Manuel Ruiz Pipó - La ruina de un destino
Os homens não estando já ligados
entre si pelos laços de casta, de classe, de corporação, de família, sentem-se
excessivamente inclinados a preocupar-se apenas com os seus interesses
particulares, arrastados sempre a só se encararem a si mesmos e a fechar-se num
individualismo estreito onde toda a virtude pública é asfixiada. O despotismo, em
vez de lutar contra esta tendência, torna-a irresistível, pois retira aos
cidadãos toda a paixão comum, toda a necessidade mútua, toda a necessidade de
se entender, toda a ocasião para agir em comum; enclausura-os, por assim dizer,
na vida privada. Eles tendiam já a colocar-se à parte: ele isola-os; eles
arrefecem-se uns aos outros: ele gela-os. (Alexis de Tocqueville, L’ancien régime et la révolution, 1856)
Em 1856, na sua célebre análise do Antigo Regime e da Revolução
Francesa, Tocqueville chama a atenção para que o despotismo não tem poder para
restabelecer os laços de sociabilidade humana que dependiam da antiga ordem
social e da estrutura da vida comunitária. Pelo contrário, o despotismo acelera
o individualismo e mata a virtude pública que visa o bem comum. Passados mais
de 150 anos da publicação da obra de Tocqueville devemos interrogar o
significado do nosso presente, um presente fundado no individualismo, onde os
homens vivem separados uns dos outros, e as relações entre eles são,
essencialmente, frias, pois nenhuma paixão comum é suscitada na vida social.
O que nos espanta, a nós que vivemos em regimes democráticos, é que o
efeito da democracia representativa foi idêntico ao que Tocqueville considerou
ser o do despotismo. Isto reflecte-se em tudo, inclusive nas relações entre Estados
dentro de uma União Europeia, como se pode observar na atitude do governo
português e de outros países do sul perante o problema grego. O que aconteceu,
fundamentalmente nas últimas duas décadas e meia, foi a contínua destruição da
noção de bem comum e de virtude pública. A única virtude permitida é a do
egoísmo. Cada um deve prosseguir os seus interesses pessoais, independentemente
daquilo que poderia ser considerado o interesse comum.
Quando se fala na crise do regime democrático tende-se a devanear
sobre o problema. Fala-se sobre o afastamento entre os representantes e os
eleitores, da separação entre o eleito e a comunidade que o elege. O problema,
contudo, é muito mais radical e reside na destruição de bem comum e na ausência
de espírito de comunidade. Num mundo de indivíduos, onde cada um persegue o seu
próprio bem, não faz qualquer sentido falar em representantes. Há
representantes quando estes representam uma comunidade, um destino comum, um
grupo com interesses partilhados. Quando a sociedade não é mais do que um
agregado de indivíduos que perseguem o seu interesse, os representantes apenas
se representam a si mesmos.
Se meditarmos o texto de Tocqueville, somos levados a perguntar se,
para além da perspectiva de que o despotismo reforça o individualismo, não será
a contrária, o individualismo gerar o despotismo, também verdadeira. A resposta
parece inequívoca. A democracia representativa tornou-se meramente formal. Ela
é a forma como se legitima o novo despotismo. Este nasce da atomização da vida
social e, ao mesmo tempo, reforça essa atomização, num processo que se vai
intensificando e tornando, paradoxalmente, a generalidade dos indivíduos cada
vez mais impotentes e com menos capacidade de defender os seus próprios
interesses. Uma democracia efectiva, para além de indivíduos, necessita do
espírito de comunidade e da noção partilhada de bem comum. Quando estes desaparecem, quando apenas o interesse privado subsiste, os próprios indivíduos –
ou parte substancial deles – tornam-se impotentes e aquilo que eles têm pela
frente já não é um destino escolhido por eles mas a dura necessidade de um fado
que se lhe impõe, sem que eles percebam bem por quem.
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