soberanas e a crise grega, onde comportamentos patológicos têm sido constantes, é outro problema que nos diz imediatamente respeito. A desindustrialização de parte substancial da Europa e a crise demográfica – problema especificamente europeu – são duas questões que levantam grandes perplexidades. A isto há que acrescentar o terrorismo no espaço da União Europeia e os graves problemas do médio-oriente, que nos afectam directamente, mais do que estamos dispostos a admitir.

Perante este cenário quase apocalíptico, nunca deixo de me espantar com aqueles que estão cheios de certeza sobre os caminhos que defendem. Esmagar os gregos ou torná-los heróis da resistência ao neoliberalismo. Ver o problema da Ucrânia como o resultado do desejo imperial russo ou como o efeito das manobras euro-americanas. Observar o terrorismo e as crises do médio-oriente como o produto dos ardis ocidentais ou olhar para esses fenómenos como luta emancipatória. Todas estas simplificações não passam de jogos infantis. Estamos a viver um momento muito grave e que não pode ser tratado como uma brincadeira de meninos. Exige de todos ponderação, sensatez e sentido de equilíbrio. Talvez assim se encontre um caminho que evite a desgraça que se perfila no horizonte. O pior que pode acontecer é que políticos e analistas se refugiem na infância e façam das vidas das pessoas brinquedos de crianças. E nada nos garante que não vá ser assim.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Pecar contra a dignidade

Giotto di Bondone - La traición de Judas (1302-1305)

Os povos, numa democracia, elegem os governos convictos de que os eleitos devem defender a comunidade, crentes que o maior dever de um governante é essa defesa, custe o que custar, mesmo que isso deva feito contra o senso comum e os poderosos do tempo em que se vive. Quando aqueles que, no estrangeiro, foram agentes de uma política repelente vêm dizer que, com essa política, se pecou contra a dignidade dos povos de Portugal, da Grécia e da Irlanda (ver aqui), que juízo podemos fazer daqueles que, nesses países, aplicaram essas políticas, que agiram contra a dignidades dos povos que deveriam ter defendido, que quiseram, como em Portugal, ser mais severos do que os opressores? Há uma longa lista de gente que sempre esteve disposta a colaborar com os inimigos. Judas vendeu o Mestre, Miguel de Vasconcelos era o homem de mãos dos castelhanos. Que nome damos aos que colaboraram e intensificaram a punição que humilhou e humilha os povos sobre resgate? Não, não pecaram apenas. Fizeram algo muito mais indigno.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Lutar pela pátria

Pablo Picasso - A Guerra (1952)

A Win Gallup fez uma sondagem internacional (ver aqui e aqui) com a seguinte questão: Se houvesse uma guerra que envolvesse o seu país, estaria disposto a lutar pelo seu país? Se ao nível global 60% dos inquiridos lutariam pelo seu país, as diferenças de amor patriótico são, geográfica e civilizacionalmente, muito heterogéneas. No Médio Oriente e Norte de África, 77% estariam dispostos a lutar pelo país. Na Ásia, seriam 71% (mas no rico Japão, apenas 11%), enquanto em África e na Europa de Leste seriam 56% e 54%, respectivamente. Na América e na Oceânia, lutariam pelo país 48% e 40%, respectivamente. Na Europa Ocidental, apenas 25% (28% em Portugal) estariam dispostos a lutar pela pátria. Estes dados são muito curiosos e permitem perceber algumas coisas.

Por exemplo, quanto melhor nível de vida e mais direitos, liberdades e garantias um país - ou uma comunidade política - proporciona aos seus cidadãos, menos estes estão dispostos a bater-se por ele. Há a tentação de dizer: apenas 28% dos portugueses estão dispostos a lutar por Portugal porque o país é mau e oferece-lhes pouco. Essa, porém, não é a verdade. Quanto menos direitos, liberdades e garantias individuais são oferecidas, mais os indivíduos estão dispostos a lutar pela comunidade. Isto não significa apenas que o individualismo se sobrepôs ao espírito comunitarista e que o egoísmo se tornou preponderante. Significa também que há uma consciência racional mais aguda perante o fervor nacionalista e as promessa que a guerra sempre traz com ela, isto é, que há maior consciência crítica.

Por outro lado, esta sondagem mostra que a ideia da decadência do Estado-Nação é limitada. O Estado-Nação é uma invenção europeia, um dispositivo político que permitiu à Europa ter uma posição preponderante no mundo, mas que também a conduziu a duas guerras mundiais. O triunfo do liberalismo tem vindo a escavar a prestígio do Estado-Nação, mas isso passa-se, fundamentalmente, na Europa Ocidental ou nas zonas para onde a cultura política europeia foi transferida (América e Oceânia), embora nestes casos essa perda de prestígio pareça menos evidente. Curiosamente, aquilo que parece ter caído em desgraça entre nós está a ser recuperado globalmente. O fervor patriótico parece indicar que, fora do Ocidente, o Estado-Nação está bem e recomenda-se.

