segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

E se a democracia representativa acabar?

Juan Barjola, Multitud, 1990

A democracia representativa foi uma invenção genial. Com ela tinha-se o melhor de dois mundos. A possibilidade de todos participarem no processo político e uma barreira sólida, embora discreta, aos desmandos e delírios da massa. A democracia representativa foi inventada contra as pretensões irrazoáveis da massa. Não é perfeita, o seu formalismo pode ser, e tem sido, capturado por interesses particulares, mas nunca prometeu um paraíso na terra. É um regime cordato que tem permitido uma vida civilizada entre homens com ideias e paixões distintas. Agora que a revolução digital está a dinamitar a democracia representativa e a abrir caminho para uma nova forma de democracia fundada no gosto e arbítrio da massa, no seu rancor ao outro, começa a justificar-se toda a desconfiança com que a democracia foi olhada desde Platão. O gosto da massa, os seus instintos mais rudes, a sua incompreensão por aquilo que é mais elevado, o ódio e ressentimento ao que não compreende são o caminho que, não sendo atalhado, destruirá o que ainda há de nobre na democracia representativa, podendo abrir a via para um totalitarismo que, devido ao desenvolvimento tecnológico, fará dos totalitarismos do século XX uma brincadeira de crianças.

domingo, 29 de dezembro de 2019

A Origem da Luz 4

Zao Wou-Ki, 10-2-76

O tempo em que voltavas com os teus mostruários,
pequenos faróis vermelhos, ébrios de tanto caminhar.
Sonolentas bicicletas iam e vinham, cerziam a aldeia
de lés-a-lés, como se um deus infrutífero descesse e
poisasse insensato na calma placidez dos dias.

Aqui, destas janelas, avistei o insuspeitado mundo
e nada era puro ou mácula alguma habitava
o regaço das mulheres. As coisas eram o enorme
incêndio de serem apenas coisas, pedaços terríveis
na sujeição ao tempo, o feroz tribunal sem lei.

Eras a presença tutelar, o meu respeito,
caminho de argila e calcário a abrir-me ao mundo.
Trazias-me as cores e um dever ser, o crime jamais
alguém o pagará. Pedra a pedra o universo cresceu e
sobre mim desabou. Nele um deus infrutífero nascia.

(1981)

sábado, 28 de dezembro de 2019

Dos milagres em educação

Pablo Picasso, Head of the Medical Student, 1907

Fiquei espantado, mas há pouco descobri que nos colégios católicos não se acredita em milagres. Estive a ler a ficha de avaliação de uma aluna dum desses colégios e, para espanto meu, a única coisa em que acreditam é que ela deve trabalhar mais, ser mais organizada, dedicar-se mais. Portanto, se os alunos nesses colégios quiserem ter boas avaliações a única coisa a fazer é esforçarem-se e não esperar pela intervenção graciosa do Espírito Santo. Uma ficha daquelas no ensino público gerava uma revolta parental. Nos colégios privados – bons, pois também há dos outros – os pais pagam e não protestam, não culpam os professores por aquilo que os filhos não fazem. Num colégio privado diz-se aquilo que o aluno tem de fazer, na escola pública – onde, apesar de ser laica, se acredita muito em milagres – aquilo que se indica é o que os professores têm de fazer para que os alunos cheguem ao sucesso, mesmo que estes não queiram fazer absolutamente nada. Quanto a milagres estamos conversados. Os católicos, quando se trata de educação, não acreditam neles, mas os republicanos laicos e socialistas vivem num mundo povoado de milagres.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Dizer não

Johan Hagemeyer, Wires, 1928
Também a orientação dos sonhos que guiam a humanidade é tocada pela volubilidade, ainda que isso não seja sempre aparente. Durante muito tempo sonhou-se em ligar toda a humanidade. Estabelecer contacto era um imperativo moral. A partir de certa altura estenderam-se por toda a Terra milhões de quilómetros de cabos com a esperança que, cingidos os homens pela força do cobre, estes comunicassem e, na hipótese mais favorável, se entendessem. A imaginação, todavia, nunca descansa e, agora que toda a gente parece estar enredada numa teia global, sonha em desligar, cortar a comunicação, serrar os cabos vistos como amarras que prendem as pessoas, numa comunhão que parece estar a tornar-se insuportável. O trabalho da imaginação não começa por ser um reproduzir da realidade nem, tão pouco, criar um esquema que produzirá o que é novo. O primeiro balbucio é quase sempre um dizer não.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Nocturnos 2

Izis, Trafalgar Square, London, UK, 1950

Quantas vezes a noite começa com uma promessa e acaba com uma desilusão. Sábio é aquele que nunca deixa que a ilusão se desfaça e que a realidade invada a noite com os holofotes do meio-dia, que a tudo iluminam e a tudo destroem.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Iluminações de Natal


De todas as coisas que chocam com o espírito de Natal a menor delas não será as iluminações natalícias. Começaram nos grandes centros urbanos e espalharam-se paulatinamente por todo o lado. Com a sua democratização, grandes e pequenas cidades transformaram o Natal numa espécie de Carnaval, muitas vezes de péssimo gosto. As iluminações fazem parte de uma estratégia – gerada espontaneamente ou pela mão invisível do mercado – cujo resultado é rasurar tudo aquilo que é central no Natal dos cristãos, o mistério de Deus que se faz homem num estábulo de Belém.

