domingo, 7 de dezembro de 2014

O retorno e a imaginação

Jordi Pallarés - Delírio (1989)

Portugal estava (século no início do século XV), de facto, entalado entre o poderoso vizinho e o mar, confinado num espaço periférico, um finisterra não apenas em termos do Ocidente europeu, mas até da própria Península. Daí resultava o que chamámos o impasse ibérico do reino. À época, a única via possível para buscar um caminho próprio era o mar. E desde há muito que o mar ocupava um lugar de grande importância na vida do reino. A extensão da costa, a participação directa das populações do litoral em actividades marítimas como a pesca (em largas zonas da orla costeira), a extracção de sal (em Aveiro, no Baixo Mondego, no estuário do Tejo, no Sado) e até a familiarização com o vaivém de embarcações que faziam navegação de cabotagem ligando cidades e regiões costeiras (sendo esse, por vezes, o meio de transporte mais rápido e seguro), tudo concorria para uma relação de proximidade com os elementos marinhos, não só em termos físicos mas também ao nível das representações mentais. [Bernardo Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos, Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 172]

Com o fecho do ciclo imperial, em 1974, Portugal volta a uma situação geopolítica idêntica àquela em que viveu até ao século XV, um finisterra europeu e ibérico. A diferença, porém, é que, com o fim da ideologia colonial e dos respectivos impérios, mesmo o mar deixou de ser caminho de saída para o impasse político do país. A partir de 1974, Portugal está perante si mesmo, dolorosamente só. O apelo à razão, isto é, à confrontação com o que somos efectivamente, porém, é substituído, por duas vezes, pelas operações da imaginação que sublimam a nossa situação. A primeira vez que a imaginação opera é nos próprios acontecimentos de 74 e anos seguintes, no denominado processo revolucionário em curso (PREC). A crença utópica numa sociedade socialista, fora do mundo ocidental, onde geográfica e culturalmente pertencemos, ocupou uma largo espaço imaginal nesses anos. Estamos ainda longe de poder compreender o efectivo significado colectivo dessa grande configuração imaginária dos anos setenta.

No entanto, para além de razões puramente fácticas – a longa ditadura, clivagens sociais humilhantes, etc. –, a figura imaginária da revolução surgiu como sublimação de duas feridas narcísicas insuportáveis. Em primeiro lugar, o país tornou-se efectivamente um pequeno país, reduzido a 90 mil km2 na península e a dois arquipélagos perdidos no mar e de dimensões irrelevantes. A história gloriosa e a pátria grandiosa reduziam-se a quase nada. O PREC foi um analgésico colectivo para a dor da perda. Isto dos dois lados da barricada.

Os que eram favoráveis a uma utópica continuação da guerra encontraram nos actores políticos da descolonização o bode expiatório, na figura da traição à pátria dos revolucionários de Abril, para o fim de uma política colonial sem saída. Mas aqueles que, dentro do PREC, tiveram de fazer a descolonização, ainda que ideologicamente favoráveis ao processo, encontraram no PREC um álibi para tranquilizar as consciências perante o que viria a seguir e para não pensar na nova situação do país reduzido à sua dimensão ibérica.

O PREC foi uma poderosa figura do imaginário colectivo que permitiu à direita e à esquerda, bem como à comunidade nacional no seu todo, evitar confrontarem-se com a realidade da nova situação e sublimar as dores que efectivamente o fim do império colonial trouxe para toda a sociedade. Um dos efeitos mais interessantes deste poderoso filtro da consciência foi a integração dos chamados retornados, portugueses que abandonam os novos países nascidos da descolonização. Por muito dolorosa que a partida de cada pessoa e família fosse individualmente sentida, por difícil que tenha sido sentida a integração por aqueles que retornaram a Portugal, a sua integração no todo nacional foi praticamente indolor.

Se a mitologia do PREC e da construção de uma sociedade socialista entra rapidamente em declínio, tornando-se obsoleta já nos finais da década de setenta, Portugal encontra uma nova mitologia, um novo trabalho imaginário que o vai dispensar de se confrontar com a sua realidade efectiva. A nova figura da imaginação portuguesa estava já pronta e era uma realidade bem racional na Europa. Essa figura é a CEE. A generalidade dos países que integram o projecto dos seis fazem-no racionalmente. Portugal fá-lo, porém, de uma forma imaginária. Seria interessante analisar os discursos dos vários protagonistas políticos no primeiro lustro dos anos oitenta. O inconsciente colectivo recebe a CEE como um novo espaço mítico que, por si mesmo, resolveria todos os nossos problemas. Seríamos europeus, coisa a que estávamos desabituados há cinco séculos, sem outra necessidade do que a da integração.

A triste história da integração, desde as narrativas delirantes do pelotão da frente até ao descalabro actual, passando pelo pântano, tornam evidente que a nossa integração nunca correspondeu a um trabalho da razão, mas à sedução proveniente das figuras da imaginação. A CEE serviu, para as habituais manobras de enriquecimento espúrio de alguns, para evitar a dor proveniente do confronto com a nossa pobreza ancestral, a falta de recursos, o desprezo pela inteligência, a fragilidade da população e egoísmo social das elites.

E tudo isto assenta de tal maneira em processos imaginários que o nosso elemento de referência, aquele que foi uma solução para a escassez endémica com que o país sempre se debateu, refiro-me ao mar, foi recalcado, esquecido, abandonado, fora do seu aproveitamento turístico. Com a adesão à CEE, a frota de pesca desapareceu. O que serviu a outros para racionalizar, a nós serviu para destruir, como se a relação com o mar não fosse mais do que um mero sonho. No século XV, o sonho levou-nos mar fora, para outras paragens. Hoje, o mar implica não a fuga, mas a razão, o trabalho, a diligência. Por isso o abandonámos, preferimos alugar camas e a servir refeições a quem passa por cá para olhar o mar com melancolia. (in averomundo, 2010/02/16)

PS. O texto acima data do início de 2010. De então para cá, poderá o leitor pensar, a questão do mar alterou-se. O que estava recalcado voltou de novo à consciência e à linguagem. Há muito que não se falava tanto do mar como desde que o país foi intervencionado pela troika. Representará isto uma reviravolta na mentalidade nacional? Se olharmos para o fundo dos discursos, de imediato se percebe que o mar é um sucedâneo – comprado em fim-de-estação – do PREC e da CEE. A liquidez das águas oceânicas apela à difusa fluidez dos sonhos. O mar está a tornar-se numa nova desculpa (ver esse mapa da extensão da plataforma continental  proposto  à ONU) que tem todos os ingredientes para sustentar o delírio de várias gerações.

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