Por fim, os dados permitem perceber por que motivo o Ocidente está a perder importância no contexto global. A geopolítica global deriva do confronto entre comunidades políticas e não entre indivíduos. Quando os actores ocidentais têm um respaldo cívico tão pequeno é natural que o seu poder, que tecnologicamente ainda é grande, diminua e seja cada vez mais considerado como irrisório pelas potências emergentes, cujo espírito comunitário parece muito forte. O dado mais interessante é aquele que confronta os dados de duas zonas politicamente vizinhas. Enquanto os valores mais altos de espírito patriótico se encontram no Médio Oriente e no Norte de África (77%), os mais baixos estão na Europa Ocidental (25%). Não sei se as pessoas percebem as possíveis implicações, a médio e a longo prazo, deste estado de coisas.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Imitação

David Salle - Imitação (1993)

Não há nada ou quase nada, nos comportamentos humanos, que não seja aprendido, e toda a aprendizagem reenvia para a imitação. Se os homens, de repente, cessassem de imitar, todas as formas culturais desapareceriam. Os neurologistas lembram-nos frquentemente que o cérebro é uma enorme máquina de imitar. [Girard, René (1978). Des Choses Cachées Depuis la Fundation du Monde. Éditions Grasset & Fasquele, pp. 15]

Eis o conceito central da aprendizagem, imitação. Daí a importância do mestre, a quem discípulo deve imitar, até ao dia que, capacitado, pode "matá-lo" e tornar-se assim em mestre e exemplo a imitar. O conceito de mimésis, já em Aristóteles, era um conceito complexo. A real imitação nunca é uma reprodução mecânica do modelo. Este, porém, constitui-se no conteúdo noemático, para falar à maneira da fenomenologia, que a intencionalidade do discípulo visa. Esta intencionalidade implica uma configuração complexa, de gestos e atitudes, para lograr a imitação, implica um trabalho árduo para alcançar o modelo. Este trabalho, porém, tem uma função surpreendentemente libertadora. Aquele que trabalha arduamente para imitar vai descobrir as suas próprias forças e o seu próprio caminho. Assim, se libertará do modelo.

Aquilo que no ensino de hoje se propõe, porém, é o contrário disto. A imitação, e o concomitante trabalho árduo, foram banidos. A criança e o jovem não devem imitar. Terão de ser criativos e de ser inovadores. Não há maior armadilha que se possa fazer a uma criança ou a um jovem que exigir que ele seja criativo e inovador (fazem-me rir as idiotices - repito para que não restem dúvidas, idiotices - que se encontram em muitos documentos de avaliação de alunos, paridos por escolas, professores e organismos do ministério, sobre avaliar criatividades e espíritos de inovação). A criatividade e a inovação só podem nascer após um longo processo mimético. Como pode um sistema de ensino que baniu os modelos a imitar, que desprezou o acto mimético e o complexo trabalho que ele requer, exigir, com tamanha falta de pudor e de probidade intelectual, que crianças e jovens sejam criativos e inovadores? (averomundo, 2009/12/10)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Terrorismo, uma novidade?

Max Beckmann - Declaration of war (1914)

Os acontecimentos de ontem na Dinamarca, na sequência dos de Paris, no Charlie Hebdo, vieram mostrar, mais uma vez, que a Europa tem um verdadeiro problema dentro das suas fronteiras. O terrorismo não é uma coisa que acontece longe, fora do espaço das nossas soberanias, mas pode acontecer em qualquer lugar dentro de portas. Não é a primeira vez que os europeus lidam com o problema. O terrorismo da ETA, em Espanha, e do IRA, no Reino Unido, são fenómenos relativamente recentes. Um pouco mais afastados no tempo. temos as experiências da Fracção do Exército Vermelho (grupo Baader-Meinhof), na Alemanha, das Brigadas Vermelhas, em Itália, das FP 25 de Abril, em Portugal, ou de grupos neo-fascistas, em Itália. Se recuarmos aos finais do século XIX e inícios do século XX, encontramos o terrorismo anarquista. O assassinato de D. Carlos e do príncipe herdeiro foi um ato terrorista e a própria República foi atravessada por diversos ataques terroristas. O terrorismo político é, desde há muito, um elemento importante da vida política na Europa. Por que motivo sentimos então que, perante o terrorismo islâmico, estamos diante de um fenómeno novo?