A degradação do Natal tem uma origem curiosa. A racionalização do mistério da encarnação, a leitura literal da história narrada no evangelho de Lucas, a transformação do cristianismo numa moral social, agora em conflito com outras morais sociais, todas estas coisas fizeram do Natal não um acontecimento a ser vivido por cada um mas uma data comemorativa, uma espécie de feriado cívico de âmbito civilizacional. Comemora-se o Natal no mundo cristão como se comemora a tomada da Bastilha em França, o 4 de Julho nos EUA ou o 25 de Abril em Portugal. Uma grande festa, um momento feérico e uma orgia de consumo, tudo às avessas da história narrada pelo evangelista.

A modernidade, o espírito das Luzes, o triunfo da ciência e da economia de mercado são factores que contribuíram para o desencantamento do mundo, para a perda de sentido tanto dos mitos como dos mistérios religiosos. O cristianismo era, na sua origem, uma religião mistérica, um programa existencial para que cada homem se transformasse em Cristo. Tudo isto se tornou, há muito, radicalmente estranho a todos nós ocidentais, sejamos ateus, agnósticos ou crentes. Mesmo numa época como a nossa em que a irracionalidade das crenças e dos comportamentos cresce rapidamente, em que as próprias Luzes parecem querer apagar-se, o mistério da encarnação perdeu o sentido, tornando-se o Natal num exercício fastidioso de compras, encontros e desencontros.

As iluminações natalícias são o sintoma de que o Natal está morto no mundo ocidental. A luz de Belém foi substituída pelo néon que anima o espírito duma época que fez da compra e da venda a razão suprema e o sentido último da vida dos homens. Ao perder-se a substância do acontecimento, ao ficar-nos vedada a capacidade de compreensão dos símbolos que se manifestam no Advento, resta-nos fingir uma grande alegria embrulhada em presentes, almoços e jantares e nessas iluminações que deixam em nós um desconsolo irreparável. Um bom Natal.

[A minha crónica natalícia em A Barca]

sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

Serviços públicos, superavit, sistemas eleitorais e vergonha


DEGRADAÇÃO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS. Existe a ideia de que a degradação dos serviços públicos se resolveria com uma melhor gestão. Qualquer partido a defende desde que esteja na oposição. O problema, porém, é outro, a falta de dinheiro. As políticas de restrição orçamental não terminaram com a saída da troika e o fim do governo de Passos Coelho. Continuaram na legislatura seguinte, baseada numa coligação parlamentar das esquerdas, e continuam agora. A razão é muito simples. A dívida é enorme, os nossos parceiros europeus nem querem ouvir falar na sua reestruturação e o país continua a precisar de ter juros muito baixos. O resto faz parte do combate partidário.

SUPERAVIT ORÇAMENTAL. Consta que o governo, no orçamento para o próximo ano, se propõe alcançar um saldo orçamental positivo. A acontecer será a primeira vez nos últimos 50 anos, o que inclui governos da própria ditadura com saldo negativo. Há quem veja o acontecimento como negativo e ache que o dinheiro deveria ser gasto, continuando o país a endividar-se. No entanto, tem que chegar um momento em que a comunidade – e o Estado é a comunidade organizada para tomar decisões sobre a vida comum – tem de olhar para a realidade e viver com o que tem. Aquilo que foi iniciado no governo PSD-CDS e continuado na anterior legislatura deve prosseguir. As contas em ordem tornam o país mais forte e protegem as pessoas das visitas indesejáveis das troikas.

UM SISTEMA ELEITORAL A EVITAR. As eleições em Inglaterra confirmaram a legitimidade de Boris Johnson e dos resultados do referendo que conduz à saída da Inglaterra do projecto Europeu. O curioso é que esta vitória se dá quando o número de votantes dos partidos pró-brexit é menor do que o número de votantes nos partidos pró-UE. Como se explica isto? Pelo sistema eleitoral inglês, o qual distorce acentuadamente a representação proporcional. O Partido Conservador obteve 43% dos votos mas alcançou 56% dos deputados.

O PROBLEMA DA VERGONHA. Portugal não tem uma comunidade muçulmana significativa nem existe um qualquer problema que ponha em causa a integridade nacional como em Espanha. Estas são as grandes razões que têm feito crescer a direita populista na Europa. André Ventura, retirando alguma animosidade com a comunidade cigana e um coro de ressentidos, precisa de inventar um eleitorado. A estratégia é a indignação e a vitimização. Ferro Rodrigues caiu na esparrela. Os democratas – em particular os de esquerda – devem ponderar bem o modo como enfrentam quem não perderá qualquer minudência para fazer um drama de faca e alguidar. É um problema de luta pelo mercado eleitoral.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

A Origem da Luz 3

Arshile Gorky, Good hope II (Pastoral), 1945

Observar a macieira, espectro no centro
da terra, era de todos o primeiro sonho.
Parados no soalho, olhavam especados.
Tomo da memória a coloração dos sons,
o timbre dos odores, a caducidade dos gestos.

Dos vidros, restava a memória da guerra,
a recordação profana do corpo dilacerado.
Os deuses desciam envoltos em seus halos,
em breves haustos abençoavam pedras e heras
que suspensas em ocultas mãos amavam.

Galáxia ou um império de frutos a nascer,
os dedos aprenderam a luz da noite. A maçã
reinava nas brancas paredes dos quartos,
onde silhuetas jogavam os primeiros dados.
Um pequeno raio fulgia e afogava os astros.

