terça-feira, 3 de março de 2020

Ladj Ly, Os Miseráveis


Se há imagem que relacionamos com o nacionalismo é a da bandeira nacional a ondular, de preferência multiplicada e transportada pelas multidões. O início do filme de Ladj Ly, um francês de origem maliana, é um intenso manifesto nacionalista. Crianças e adultos transportam a bandeira de França, concentram-se em fervor patriótico, cantam em exaltação a Marselhesa e, posteriormente como se fossem um tsunami, dirigem-se para o Arco do Triunfo, onde a glória de França, acabada de se sagrar campeã do mundo de futebol, é motivo de uma grande jornada patriótica.

Que pessoas, porém, são aquelas que vemos exaltadas? Descendentes das velhas estirpes francas e galo-romanas? Não, aqueles nacionalistas franceses são negros e árabes, haverá outros, claro, mas o que a câmara mostra são aqueles. Os minutos iniciais do filme são uma reivindicação de pertença à nação por parte de pessoas que são francesas de direito mas cuja relação de facto com os franceses de origem europeia é, no mínimo, problemática.

Depois da exaltação nacionalista a trama narrativa mergulha directamente no centro de um mundo problemático, um dos subúrbios de Paris, Montfermeil. É nele que habitam muitos dos negros e árabes que comemoraram a vitória de França no campeonato mundial. Da exaltação patriótica passa-se agora à dura realidade e à difícil relação da polícia com aquela comunidade. O tema central é o da violência da polícia, violência que o próprio realizador, quando jovem, terá filmado em alturas de grande conflito.

A tensão opõe a polícia a bandos de jovens. No entanto, Ladj Ly, morador daquele bairro, deixa ver a vida social que o anima. Os negócios escuros que proliferam, a presença forte do Islão – ele é muçulmano – com matizes diferenciadas, conflitos com outras etnias – aliás o que desencadeia a narrativa é o roubo de um leão bebé num circo propriedade de ciganos por um dos miúdos negros daquela comunidade – e todo um mundo miserável, de uma arquitectura horrível e onde cresce uma juventude desocupado e sem horizontes.

O filme tem uma forte componente de intervenção social e de tomada de posição. No entanto, nem os polícias nem os jovens, as duas partes do conflito, são tratados a preto e branco. E nenhuma das partes está numa situação fácil nem parece saber lidar com essa situação, com a excepção de um dos elementos da Brigada Anti-Crime, Stéphane Ruiz, vindo naquela altura da Normandia. Este mais do que o polícia bom encarna o olhar exterior, descomprometido com o conflito, embora comprometido com valores de respeito pela humanidade do outro e códigos de imparcialidade.

Ladj Ly não oferece ao espectador um panfleto, mas uma reflexão sobre a condição humana numa comunidade onde a miséria – uma miséria que desde o século XIX e o tempo de Victor Hugo sempre ali existiu – é o ambiente onde aqueles homens, pois estamos perante um filme em que só quase entram homens, manifestam a sua humanidade mutilada. Mutilação fruto de um reconhecimento que nunca chega por parte de uma nação que é a deles, que eles vitoriam, mas que os encerra naquilo que se poderia chamar um campo de concentração de portas abertas. Estão presos pelo poderoso íman da miséria.

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