Uma explicação será o enviesamento que a distância temporal sempre provoca na humanidade. Aquilo que acontece agora, mesmo que seja a repetição de algo acontecido muitas vezes, traz uma força e um vigor que acabam por ser interpretados como algo de novo. No caso do terrorismo, porém, isso seria um erro, pois ele faz parte da nossa história política desde há muito. No entanto, para muitos europeus existe uma efectiva novidade no fenómeno actual. O terrorismo anterior era uma espécie de ritual inscrito dentro de uma lógica de guerra civil. O que se confrontava, nesses casos, eram perspectivas ocidentais sobre a forma de organizar a sociedade e de entender a política. Por inimigas que fossem, elas eram ainda irmãs. Os grupos terroristas e as autoridades constituídas, apesar de tudo o que os distinguia, partilhavam um mundo, uma cultura, uma cosmovisão que, ao cindir-se, gerara o conflito, mas que o tornava compreensível, embora inaceitável. O terrorismo introduzido pelo fundamentalismo islâmico, apesar de os executantes dos actos de terror poderem ter nacionalidades europeias, nasce de um mundo, de uma cultura e de uma cosmovisão que é completamente estranha à europeia. Este facto torna as motivações do terrorismo mais difíceis de compreender pela opinião pública.

No terrorismo político de origem ocidental havia a intenção de substituir a ordem política por uma nova ordem política, mas ainda com valores ocidentais. Por odioso que fosse, era um problema de família, digamos assim. O mundo, a cultura e a cosmovisão que sustentam o terrorismo islâmico são-nos estranhos. E é essa estranheza que se torna inquietante, mais inquietante do que aquilo que nasce no meio de nós. A estranheza é acentuada por um outro factor. O terrorismo de origem ocidental queria trocar uma ordem que considerava má por outra considerada melhor, mais pura e mais verdadeira, mais de acordo com os autênticos valores civilizacionais, mesmo que isso fosse um devaneio utópico. O terrorismo islâmico quer destruir a nossa ordem não apenas política, mas também cultural e civilizacional. Os nossos valores não são divididos, para os militantes do islamismo radical, entre bons e maus. São todos considerados maus e devem ser todos destruídos. É esta rejeição que faz parecer o actual terrorismo uma novidade. Por isso, cada ataque parece-nos uma declaração de guerra. Contudo, os países europeus têm experiência histórica suficiente para lidarem com o problema e para o eliminar dentro do quadro do Estado de direito, dentro dos nosso valores.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Servir os carrascos

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Vítor Bento publicou no Observador um importante ensaio sobre o ajustamento imposto aos países da Europa do sul. Quem é Vítor Bento? É um respeitado economista, muito próximo de Cavaco Silva e do actual governo. O ensaio publicado desmente pura e simplesmente, com análise económica fundamentada, toda a história que o governo e a União Europeia nos andaram a impingir. Cito: “Esta forma de ajustamento tem, portanto, envolvido uma efectiva transferência de bem-estar social (incluindo emprego) dos Deficitários [onde se encontra Portugal] para os Excedentários [onde está a Alemanha]. E aqui reside a grande falha da argumentação moral que tem subjazido à condução do processo, pois que não são os Excedentários que têm estado a sustentar o bem estar dos Deficitários, mas o contrário.” Dito de outra maneira, e ao contrário do que tem sido propagandeado pelos adeptos do governo: não são os países pobres do sul da Europa, entre eles Portugal, que têm vivido à custa dos ricos, mas o contrário.

A Alemanha e outros países ricos têm aproveitado a crise para beneficiarem as suas elites à custa da pobreza gerada nos países sob intervenção da troika. Que os países ricos da Europa se portem assim é compreensível. Os fortes sempre gostaram de se alimentar do sangue dos fracos. O problema reside na colaboração dos governantes dos países do Sul com aqueles que espoliam os seus povos, destroem as suas classes médias, obrigam à venda dos seus recursos, condenam grande parte da população à miséria. Numa leitura benigna poder-se-ia dizer que os governantes dos países do Sul sofrem de Síndrome de Estocolmo, segundo o qual as pessoas submetidas a uma prolongada intimidação passam a simpatizar com os agressores, identificando-se com eles.

O problema é que os governantes dos países do sul da Europa não foram intimidados. Se os povos do sul da Europa são vítimas, conforme resulta do ensaio de Vítor Bento, os seus governantes não o são. Eles quiseram essas políticas, apostaram na punição dos seus povos e na destruição do Estado social. Eles aliaram-se aos carrascos, foram ainda mais severos que os próprios carrascos. O governo português cortou o dobro na Saúde do que tinha sido imposto pela troika. Em Portugal, o Serviço Nacional de Saúde foi posto de pantanas, a Educação tornou-se caótica e parte substancial da Ciência foi liquidada. Tudo por iniciativa do governo português. Não, os nossos governantes não sofrem de Síndrome de Estocolmo, mas o seu comportamento tem um nome. Sabe o leitor qual é?