(1981)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Nocturnos 1

Bill Brandt, St. Paul’s Cathedral in the Moonlight, 1939
A noite cerra-se sobre a catedral, onde um Cristo permanece na sua eterna encruzilhada entre a vida e a morte, entre o céu e a terra. O luar alivia-lhe, por instantes, a dor, enquanto os homens dormem estendidos na escuridão da noite. 

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Alma Pátria 58: Fernanda Peres, Fado das Lágrimas



Uma viagem até 1958, ao Fado das Lágrimas escrito por Alberto Janes e cantado por Fernanda Peres (1931-2016). Gravado num 45 rpm, forma conjunto com Fado Corrido, Já Não Te Quero e Nem às Paredes Confesso. O pano de fundo ideológico do tema é recorrente do fado daquela época. Desgosto, almas a sangrar, prantos e segredos, choros e temporais e, como não podia deixar de ser, a sina. Este fatalismo da afectividade torna-se, se se abandona os lugares comuns, difícil de interpretar. Seria ele uma emanação ideológica da situação política que se vivia ou seria antes, uma espécie de protesto inconsciente que se expressa na ideia de que na ausência da liberdade tudo está submetido à dura necessidade, ao puro fatalismo? Apesar de Fernanda Peres ser hoje em dia desconhecida fora dos círculos do fado, a alma da pátria chorava muito bem bem na sua voz de fadista.

sábado, 14 de dezembro de 2019

Beatitudes (18) Paraíso

Alfred Cheney Johnston, Helen Lee Worthing, Ziegfeld girl, 1920
Todo o paraíso se abre como uma promessa e, enquanto promessa permanecer, não deixará de ser esse jardim eterno que se anuncia aos olhos ou floresce no coração de quem ao acaso por ele passa.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Ensaio sobre a luz (75)

Fernando Lemos, Light and Stubbornness, 1949
Toda a luz começa como um ensaio, a tímida experiência de enfrentar as trevas, inundando-as lentamente, criando na noite pequenas fracturas, abrindo aqui e ali frestas, passagens que se dilatam para que a gigantesca onda luminosa se sobreponha e transforme em luz o que era teimosa escuridão.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A Origem da Luz 2

Elmer Bischoff, #88, 1985

Falar de Maio, o mês onde o sol secou
as primeiras lágrimas, as definitivas lições.
Na casa havia um hálito de sombra, o Estio
inundava de rumores as rosas do jardim,
o retrato roubado aos dias de Dezembro.

Qual a matéria dos actos? Em desespero,
cavalgam os astros, voam ao sol e ao luar.
Cantam a sombria sapiência das horas.
Cantam as tristes traições no livor da língua.
Cantam na terra o murmúrio do mar.

Raios de luz erguem das paredes a poeira
e a casa treme na placidez dos elementos,
na fúria de mãos absortas e criminosas.
Aspidistras tombam nos corredores e
em meus olhos há ruas de cal e ambrósia.
                       
(1981)

sábado, 7 de dezembro de 2019

A questão ambiental


A generalidade dos cidadãos, onde se incluem as elites políticas, não tem qualquer capacidade para julgar se as alterações climáticas em curso são de origem humana ou se são apenas efeitos de uma alteração do clima que ocorre independentemente das acções humanas. A questão é fundamental. Se as alterações climáticas não são de origem humana, poder-se-á argumentar, como o fazem certos sectores, que toda a preocupação é inútil. Se, pelo contrário, as alterações climáticas tiverem origem na acção do homem a partir da Revolução Industrial, há a esperança de, alterando o comportamento humano, impedir um desfecho trágico para a existência do homem na Terra.

Um argumento a favor da crença de que as alterações climáticas actuais são de origem humana é o facto de grande parte dos cientistas que trabalham sobre o clima terem essa perspectiva. Existem também cientistas com opinião contrária, mas são largamente minoritários. Um segundo argumento está ligado às motivações dos negacionistas que, devido a interesses particulares, tendem a negar a realidade. Isso passou-se noutras alturas e o caso mais conhecido é o da indústria do tabaco que, quando a ciência começou a estabelecer a relação entre o fumo e o cancro de pulmão, lançou uma estratégia para criar uma dúvida persistente na opinião pública. A negação relativamente ao clima seria também uma criação dos chamados mercadores da dúvida, os quais operam para desacreditar o trabalho científico aos olhos do público, permitindo às indústrias poluentes continuarem a não ser incomodadas.

Não são precisos, porém, nenhum destes dois argumentos para defender uma radical alteração das políticas e dos comportamentos relativamente ao clima. Podemos admitir que existe grande incerteza sobre se as actuais alterações do clima se devem ao homem ou se decorrem da própria natureza. Essa incerteza basta para que os seres humanos e os dirigentes políticos ajam com prudência, o que significa alterar o nosso modo de vida e ter políticas adequadas a essa alteração. Essa prudência tem uma dupla vantagem. Caso as alterações climáticas sejam de origem humana, a prudência poderá evitar a tragédia que se anuncia. Se as alterações climáticas forem de origem natural, a prudência ajudará a minimizar os efeitos em vez de os agravar. Do ponto de vista político e ético, é indiferente se possuímos uma teoria fortemente corroborada da origem humana das alterações do clima (como parece ser o caso) ou se há uma grande incerteza científica sobre a origem dessas alterações (como pretendem os negacionistas). Os imperativos práticos são os mesmos.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

O PISA e as duas culturas


O que nos mostram os resultados do PISA (um programa internacional de avaliação de alunos; ver aqui)? Mais importante do que discutir sobre o desempenho dos alunos portugueses (e do sistema educativo português) é perceber a grande fractura cultural que o estudo torna patente. Esta fractura tem já uma forte componente política e perspectiva um futuro sombrio para o mundo ocidental. Como se pode verificar (ver aqui e aqui), os primeiros lugares são todos eles ocupados por regiões chinesas e Singapura. Também o Japão, com um desempenho menos brilhante na área da leitura, está no topo nas áreas das ciências e da matemática.

