Ben Shahn - Identidad (1968)
Interrogo-me muitas vezes sobre as razões do meu interesse pela
política. Há razões circunstanciais. Por exemplo, o facto de pertencer a uma
geração que viveu até aos dezassete anos em ditadura, que tinha pela frente o
espectro da guerra colonial, que recebeu dos militares a liberdade que tanto
desejou quando começou a tomar consciência da situação em que vivia. Essas
circunstâncias, contudo, não explicam tudo, nem explicam o essencial. O meu
interesse pela política deriva do problema do mal, é um interesse metafísico. O
poder – e a política – é o lugar do mal. O poder político não é uma mera gestão
organizacional de uma comunidade. Ele existe porque o homem pratica o mal. Sem
ele, a violação dos direitos naturais seria constante e a guerra hobbesiana de
todos contra todos seria a norma. O próprio poder, porém, como salientou Paul
Ricœur, pode ser o lugar do mal. Não apenas porque usa a violência – violência legítima,
mas violência – para punir o mal, mas porque pode ser o lugar a partir do qual
o mal, sob o império de leis perversas fundadas em interesses particulares, se
organiza para atentar contra os seres humanos.
O meu interesse pela política é quase uma perversão assente no
fascínio perante o espectáculo da pura maldade em acção. Pessoas cordatas e
afáveis não hesitam em tomar decisões que destroem pura e simplesmente a vida
dos outros, que conduzem, sem que os autores evidenciem um arrepio na
consciência, à miséria ou à morte daqueles que sofrem o resultado de tais decisões.
É esta consciência fascinada pela metafísica do mal em acção que me tornou
incompreensível a cegueira ideológica que vejo pulular por aí. Isso não
significa que eu não tenha uma posição política e que não tenha uma perspectiva
ideológica sobre a sociedade. Significa apenas que eu desconfio da minha
posição, significa que consigo descobrir nela as sementes do mal em acção, significa
que não a vendo como se fosse o bem definitivo sobre a terra.
Eu sei que a identidade ideológica é para muitos um elemento central
da sua identidade pessoal. Isso significa que resistem deliberadamente, mesmo
perante a mais pura evidência de que estão errados, a reconhecer o erro. Pelo
contrário, quanto mais evidente é o erro e perigoso é o desastre mais
encarniçadamente o defendem. Fazer da identidade ideológica um elemento central
da identidade pessoal é optar pela cegueira, pelo não querer escutar as razões
do outro. Se tiverem possibilidade – se o poder lhes chegar à mão – não hesitarão
em praticar o mal, travestindo-o de bem, mesmo que a consciência moral lhes
sugira que algo está errado. Na verdade, a ideologia tornou-se para essas
pessoas uma espécie de certificação da sua existência. Se sentem que certos
pressupostos ideológicos são postos em causa, ficam em pânico, pois desconfiam
que é a sua pessoa que é atingida no núcleo central da sua identidade. As
eleições gregas do último fim-de-semana têm sido, à direita e à esquerda, uma
ocasião privilegiada para estes exercícios de identidade ideológica cega e
perigosa. O pavoroso mas fascinante espectáculo do mal torna-se, deste modo,
mais próximo da vida dos homens. E isso não pode deixar de me interessar.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.