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

O novo despotismo

Manuel Ruiz Pipó - La ruina de un destino

Os homens não estando já ligados entre si pelos laços de casta, de classe, de corporação, de família, sentem-se excessivamente inclinados a preocupar-se apenas com os seus interesses particulares, arrastados sempre a só se encararem a si mesmos e a fechar-se num individualismo estreito onde toda a virtude pública é asfixiada. O despotismo, em vez de lutar contra esta tendência, torna-a irresistível, pois retira aos cidadãos toda a paixão comum, toda a necessidade mútua, toda a necessidade de se entender, toda a ocasião para agir em comum; enclausura-os, por assim dizer, na vida privada. Eles tendiam já a colocar-se à parte: ele isola-os; eles arrefecem-se uns aos outros: ele gela-os. (Alexis de Tocqueville, L’ancien régime et la révolution, 1856)

Em 1856, na sua célebre análise do Antigo Regime e da Revolução Francesa, Tocqueville chama a atenção para que o despotismo não tem poder para restabelecer os laços de sociabilidade humana que dependiam da antiga ordem social e da estrutura da vida comunitária. Pelo contrário, o despotismo acelera o individualismo e mata a virtude pública que visa o bem comum. Passados mais de 150 anos da publicação da obra de Tocqueville devemos interrogar o significado do nosso presente, um presente fundado no individualismo, onde os homens vivem separados uns dos outros, e as relações entre eles são, essencialmente, frias, pois nenhuma paixão comum é suscitada na vida social.

O que nos espanta, a nós que vivemos em regimes democráticos, é que o efeito da democracia representativa foi idêntico ao que Tocqueville considerou ser o do despotismo. Isto reflecte-se em tudo, inclusive nas relações entre Estados dentro de uma União Europeia, como se pode observar na atitude do governo português e de outros países do sul perante o problema grego. O que aconteceu, fundamentalmente nas últimas duas décadas e meia, foi a contínua destruição da noção de bem comum e de virtude pública. A única virtude permitida é a do egoísmo. Cada um deve prosseguir os seus interesses pessoais, independentemente daquilo que poderia ser considerado o interesse comum.

Quando se fala na crise do regime democrático tende-se a devanear sobre o problema. Fala-se sobre o afastamento entre os representantes e os eleitores, da separação entre o eleito e a comunidade que o elege. O problema, contudo, é muito mais radical e reside na destruição de bem comum e na ausência de espírito de comunidade. Num mundo de indivíduos, onde cada um persegue o seu próprio bem, não faz qualquer sentido falar em representantes. Há representantes quando estes representam uma comunidade, um destino comum, um grupo com interesses partilhados. Quando a sociedade não é mais do que um agregado de indivíduos que perseguem o seu interesse, os representantes apenas se representam a si mesmos.

Se meditarmos o texto de Tocqueville, somos levados a perguntar se, para além da perspectiva de que o despotismo reforça o individualismo, não será a contrária, o individualismo gerar o despotismo, também verdadeira. A resposta parece inequívoca. A democracia representativa tornou-se meramente formal. Ela é a forma como se legitima o novo despotismo. Este nasce da atomização da vida social e, ao mesmo tempo, reforça essa atomização, num processo que se vai intensificando e tornando, paradoxalmente, a generalidade dos indivíduos cada vez mais impotentes e com menos capacidade de defender os seus próprios interesses. Uma democracia efectiva, para além de indivíduos,  necessita do espírito de comunidade e da noção partilhada de bem comum. Quando estes desaparecem, quando apenas o interesse privado subsiste, os próprios indivíduos – ou parte substancial deles – tornam-se impotentes e aquilo que eles têm pela frente já não é um destino escolhido por eles mas a dura necessidade de um fado que se lhe impõe, sem que eles percebam bem por quem.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

É sempre pior

Julião Sarmento - Baixastral (1982)