O problema reside na diferença de culturas entre estes países e regiões e os outros. Os resultados dos estudantes asiáticos devem-se a uma cultura de disciplina, esforço, rigor, propensão para enfrentar obstáculos e ultrapassá-los. Esta cultura é muito diferente daquela que reina em Portugal e muitos países de cultura ocidental. As virtudes da disciplina, do esforço e do rigor estão desvalorizadas perante uma cultura da gratificação imediata, da desistência perante obstáculos, da ausência de rigor. Argumentar-se-á que não são todos os alunos assim. É verdade, mas também é verdade que muitos são e que a cultura de exigência é mal vista por muitos alunos, muitos pais, parte significativa das sociedades ocidentais e até, de forma mais ou menos sub-reptícia, pela ideologia educativa que se apossou de muitos sistemas educativos ocidentais. Perante estas realidades, não é de espantar o contínuo crescimento da influência política dos povos asiáticos e o decréscimo persistente do peso dos europeus. É na escola que isso começa.

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Defender a democracia liberal


Durante algum tempo pensou-se que o mundo caminhava inexoravelmente para a democratização dos regimes políticos. A terceira vaga de democratizações, iniciada em Portugal em 1974 e que se prolongou não apenas na Europa do Sul, mas na do Leste, com o fim dos regimes comunistas, e na América Latina, parecia indicar estar-se num processo irreversível. Olhar hoje em dia para essas expectativas é perceber não apenas quanto se estava errado mas também a própria fragilidade das democracias liberais, isto é, daquelas que aliam à democracia representativa um Estado de direito, com separação de poderes.

O ataque aos regimes demo-liberais ocidentais, vindo de dentro deles próprios e que em Portugal só agora se começa a esboçar, é de tal maneira grande que, nos dias que correm, o tradicional e estruturante conflito entre direita e esquerda, apesar de continuar importante, cede diante da necessidade de concentrar esforços na preservação do bem maior que é o regime democrático, a possibilidade de haver alternância no poder, de os que o conquistam não persigam os seus adversários, enfim que a política não se torne presa dos conceitos de amigo e inimigo, isto é, do prenúncio ou do Estado autoritário ou da guerra civil.

A existência de uma democracia liberal não é uma evidência e não é um destino que esteja fatalmente no horizonte de qualquer Estado. Se olharmos para a história política da humanidade, percebemos que a democracia é quase um acontecimento excepcional, uma espécie de milagre laico da razão humana. As democracias representativas exigem certas condições sociais, políticas e culturais e, para além disso, o esforço dos cidadãos em limitar a sua frustração quando as suas ideias perdem e o seu júbilo quando ganham. Uma vitória em democracia não é nem o esmagamento dos adversários nem uma carta de alforria aos que ganham para fazerem o que querem. Uma derrota não é uma condenação. A democracia liberal nasce do esforço para cultivar limites ao poder.

O problema é que nós seres humanos possuímos, ao lado de uma propensão para a vida civilizada, uma não menor inclinação para a barbárie. Por vezes, como acontece nestes dias um pouco por todo o mundo ocidental, não suportamos as regras civilizadas e, perante o ressentimento e a frustração das nossas expectativas, o bárbaro que há em nós começa a abrir a boca e a agir em conformidade. Esta situação denota que o contrato social que sustentou as democracias se rompeu. É a reconstrução desse contrato que deverá unir todos aqueles que, à direita e à esquerda, crêem na superioridade civilizacional dos regimes demo-liberais.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Alentejo, Alentejo

JCM, Alvito, 2019
Chega-se ao Alentejo e a primeira sensação, a mais superficial, é de imobilidade. Enquanto todo o país foi tomado pela azáfama da mobilização, em que cidades e vilas foram descaracterizadas e, muitas vezes, mortas pelo progresso empreendedor dos empreiteiros e de presidentes da câmara ansiosos de ganharem uma estátua no centro da paróquia, o Alentejo permaneceu estranho à azáfama, tratando de manter a cara lavada. A segunda sensação é a da reconciliação que a pessoa sente ao caminhar naquelas ruas brancas, onde são raríssimos os atentados ao bom gosto. Por fim, começa-se a desconfiar que naquelas cidades e vilas, onde o tempo se recusa à velocidade, a vida é mais autêntica e tudo aquilo tem uma dignidade que não se suspeita já em parte alguma do país. O Alentejo é um país à parte.

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

A Origem da Luz 1

Jackson Pollock, Alchemy, 1947

Sol incendiando-me célula a célula, nasci.
Grande, o silêncio, o espaço aberto e côncavo.
Aí desconhecia medos e metáforas.
Da serra vinham ventos, ateavam rumores
nas árvores, opalas em teus olhos.

A luz levedava no murmúrio das laranjeiras,
acendia velas nas paredes, archotes nos dedos.
Palavra a palavra cresceu o universo, o enigma
da terra, uma haste de canções, ao
caírem fulgiam na errância dos espaços.

