terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Venezuela e a esquerda

Eugène Delacroix - A Justiça (1833-37)

Dois dos argumentos que são mobilizados, em certos sectores da esquerda política, para a defesa do regime de Nicolás Maduro, na Venezuela, estão relacionados um com o passado histórico de opressão e de violenta discriminação social, que o chavismo terá começado a mitigar, e outro com a suspeita de que os oposicionistas a Maduro não são gente recomendável, justificando-se, com esses argumentos, o apoio ao regime actual e à deriva autoritária a que se entrega. Podemos, contudo, aceitar os argumentos sem que seja necessário aceitar a conclusão, a necessidade de apoio ao regime venezuelano. Podemos encontrar um critério, vindo da esquerda, para pensar o problema de outra maneira?

Um bom ponto de partida é a Teoria da Justiça de John Rawls. Não quer dizer que todo o pensamento de esquerda tenha de derivar de Rawls, mas ele é um bom ponto de partida para conjugar as tradições da liberdade e da equidade sociais. A questão central na teoria rawlsiana é a dos dois princípios de justiça que devem regular as sociedades. Aqui não nos interessa nem a dedução teórica desses princípios, nem a discussão filosófica em que surgem, nem o debate com as perspectivas libertárias de direita. Bastam os princípios.

O primeiro princípio, o princípio da liberdade, diz-nos que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema de liberdades básicas que seja compatível com sistema semelhante para todos. O segundo princípio, princípio da diferença e da igualdade de oportunidades, diz-nos que as desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas para que, simultaneamente: a. redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados (maximin); b. sejam consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades.

Rawls, com estes dois princípios, defende tanto as liberdades como a existência de diferenças sociais ligadas, através da igualdade de oportunidades, ao benefícios de todos, com destaque para os mais desfavorecidos. O que é importante para o debate sobre a questão venezuelana é o sistema de prioridades entre princípios proposto por Rawls. O que nos diz ele? Diz-nos que o princípio da liberdade tem prioridade sobre o princípio da diferença e da igualdade de oportunidades. Isto significa que a implementação do segundo princípio, a implementação da igualdade de oportunidades não pode ser feita pela violação da liberdade e dos direitos dos outros cidadãos.

Isto torna claro que, do ponto de vista da esquerda, o apoio a Maduro é indefensável, devido à infracção sistemática do princípio da liberdade. Algumas posições à esquerda assentam numa falácia do falso dilema, dizendo que só há duas soluções possíveis. Ou as políticas de Maduro ou um novo regime cleptocrático das elites sociais. Os princípios da justiça de Rawls são um começo para esboçar uma política à esquerda que não seja um mero caudilhismo assistencialista e cada vez mais negador das liberdades básicas de que todos os cidadãos devem usufruir. E isso seria muito mais útil para as populações do que os devaneios revolucionários bolivarianos.

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