Não sei se foi um artigo no Jornal Torrejano ou um post num blog que mereceu uma reacção de um leitor acusando-me de pura animosidade contra Cavaco Silva. Isto foi já há muitos anos. Talvez esse leitor tenha razão. Nunca consegui ver qualquer grandeza no que diz ou faz Cavaco Silva. E isto não se deve ao seu posicionamento ideológico. Há pessoas de direita, com as quais não estou de acordo em pontos essenciais, mas a quem reconheço grandeza. Há pessoas de esquerda, com as quais posso estar de acordo, e que não me merecem qualquer consideração. Cavaco Silva, porém, é o tipo de político que consegue sempre surpreender-me. Consegue ser sempre mais banal do que a banalidade que lhe atribuo. Eu percebo que a direita europeia ande um pouco perdida com a história da Grécia. Nós, portugueses, somos dos que têm muito a ganhar se o actual governo grego conseguir o milagre de pôr fim à estúpida e criminosa política que lhe é imposta. Mas o que tem a dizer o Presidente da República? Perora sobre o dinheiro que Portugal emprestou à Grécia, fala como um taxista exaltado devido à malandragem que anda por aí. Cavaco Silva consegue sempre surpreender-me, repito. É sempre pior, muito pior, do que eu o imagino, e eu imagino-o já e sempre bastante mau.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Impressões (XX) - se a súbita paisagem

Edgar Degas - Paisaje

xx. se a súbita paisagem

se a súbita paisagem
rasgava o coração
os olhos perdiam-se
na luz da voragem
para se abrirem
às mãos que pediam
a certeza da carne
mesmo morta
mesmo embalsamada

(24/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O lixo do empreendedorismo

Wassily Kandinsky - Acções variadas (1941)

Há dias que a única coisa que apetece fazer é uma espécie de crónicas do lixo. Durante a minha vida não tem faltado lixo na sociedade portuguesa. Os dias de hoje não são mais sujos, apenas o lixo mudou. Por exemplo, a palavra empreendedorismo é puro lixo. Cheira tão mal que dá vómitos. Já cheira pior do que a palavra pedagogia, outro lixo. Agora o empreendedorismo atacou nas escolas e nas universidades, não há cão nem gato que não dê ou receba aulas de empreendedorismo. Mas não será útil educar os portugueses para serem empreendedores? Talvez, mas a questão não está na repetição absurda do vocábulo, a propósito de tudo e de nada, nem está em fazer cursos de empreendedorismo. Este tipo de coisas serve sempre para ocultar a realidade. O problema de Portugal não reside nos portugueses serem pouco empreendedores. Reside na falta de autonomia de muitos dos seus cidadãos e da consequente falta de iniciativa. Construir uma empresa é apenas um caso particular de iniciativa e de afirmação de autonomia pessoal. Educar as pessoas para a autonomia e para a iniciativa não tem nada a ver com cursos de empreendedorismo. É uma disposição das famílias e das instituições de ensino. Cursos de empreendedorismo e a reiteração mágica da palavra empreendedor não passam de uma idiotice inútil. A questão está mais acima. Como tornar as pessoas mais autónomas e com mais poder de iniciativa? Educando-as para a liberdade e para a responsabilidade, dando-lhe desde muito cedo a possibilidade de tomarem decisões e de arcar com a responsabilidade dos seus actos. Quando se chega aos cursos de empreendedorismo (que são úteis apenas para quem possui autonomia e capacidade de iniciativa) é porque se reconhece que não se consegue tocar nos sítios onde a falta de autonomia e a ausência do espírito de iniciativa nascem. Como compensação recorre-se ao lixo ideológico.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Arrogância e infantilidade

Julio Gómez Biedma - Poder

Com a vitória do Syriza, um conjunto de comentadores nacionais não se coibiu de demonstrar não apenas a arrogância – Fátima Bonifácio não se evitou sequer falar da putativa filáucia do actual ministro grego da economia – como ainda a profunda infantilidade dos actuais governantes gregos. Não me interessa se os novos governantes da Grécia são arrogantes e infantis. Talvez sejam. O que me interessa, porém, é que este grupo de comentadores, sempre tão irado contra a esquerda, nunca se questiona sobre a natureza moral da ordem do mundo. Este silêncio é revelador. Eu não sei se a esquerda tem boas soluções para o mundo. Sei, contudo, uma coisa. Sei que a ordem moral do mundo é inaceitável. Sei que as políticas que têm sido seguidas desde a revolução Reagan-Thatcher tornaram, através de decisões que visam proteger os privilégios dos mais ricos, muito maior o fosso entre ricos e pobres. E isso é, na minha óptica, imoral. O que todo esse conjunto de comentadores faz é suportar a imoralidade em vigor, salientando que qualquer tentativa de romper com o actual estado de coisas é ridículo, não passando de um projecto de tresloucados e fanáticos, desligados da realidade. A única coisa que, para eles, não é tresloucada é que os ricos se tornem cada vez mais ricos, que as classes médias se extingam, que a pobreza cresça, mesmo que haja muito mais riqueza. Estes comentadores estão sempre muito exaltados com os desvarios da esquerda, mas nunca se interrogam se é moralmente aceitável que tão poucos possuam tanto, enquanto cresce o exército dos pobres e desapossados. Nunca se interrogam sobre a moralidade daquilo que defendem. Para eles, é moral aquilo que os poderosos impõem. O resto é arrogância e infantilidade. Enfim.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Da necessidade da política