Água, ave de âmbar e coral, brotava
do poço e na poeira floriam ervas e agoiros.
Os cabelos eram cordas, pedaços de arame,
ao erguerem-se, acendiam a lua,
os astros, constelações de sílica e basalto.

(1981)

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Ensaio sobre a luz (74)

Sarah Moon, Yael Raich, 1993
Transfiguração. Vindo não se sabe de que fonte, o silêncio interior cresce lentamente na alma, toma conta do corpo e manifesta-se como luz no esplendor do rosto.

sábado, 23 de novembro de 2019

O desafio da direita democrática


Comecemos pelo trivial, mas que muitas vezes é esquecido. O papel do PSD e do CDS tem sido fundamental para a consolidação de um regime democrático-liberal no nosso país. Uma democracia representativa não pode subsistir sem a existência de pluralidade política e de partidos de direita e de esquerda. Quando a ditadura caiu a 25 de Abril de 1974, a construção da democracia enfrentava um enorme problema. Havia uma esquerda estruturada na oposição, com partidos organizados e passado político de combate à ditadura. A direita estava, com excepções honrosas mas raras, comprometida com o regime deposto. Dissolvida a ANP de Marcelo Caetano, a direita não tinha organização política.

É aqui que entram o PSD e o CDS – ambos com um conjunto notável de personalidades – que vão integrar a direita no regime democrático, contribuindo para a sua consolidação. Nestes 45 anos de democracia, tanto o PSD como o CDS mantiveram-se fiéis à democracia liberal. Defenderam e defendem propostas políticas discutíveis, como as dos outros partidos, mas nunca houve neles uma tentação autoritária. Ofereceram ao país uma direita civilizada, empenhada no jogo democrático, dando representação política a uma direita social com peso significativo na comunidade nacional.

Neste momento, ambos os partidos enfrentam um problema que também afecta o país político. O crescimento dos populismos iliberais de direita na Europa, a súbita explosão do Vox em Espanha e a eleição de um deputado do Chega podem pôr a nu uma situação que a bonança dos tempos ocultou. Uma parte da direita social portuguesa – um pouco à semelhança da espanhola – não se revê no regime democrático, nas suas regras e na obrigatoriedade de tolerar a esquerda. Esta direita, como se está a descobrir, não suporta Marcelo Rebelo de Sousa e não confia já nos partidos de direita do sistema, PSD e CDS, os quais sempre foram mais democráticos do que esses seus eleitores.

O PSD e o CDS – este em estado grave de saúde – enfrentam um desafio importante lançado pela direita autoritária e populista. Como vão reagir à possível deserção, nos próximos tempos, de uma parte da direita social para a extrema-direita? Vão ser fiéis à sua matriz fundadora – e fundadora do regime – ou vão deixar-se arrastar pela facilidade do discurso iliberal e populista do Chega? Este é um problema que a direita enfrenta, mas não só. Uma democracia liberal necessita tanto do suporte da esquerda como da direita. O problema que afecta o PSD e o CDS não é apenas deles, mas também do regime democrático e da própria esquerda que se revê no modelo ocidental de democracia.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O discurso às massas policiais

Kazimir Malevich, Quadrado negro sobre fundo branco, 1915
Penso, muitas vezes, que os agentes políticos são cegos para a realidade. Por mais que esta se exiba à sua frente, eles possuem uma capacidade inultrapassável para a cegueira. Ainda ontem Rui Rio afiançava aos seus correlegionários do Partido Popular Europeu que a extrema-direita era coisa quase inexistente em Portugal e a que havia não era assim tão extrema. A manifestação de polícias de hoje serviu para mostrar exactamente o contrário. Não pela manifestação em si, um acto dentro da conflitualidade democrática e que tem fundamentos justos, mas pelo discurso do deputado do Chega. Este não é um acontecimento trivial. Parece uma inversão simbólica do PREC, onde, numa coreografia leninista, o deputado Ventura fala às massas policiais. Há muita gente desejosa de fazer explodir o edifício democrático e o dia de hoje foi um passo, cuja dimensão desconhecemos, para isso. Não sei se a aritmética de Rui Rio e a geometria dos partidos tradicionais é suficiente para explicar o que está em gestação.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Alma Pátria 57: José Mário Branco, Por terras de França



O último post deste rubrica, Alma Pátria, foi o de Queixa das Almas Jovens Censuradas, de José Mário Branco. Não estava no horizonte mais próximo trazer aqui uma nova canção do mesmo autor. Todavia, José Mário Branco morreu hoje. Para além da importância que ele teve para a música popular portuguesa, não me esqueço do espanto que foi para mim descobri-lo no ano de 1973. Havia nele um mundo musical que ia muito para além do cantor de protesto. Os seus dois primeiros álbuns são aqueles de que mais gosto, talvez porque estejam associados a uma parte da minha vida em que descobria, com a inocência dos verdes anos, o peso da realidade e como, naqueles tempos, era pesada e escura a alma da pátria. 

domingo, 17 de novembro de 2019

Pretérito Imperfeito 10. Pretérito Imperfeito

Cesare Peverelli, Senza Titolo, 1965-66
10. Pretérito imperfeito

Voltamos ao tempo que fomos,
aos dias ungidos pelo sol,
as ruas gastas de tanto
caminhar. Regressamos,
mãos exaustas, olhos
presos na terra.

Voltamos aos dias de Março.
Sobre o pó a chuva cai
cantante e pura.

