domingo, 1 de fevereiro de 2015

Identidades ideológicas

Ben Shahn - Identidad (1968)

Interrogo-me muitas vezes sobre as razões do meu interesse pela política. Há razões circunstanciais. Por exemplo, o facto de pertencer a uma geração que viveu até aos dezassete anos em ditadura, que tinha pela frente o espectro da guerra colonial, que recebeu dos militares a liberdade que tanto desejou quando começou a tomar consciência da situação em que vivia. Essas circunstâncias, contudo, não explicam tudo, nem explicam o essencial. O meu interesse pela política deriva do problema do mal, é um interesse metafísico. O poder – e a política – é o lugar do mal. O poder político não é uma mera gestão organizacional de uma comunidade. Ele existe porque o homem pratica o mal. Sem ele, a violação dos direitos naturais seria constante e a guerra hobbesiana de todos contra todos seria a norma. O próprio poder, porém, como salientou Paul Ricœur, pode ser o lugar do mal. Não apenas porque usa a violência – violência legítima, mas violência – para punir o mal, mas porque pode ser o lugar a partir do qual o mal, sob o império de leis perversas fundadas em interesses particulares, se organiza para atentar contra os seres humanos.

O meu interesse pela política é quase uma perversão assente no fascínio perante o espectáculo da pura maldade em acção. Pessoas cordatas e afáveis não hesitam em tomar decisões que destroem pura e simplesmente a vida dos outros, que conduzem, sem que os autores evidenciem um arrepio na consciência, à miséria ou à morte daqueles que sofrem o resultado de tais decisões. É esta consciência fascinada pela metafísica do mal em acção que me tornou incompreensível a cegueira ideológica que vejo pulular por aí. Isso não significa que eu não tenha uma posição política e que não tenha uma perspectiva ideológica sobre a sociedade. Significa apenas que eu desconfio da minha posição, significa que consigo descobrir nela as sementes do mal em acção, significa que não a vendo como se fosse o bem definitivo sobre a terra.

Eu sei que a identidade ideológica é para muitos um elemento central da sua identidade pessoal. Isso significa que resistem deliberadamente, mesmo perante a mais pura evidência de que estão errados, a reconhecer o erro. Pelo contrário, quanto mais evidente é o erro e perigoso é o desastre mais encarniçadamente o defendem. Fazer da identidade ideológica um elemento central da identidade pessoal é optar pela cegueira, pelo não querer escutar as razões do outro. Se tiverem possibilidade – se o poder lhes chegar à mão – não hesitarão em praticar o mal, travestindo-o de bem, mesmo que a consciência moral lhes sugira que algo está errado. Na verdade, a ideologia tornou-se para essas pessoas uma espécie de certificação da sua existência. Se sentem que certos pressupostos ideológicos são postos em causa, ficam em pânico, pois desconfiam que é a sua pessoa que é atingida no núcleo central da sua identidade. As eleições gregas do último fim-de-semana têm sido, à direita e à esquerda, uma ocasião privilegiada para estes exercícios de identidade ideológica cega e perigosa. O pavoroso mas fascinante espectáculo do mal torna-se, deste modo, mais próximo da vida dos homens. E isso não pode deixar de me interessar.

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