Devo a Zygmunt Bauman a descoberta do conceito de interregno tal como foi pensado por Gramsci. Interregno é uma situação na qual a antiga maneira de fazer as coisas já não funciona, mas ainda não se encontrou a nova forma de resolver os problemas. Este conceito é interessante para caracterizar os tempos que vivemos. De facto, as antigas soluções políticas – aquelas que faziam do Estado um mecanismo para equilíbrio social e funcionamento democrático da comunidade – deixaram de funcionar. As que têm sido agora utilizadas – fundadas na ideia de que o mercado livre resolverá todos os problemas – também mostraram que não servem. Como salienta Bauman, mesmo os governantes honestos estão espartilhados entre a fidelidade aos eleitores ou aos investidores. O ser fiel aos eleitores afasta os investidores. A lealdade aos investidores gera a fúria e o ressentimento dos eleitores. Este impasse caracteriza o interregno em que vivemos.

Não havendo solução disponível de momento, será importante compreender como é que as elites políticas europeias se deixaram espartilhar entre o capital global, do qual dependem os investimentos, e os eleitores locais, dos quais depende a legitimidade para governar. Esta situação não foi o resultado de uma evolução espontânea na vida das sociedades ocidentais. Ela não estava inscrita na natureza do mundo. Ela resultou de uma deliberação política que emancipou os capitais da tutela dos Estados. A situação em que vivemos foi uma criação das próprias elites políticas ocidentais que trocaram os seus eleitores pelos interesses dos grandes grupos financeiros. Dito de outra maneira, se hoje em dia as elites políticas ocidentais estão de pés e mãos atadas, isso acontece porque assim o quiseram.

Esta constatação não acaba com o interregno, não diz como se poderão solucionar os problemas existentes, nomeadamente o da destruição das classes médias, suporte dos regimes democráticos. Mas ao tornar claro que a actual situação se deve à decisão dos políticos e que tem na origem uma opção política, nós percebemos de imediato duas coisas. Em primeiro lugar, a alteração da situação não pode vir da economia, das finanças, dos mercados. Em segundo lugar, compreendemos que essa alteração tem de vir da política, de uma alteração das práticas e das opções governativas. O que coloca aos actores políticos um dilema. Ou deixam-se arrastar na situação actual, como o actual governo português, ou procuram uma saída, fazendo da política um campo de experiências e de inovação. A mercantilização da vida social e a aniquilação da política falharam. A política continua a ser necessária. Uma nova política.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

O meu gene leninista

Irakliy Toidze - Vladimir Lenin

Nos tempos conturbados que vivemos na União Europeia, com a ausência de pensamento que há muito tomou conta da nomenclatura europeia e da direita intelectual portuguesa, mas também a de esquerda, retomo um texto do meu antigo blogue averomundo (2009/12/13).

O filósofo Slavoj Zizek conta, no seu livro Violência (Relógio d'Água, 2009), uma anedota corrente na antiga União Soviética entre estudantes. «A anedota é a seguinte: perguntaram a Marx, a Engels e a Lenine se preferiam ter uma esposa ou uma amante. Como seria de esperar, Marx, bastante conservador no que diz respeito à esfera privada, respondeu: "Uma esposa!" - ao passo que Engels, com o seu lado de bon vivant, optou por declarar que preferia uma amante. Para surpresa geral, a resposta de Lenine foi: "Gostava de ter as duas!" Porquê? Haveria nele um traço de jouisseur decadente, que a sua austera imagem de revolucionário dissimularia? De maneira nenhuma. Eis a explicação de Lenine: "É que assim podia dizer à minha mulher que vou ter com a minha amante, e à minha amante que tenho de ir ter com a minha mulher..." - "E ia para onde, então?" - "Para um lugar isolado, para estudar, estudar e estudar!"» Esta história sublinhava a verdadeira fixação do dirigente da Revolução de Outubro no estudo.