Voltamos ao que fomos.
Os dias são rosas secas,
caídos entre folhas
extasiadas em mãos
erguidas para a luz.

Na noite, ouve-se um grito
e voltamos.
Ninguém chama por nós.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Descrições fenomenológicas 48. Rua à noite

Lucio Fontana. Ambiente spaziale, 1967-2017. Hangar Bicocca

Contra a noite vêem-se janelas iluminadas, montras, anúncios que prometem aliviar os homens das suas necessidades. Encostados aos passeios, carros alinhados, tomados pelo sono, suspensos na quietude, à espera que alguém venha, abra a porta e, sentado ao volante, lhes dê vida. Isso será só mais tarde, quando a manhã tiver firmado os seus direitos sobre a escuridão. Numa relojoaria, um relógio luminoso deixa ver o tempo a passar, mas é uma ilusão, pois não há quem para ele olhe e talvez o tempo não passe por aquele relógio. Choveu durante bastante tempo, mas já não chove. A estrada molhada e nos passeios há pequenos lagos onde a publicidade luminosa se reflecte para duplicar a mensagem e tornar o mundo mais ruidoso. Uma janela abre-se, uma mulher espreita. Estica o braço e logo o recolhe. Olha para um e para o outro lado da rua, depois volta-se para dentro e diz alguma coisa. No andar de cima, outra janela ilumina-se e vê-se um homem calvo a caminhar na divisão. Está de pijama e parece preocupado com alguma coisa. Pára, por instantes, e debruça-se sobre uma mesa ou uma secretária. Depois ergue-se e na mão tem um livro. Encaminha-se para a porta e apaga a luz. A vizinha debaixo fecha a janela e também ela escurece a casa. De súbito, um carro avança e pára diante de um prédio. De dentro deste, sai uma mulher jovem apressada. A porta do carro abre-se, ela entra, fecha a porta e a viatura desaparece no fim da rua. A noite prossegue o seu caminho na rua vazia. O relógio indica as horas mas ninguém as vê.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

O não chumbo no Ensino Básico e a revolução educativa

Fotografia daqui.

A questão do não chumbo no ensino básico que tanto atormenta certos sectores políticos é apenas um pormenor sem qualquer importância. Tive de dar uma especial atenção aos célebres decretos-lei 54/2018 e 55/2018. Não são alterações legislativas triviais e se levadas a sério não são acomodáveis às tradicionais práticas escolares e às crenças do professorado. Propõem uma revolução na escola portuguesa, não uma simples reforma ou melhoria, mas um virar o ensino não superior de pernas para o ar.

Quanto mais se medita naqueles decretos mais cresce a sensação de desconforto. Há neles qualquer coisa de profundamente tenebroso. Há a ideia de que os alunos são uma matéria plástica altamente moldável. Bastaria uma mudança da forma de trabalhar do professor, agora um diferenciador pedagógico atento ao estilo de aprendizagem de cada um, para que os alunos renitentes à aprendizagem se convertessem às delícias do saber.

Isto não é verdade. Os alunos não são uma matéria plástica moldável ilimitadamente. Como os próprios professores também não o são. Como se pode fazer uma revolução (que vai desde a reconceptualização do espaço e do tempo da aprendizagem até à gestão do currículo e da avaliação) fundado numa crença falsa sobre a natureza dos alunos e contra as crenças pedagógicas de grande parte do professorado? Só através de processos autoritários. Os decretos referidos são um exemplo do mais refinado voluntarismo, o qual faz tábua-rasa da realidade das escolas e dos seus actores.

Uma tentativa idêntica a esta – no tempo de Roberto Carneiro e de Cavaco Silva – falhou estrondosamente, apesar de ter havido um grande incentivo ao professorado, através de valorização da carreira. Onde é que chocou? Na realidade. Foi um choque entre as crenças pedagógicas dos professores, a realidade dos alunos e o voluntarismo maximalista dos governantes. Se tivessem tentado apenas reformar o primeiro ciclo, de forma consistente e com tempo, ter-se-ia avançado alguma coisa. Depois, viria o segundo ciclo e assim sucessivamente. Talvez as coisas fossem hoje muito diferentes.

Os mesmos erros cometidos naquela altura foram repetidos no tempo de Marçal Grilo e de António Guterres. Também Lurdes Rodrigues e José Sócrates ensaiaram a sua revolução educativa, deixando o campo pejado de cadáveres, os professores proletarizados e  furiosos, e tudo pior. Chegámos a António Costa e a João Costa (o autêntico ministro da Educação), também eles se acham revolucionários educativos. Quarenta anos de erros e não se aprendeu nada. Todos querem fazer a sua revolução. Todos se acham salvadores. Todos vêem a autoridade do Estado como um poder revolucionário e violento que dobra os actores. Todos querem tudo ao mesmo tempo. A vida não é assim. O não haver chumbos no básico – coisa que já quase não existia – é uma irrelevância. Em Portugal tem-se sempre a inclinação para discutir com grande alarido o acessório e deixar o essencial de lado.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Beatitudes (17) Vitória

Alfred Eisenstaedt, A jubilant American sailor clutching a white-uniformed nurse in a back-bending, passionate kiss as he vents his joy while thousands jam Times Square to celebrate the long awaited-victory over Japan, New York, 1945

Não há maior beatitude do que estar vivo para comemorar a vitória. Os mortos dormem o sono eterno e aos que a morte esqueceu é dado o instante onde toda a felicidade se resume no inesperado de um beijo, como se a vida fosse uma sombra de um filme de Hollywood.

sábado, 9 de novembro de 2019

Nazismo e comunismo


No mês passado o Parlamento Europeu aprovou uma resolução de condenação dos regimes nazi e comunista. Na verdade, ambos os regimes perseguiram e mataram adversários e o Estado teve neles uma configuração totalitária. No entanto, não se pode dizer que o nazi-fascismo e o comunismo são a mesma coisa ou que o nazi-fascismo foi um regime de esquerda, como pretendem agora alguns adeptos da adaptação da teoria da terra plana à política. Uma das coisas que mais atormenta certa gente à direita é o facto de haver uma reprovação moral do militante nazi mas não do comunista.