Conta ainda Zizek que, aquando da catástrofe de 1914, Lenine refugiou-se na Suíça, onde em vez de se entregar a um desbragado activismo, se entreteve a estudar, estudar, estudar Hegel. E não pensem que se entreve com a Filosofia do Direito, ou com os ensaios sobre a História ou sequer com a Fenomenologia do Espírito, com a sua análise do Terror na Revolução Francesa ou a dialéctica do senhor e do escravo. Dedicou-se ao estudo daquilo que Hegel escreveu de mais abstracto, mais árido e mais difícil, a Ciência da Lógica. Mas o que gostava de sublinhar é a diferença desta atitude contemplativa de Lenine relativamente à conhecidíssima 11.ª tese de Marx ad Feuerbach: «Até agora os filósofos têm interpretado o mundo de diversas maneiras, mas o que verdadeiramente importa é transformá-lo!» Como é que um contemplativo, um homem que afinal estava interessadíssimo em interpretar o mundo, se tornou no responsável por um dos maiores acontecimentos históricos do século XX? Contrariamente ao que se pensa, não são aqueles que fazem muitas coisas que mudam o curso dos acontecimentos. Quantas mudanças históricas dependem do simples acto de estar quieto e pensar. Mas mesmo que não mude o mundo, aquele que pensa tem uma vantagem sobre os activistas, não cria desordem pela sua acção.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

A fragilidade da vida civilizada

J. G. Platzer - La venganza de Sansón

Não é novidade, nunca é novidade, mas a fragilidade da vida civilizada só salta aos olhos quando a barbárie deixa de esconder a face e se manifesta à luz do dia. O comportamento do ISIS no Iraque e na Síria é intolerável, a morte do piloto jordano é absolutamente inaceitável bem como as decapitações a que se entrega na sua estratégia de terror. Mas também é inaceitável a resposta dos jordanos ou a proposta da Al-Azhar para crucificação de jihadistas (ver aqui). A mais perigosa ilusão é considerar que tudo isso é um problema longínquo, coisas que apenas acontecem no Médio-Oriente ou em África ou em paragens mais longínquas. Se puderem, aqueles que semeiam a barbárie naqueles lugares não hesitarão um segundo em semeá-la aqui, como se viu no caso do Charlie Hebdo. Nós damos por adquiridas as nossas instituições e o nosso modo de vida, julgamos que estamos a salvo deste tipo de horror. Isso, porém, não é verdade. A vida civilizada só existe se estivermos dispostos a não abdicar dela, se estivermos dispostos a defendê-la, se tivermos consciência de que, de um momento para o outro, o horror pode entrar pela nossa casa. O Médio-Oriente  é já ali.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Impressões (XIX) - partir para o deserto

Benvenuto Benvenuti - I Cardi (1897)

xix. partir para o deserto

partir para o deserto
trocar as frésias
pelo ardor do cardo
e esperar um deus
no naufrágio da tarde

partir para o deserto
deixar as praças
na sombra da infância
e aguardar a luz
sob o sol que arde

(23/10/2009 - recuperação do ciclo Impressões do meu antigo blogue averomundo)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O perdão da dívida

Salvador Dali - Ensoñación - Consigna: malgastar la deuda total (1933)

A questão do perdão da dívida grega - embora não seja isso o pretendido pelo actual governo - levanta um interessante debate moral. O perdão das dívidas, num âmbito bem definido, é moralmente certo ou errado? A crer no actual governo português, em linha com as pretensões alemãs e de outras potências da União Europeia, e nos comentadores e bloggers que o apoiam o perdão da dívida parece ser moralmente errado. A favor da tese do governo joga o senso comum. Os devedores não têm o dever absoluto de ressarcir os credores? E o senso comum responderá que sim, sem qualquer hesitação.

A desconfiança sobre a bondade moral de não perdoar, em certas ocasiões, as dívidas tem, contudo, um longo fundo histórico. Já o Código de Hamurabi, escrito na Mesopotâmia há 3500 anos, previa a possibilidade de perdoar dívidas excessivas ou impagáveis (ver aqui). Também na Bíblia se encontra a referência ao perdão. No Deuteronómio, quinto livro do Antigo Testamento, é referido que as dívidas devem ser canceladas ao sétimo ano (15:1-2 e 15:9). Também no Novo Testamento, em Mateus 18:27-35, é realçado o valor moral de quem perdoa a dívida por oposição daquele que o não faz. Do ponto de vista da história recente é conhecido perdão de 60% da colossal dívida da Alemanha, depois desta ter levado o mundo a duas guerras mundiais. A História parece registar uma visão diferente da actual nomenclatura da União Europeia e do governo português. Em certas ocasiões, quando as dívidas são excessivas ou impagáveis, é um acto moralmente bom o perdão da dívida. Em todos os casos citados é possível perceber que o perdão da dívida é também um acto de afirmação da civilização sobre a barbárie.