Os regimes fascista italiano e nazi alemão são tentativas de corte com a tradição cristã, uma ruptura com os valores que a Europa, a partir da Queda do Império Romano, criou. São regimes que tentaram fazer reviver o mundo imaginário do Império Romano, antes da conversão ao cristianismo, ou do ainda mais imaginário mundo ariano dos povos germânicos. Tentativas delirantes, apoiadas na tecnologia moderna, de inventar tradições míticas de um passado glorioso ou puro. Para além dos crimes, aquilo que não tem permitido acomodar moralmente nazis e fascistas é a sua recusa dos valores cristãos, mesmo que secularizados.

O comunismo pertence a outra tradição e a sua ligação com o cristianismo, apesar do ateísmo filosófico do marxismo, é real. Em primeiro lugar, o marxismo é uma radicalização do liberalismo. A emancipação política e jurídica defendida pelos liberais é radicalizada pelo marxismo como emancipação social. A igualdade formal perante a lei dos liberais é radicalizada em igualdade real na vida social pelos comunistas. O comunismo não é mais do que um liberalismo levado às últimas consequências. Em segundo lugar, o próprio liberalismo, filho do Iluminismo, é uma secularização dos valores cristãos, secularização mediada pela Reforma protestante. O comunismo, por seu turno, apesar de ver a religião como ideologia, não deixou de herdar esses valores cristãos, vindos através do liberalismo, orientando-os para a emancipação na terra e não para a salvação no céu.

Enquanto no mundo ocidental o cristianismo e o liberalismo tiverem algum peso cultural, será difícil olhar para um comunista e ver nele alguém que é do mesmo tipo de um nazi. O comunista é um irmão mais novo que se radicalizou e tem uma visão extremada dos valores que todos partilham, julgando-os possíveis de realizar na terra, através da violência revolucionária, enquanto o nazi é aquele que quer dissolver a ordem que o cristianismo trouxe ao mundo. Isto não iliba o comunismo dos crimes que cometeu, mas ajuda a perceber a tolerância com que os comunistas, ao contrário dos nazis, são vistos. Eles pertencem à família.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Pretérito Imperfeito 9. Deus

Pedro Fernández Cuesta, Murmullos de Dios

9. Deus

Preso ao silêncio, Deus
é um sopro,
uma  história de seda,
fresta de cal, o
rasto de luz
libertado do sal.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

terça-feira, 5 de novembro de 2019

Alma Pátria 56: José Mário Branco, Queixa das Almas Jovens Censuradas



Chegou a vez de José Mário Branco aparecer no Alma Pátria. Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades é o seu primeiro álbum, editado em 1971, em plena primavera marcelista, em França onde se encontrava exilado. Surpreendente é a qualidade elevada de um primeiro álbum, um refinado gosto na escolha dos textos, mesmo nos que têm um tom mais interventivo, sem nunca deslizar para soluções fáceis e tonitruantes. “Queixa das Almas Jovens Censuradas” é um poema de Natália Correia e é um dos retratos mais exactos daquilo que a ditadura nos fez ser. A música de José Mário Branco parece ter sido a fonte original de onde brotou aquele poema e não uma música que se adaptou a ele, e isso diz tudo do génio musical de José Mário Branco.

domingo, 3 de novembro de 2019

Ensaio sobre a luz (73)

Emil Otto Hoppé, Mika Mikum, Poland, 1916
De súbito a luz degrada-se e a imagem projectada no espelho já não é um reflexo, mas a sombra baça que anuncia, na manhã estival, o inverno da noite.

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

As direitas


Os resultados das últimas eleições vieram pôr a nu a crise que atinge a direita em Portugal. A direita parlamentar vale neste momento 34,6% dos votos e 86 deputados, enquanto a esquerda parlamentar vale 53,3% dos votos e 140 deputados. Isto coloca enormes desafios à direita democrática para se aproximar do poder. Mesmo que o entendimento parlamentar das esquerdas tenha acabado, nada garante que, em caso de necessidade, não volte a existir. A direita para governar precisa de ter mais deputados que a esquerda. Estamos assim num momento de crise e reconfiguração da direita. Vejamos alguns aspectos.

Comecemos com as novidades. O Chega alcançou o parlamento a partir de algum rancor social, nomeadamente em zonas onde pode haver conflitos com a comunidade cigana. Tem alguma margem de progressão fundada na exploração do ressentimento social e caso se prolongue a crise da direita democrática. A Iniciativa Liberal (IL) aproveitou o desencanto à direita e juntou uns quantos órfãos das políticas de Passos Coelho. Pode herdar algum eleitorado jovem do CDS e do PSD, caso este continue longe do poder. Seja como for, tem um programa que não se acorda nem com a realidade do país nem com a tradição da direita portuguesa. A margem de progressão parece curta e depende do que vier a acontecer no PSD.

A crise que atinge o CDS é gravíssima. Não apenas perdeu muito eleitorado como deixou de ser a única alternativa real aos descontentes com o PSD. Tanto a IL como o Chega podem pescar nas águas onde o CDS pesca. Os sectores mais ultramontanos podem encontrar no Chega a sua representação, enquanto os mais liberais têm agora a IL ao dispor. Não se vislumbrando a emergência de um líder carismático, estando o CDS acantonado num estrato social muito específico e idiossincrático, as últimas eleições podem ter sido o ponto de partida para o seu desaparecimento. Enfrenta uma ameaça real.

O caso mais interessante é o do PSD e a luta entre os adeptos do passismo, representados por Luís Montenegro, e uma velha tradição da direita portuguesa de carácter paternalista, com algumas preocupações sociais e com alguns toques, não exagerados, de conservadorismo, encarnada por Rui Rio. Se Montenegro ganhar o partido, este tenderá a ser mais liberal, o que poderá liquidar a IL mas encolher o campo social do PSD. Se Rio se mantiver, teremos um PSD menos liberal, mais na tradição de Cavaco Silva e mais próximo do centro e da doutrina social da Igreja. Caso saia vitorioso no embate dentro do PSD, não se pense que a esquerda recebe um bónus. Rui Rio, no parlamento e com a aprendizagem feita, será, para António Costa, um osso duro de roer.

[A minha crónica em A Barca]

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A doença das democracias liberais


Em curta entrevista concedida este ano ao Estadão de S. Paulo, o cientista político Yascha Mounk, especialista na crise das democracias liberais, afirmava temer que não se esteja perante um mero episódio de populismo, mas a entrar numa era populista. Os líderes populistas ocupam já parte significativa dos governos em países ocidentais e quando os eleitores percebem que esse tipo de políticos é bem pior que os tradicionais, não volta às opções moderadas mas opta por populistas ainda mais radicais.

O romancista Amós Oz oferece duas razões plausíveis para a emergência desta crise universal das democracias. Uma primeira é a redução da política ao entretenimento. As pessoas votam porque querem divertir-se, excitar-se, querem novidade e escândalo, desligando o voto daquilo que vem a seguir. Se aceitarmos o argumento de Oz, podemos procurar as fontes que promoveram o entretenimento a factor cultural determinante das condutas políticas. A televisão e as redes sociais são uma dessas fontes, pois transformaram tudo em entretenimento, tornando-o no modelo da vida social. Outra vem da própria educação e da retórica contínua que a visa modernizar, substituindo o esforço e a superação pela busca de prazeres fáceis e recompensas imediatas, isto é, pelo entretenimento.

Uma segunda ideia do escritor israelita prende-se com a grande complexidade do mundo actual. A globalização ou a questão climática, por exemplo, são de tal maneira intrincadas que os eleitores não as compreendem. Os níveis de literacia do cidadão médio são insuficientes para lidar com a sociedade em que vive. A consequência é a eleição de políticos que oferecem soluções simples. Por norma, esses políticos escolhem um bode expiatório e acusam-no de todos os males que atormentam as pessoas. Esta mentira é agradável aos eleitores e estes, sem instrumentos para pensar e avaliar a realidade, optam pelo mais fácil e o que lhes parece mais agradável.

É possível que estejamos a entrar numa fase de persistente retracção dos valores democráticos. O mais preocupante é que parece haver pouca capacidade para deter esta onde de irracionalidade. Assistimos a um teste dos mais difíceis que se podem colocar às democracias representativas. Serem vítimas já não de golpes militares ou revoluções, mas dos seus próprios resultados. Os eleitores escolhem democraticamente aqueles que pervertem ou perverterão os regimes democráticos, como se o conjunto de direitos civis e políticos que estes regimes asseguram fossem irrelevâncias que se podem dispensar.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Pretérito Imperfeito 8. Esperança

Albert Gleizes, Composición octogonal, 1922

8. Esperança

Sombras da tarde.
Um toldo de Verão,
restos de calcário,
a esperança vinda
no vinho bebido
pelo copo vazio
do meu coração.

[Pretérito Imperfeito, 1981]

domingo, 20 de outubro de 2019

Portugal, um país a dissolver-se

Daqui
O retrato de Portugal, baseado num conjunto diversificado de estatísticas do Pordata, não é animador. Envelhecido, média de idade das mães no momento do nascimento do primeiro filho e média de filhos por mulher muito pouco animadoras, poucas habilitações literárias, com grandes gastos em saúde (5,4% do rendimento familiar contra 0,4% da média europeia). Vale a pena ver os resultados, alguns são inusitados como Portugal, um país com crónica falta de médicos, ser o terceiro país da União Europeia com mais médicos. Também a instituição casamento já teve melhores dias, pois 54,9% das crianças nasce fora do casamento. Há coisas positivas com o baixo índice de mortalidade infantil, por exemplo. Seja como for, tendo em conta os dados, Portugal parece estar lentamente a desistir de si próprio, num haraquíri silencioso. Ora o principal problema político de uma comunidade é assegurar a sua persistência no tempo, a sua continuidade. Todos os outro problemas - onde se incluem o da justiça distributiva - estão, ou devem estar, subordinados a esse. É incompreensível como esse não é um dos temas centrais do debate político. Um país a dissolver-se.