Para além de argumentos histórico-civilizacionais, que outros argumentos podemos aduzir em defesa de perdoar em certas circunstâncias as dívidas? Do ponto de vista de uma comunidade política, o perdão da dívida é moralmente aceitável quando ela é o resultado da acção conjugada de elites dirigentes incapazes e/ou corruptas e da pressão dos credores para que a dívida cresça. Por outro lado, em analogia com o que se está a fazer na Croácia (ver aqui e aqui) e tendo em consideração a moral kantiana, poder-se-á ainda pressupor que o perdão da dívida é moralmente aceitável se esta, pelo seu carácter excessivo e impagável, aniquilar a humanidade na pessoa do devedor ou em parte importante das pessoas que pertençam a uma comunidade política excessivamente endividada. Estes dois argumentos são suficientes para tornar evidente a bondade moral do perdão das dívidas.

Isto não significa que comunidades e indivíduos devedores não tenham o dever moral de cuidar das suas finanças, nem que a contumácia no endividamento deva ser continuamente coberta pelo perdão. Significa apenas que os credores, em certas circunstâncias, têm o dever moral (e aqui a leitura do Deuteronómio 15: 1-9 é muito interessante até devido às nuances no tratamento de estrangeiros e de compatriotas) de perdoar as dívidas, ou parte delas, de forma a restituir a plena humanidade aos que caíram na terrível armadilha da dívida excessiva. Esta bondade moral será sempre um sintoma de progresso civilizacional e, contrariamente ao que pensam os actuais poderes europeus excessivamente presos à ideia de punição dos filhos pródigos, será ainda uma inteligente atitude política. Quem fala em perdão da dívida poderá falar, ainda com mais propriedade, em reestruturação dessa mesma dívida para que os devedores possam organizar a sua vida e, podendo aceder a uma vida digna e civilizada, possam pagar o que devem.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Identidades ideológicas

Ben Shahn - Identidad (1968)

Interrogo-me muitas vezes sobre as razões do meu interesse pela política. Há razões circunstanciais. Por exemplo, o facto de pertencer a uma geração que viveu até aos dezassete anos em ditadura, que tinha pela frente o espectro da guerra colonial, que recebeu dos militares a liberdade que tanto desejou quando começou a tomar consciência da situação em que vivia. Essas circunstâncias, contudo, não explicam tudo, nem explicam o essencial. O meu interesse pela política deriva do problema do mal, é um interesse metafísico. O poder – e a política – é o lugar do mal. O poder político não é uma mera gestão organizacional de uma comunidade. Ele existe porque o homem pratica o mal. Sem ele, a violação dos direitos naturais seria constante e a guerra hobbesiana de todos contra todos seria a norma. O próprio poder, porém, como salientou Paul Ricœur, pode ser o lugar do mal. Não apenas porque usa a violência – violência legítima, mas violência – para punir o mal, mas porque pode ser o lugar a partir do qual o mal, sob o império de leis perversas fundadas em interesses particulares, se organiza para atentar contra os seres humanos.

O meu interesse pela política é quase uma perversão assente no fascínio perante o espectáculo da pura maldade em acção. Pessoas cordatas e afáveis não hesitam em tomar decisões que destroem pura e simplesmente a vida dos outros, que conduzem, sem que os autores evidenciem um arrepio na consciência, à miséria ou à morte daqueles que sofrem o resultado de tais decisões. É esta consciência fascinada pela metafísica do mal em acção que me tornou incompreensível a cegueira ideológica que vejo pulular por aí. Isso não significa que eu não tenha uma posição política e que não tenha uma perspectiva ideológica sobre a sociedade. Significa apenas que eu desconfio da minha posição, significa que consigo descobrir nela as sementes do mal em acção, significa que não a vendo como se fosse o bem definitivo sobre a terra.

Eu sei que a identidade ideológica é para muitos um elemento central da sua identidade pessoal. Isso significa que resistem deliberadamente, mesmo perante a mais pura evidência de que estão errados, a reconhecer o erro. Pelo contrário, quanto mais evidente é o erro e perigoso é o desastre mais encarniçadamente o defendem. Fazer da identidade ideológica um elemento central da identidade pessoal é optar pela cegueira, pelo não querer escutar as razões do outro. Se tiverem possibilidade – se o poder lhes chegar à mão – não hesitarão em praticar o mal, travestindo-o de bem, mesmo que a consciência moral lhes sugira que algo está errado. Na verdade, a ideologia tornou-se para essas pessoas uma espécie de certificação da sua existência. Se sentem que certos pressupostos ideológicos são postos em causa, ficam em pânico, pois desconfiam que é a sua pessoa que é atingida no núcleo central da sua identidade. As eleições gregas do último fim-de-semana têm sido, à direita e à esquerda, uma ocasião privilegiada para estes exercícios de identidade ideológica cega e perigosa. O pavoroso mas fascinante espectáculo do mal torna-se, deste modo, mais próximo da vida dos homens. E isso não pode deixar de me interessar.