Jordi Pallarés - Delírio (1989)
Portugal estava (século no
início do século XV), de facto, entalado entre o poderoso vizinho e o mar,
confinado num espaço periférico, um finisterra não apenas em termos
do Ocidente europeu, mas até da própria Península. Daí resultava o que chamámos
o impasse ibérico do reino. À época, a única via possível para buscar um
caminho próprio era o mar. E desde há muito que o mar ocupava um lugar de
grande importância na vida do reino. A extensão da costa, a participação
directa das populações do litoral em actividades marítimas como a pesca (em
largas zonas da orla costeira), a extracção de sal (em Aveiro, no Baixo
Mondego, no estuário do Tejo, no Sado) e até a familiarização com o
vaivém de embarcações que faziam navegação de cabotagem ligando cidades e regiões
costeiras (sendo esse, por vezes, o meio de transporte mais rápido e seguro),
tudo concorria para uma relação de proximidade com os elementos marinhos, não
só em termos físicos mas também ao nível das representações mentais. [Bernardo
Vasconcelos e Sousa, (2009). "Idade Média", in Rui Ramos,
Bernardo Vasconcelos e Sousa e Nuno Gonçalo Monteiro, História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros, pp. 172]
Com o fecho do ciclo imperial, em 1974, Portugal volta a uma situação
geopolítica idêntica àquela em que viveu até ao século XV, um finisterra
europeu e ibérico. A diferença, porém, é que, com o fim da ideologia colonial e
dos respectivos impérios, mesmo o mar deixou de ser caminho de saída para o
impasse político do país. A partir de 1974, Portugal está perante si mesmo,
dolorosamente só. O apelo à razão, isto é, à confrontação com o que somos
efectivamente, porém, é substituído, por duas vezes, pelas operações da imaginação
que sublimam a nossa situação. A primeira vez que a imaginação opera é nos
próprios acontecimentos de 74 e anos seguintes, no denominado processo revolucionário em
curso (PREC). A crença utópica numa sociedade socialista, fora do mundo
ocidental, onde geográfica e culturalmente pertencemos, ocupou uma largo espaço imaginal nesses
anos. Estamos ainda longe de poder compreender o efectivo significado colectivo
dessa grande configuração imaginária dos anos setenta.
No entanto, para além de razões puramente fácticas – a longa
ditadura, clivagens sociais humilhantes, etc. –, a figura imaginária da
revolução surgiu como sublimação de duas feridas narcísicas insuportáveis.
Em primeiro lugar, o país tornou-se efectivamente um pequeno país, reduzido a
90 mil km2 na península e a dois arquipélagos perdidos no mar e de dimensões
irrelevantes. A história gloriosa e a pátria grandiosa reduziam-se a quase
nada. O PREC foi um analgésico colectivo para a dor da perda. Isto
dos dois lados da barricada.
Os que eram favoráveis a uma utópica continuação da guerra encontraram
nos actores políticos da descolonização o bode expiatório, na figura da traição
à pátria dos revolucionários de Abril, para o fim de uma política
colonial sem saída. Mas aqueles que, dentro do PREC, tiveram de fazer a
descolonização, ainda que ideologicamente favoráveis ao processo, encontraram
no PREC um álibi para tranquilizar as consciências perante o que viria a
seguir e para não pensar na nova situação do país reduzido à sua dimensão
ibérica.
O PREC foi uma poderosa figura do imaginário colectivo que
permitiu à direita e à esquerda, bem como à comunidade nacional no seu todo,
evitar confrontarem-se com a realidade da nova situação e sublimar as dores que
efectivamente o fim do império colonial trouxe para toda a sociedade. Um dos
efeitos mais interessantes deste poderoso filtro da consciência foi a
integração dos chamados retornados, portugueses que abandonam os novos
países nascidos da descolonização. Por muito dolorosa que a partida de cada
pessoa e família fosse individualmente sentida, por difícil que tenha sido
sentida a integração por aqueles que retornaram a Portugal, a sua integração no
todo nacional foi praticamente indolor.
Se a mitologia do PREC e da construção de uma sociedade
socialista entra rapidamente em declínio, tornando-se obsoleta já nos finais da
década de setenta, Portugal encontra uma nova mitologia, um novo trabalho
imaginário que o vai dispensar de se confrontar com a sua realidade efectiva. A
nova figura da imaginação portuguesa estava já pronta e era uma realidade bem
racional na Europa. Essa figura é a CEE. A generalidade dos países que
integram o projecto dos seis fazem-no racionalmente. Portugal fá-lo, porém, de
uma forma imaginária. Seria interessante analisar os discursos dos vários protagonistas políticos
no primeiro lustro dos anos oitenta. O inconsciente colectivo recebe a CEE como
um novo espaço mítico que, por si mesmo, resolveria todos os nossos problemas.
Seríamos europeus, coisa a que estávamos desabituados há cinco séculos, sem
outra necessidade do que a da integração.
A triste história da integração, desde as narrativas delirantes do
pelotão da frente até ao descalabro actual, passando pelo pântano, tornam
evidente que a nossa integração nunca correspondeu a um trabalho da
razão, mas à sedução proveniente das figuras da imaginação. A CEE serviu,
para as habituais manobras de enriquecimento espúrio de alguns, para evitar a
dor proveniente do confronto com a nossa pobreza ancestral, a falta de
recursos, o desprezo pela inteligência, a fragilidade da população e
egoísmo social das elites.
E tudo isto assenta de tal maneira em processos imaginários que o
nosso elemento de referência, aquele que foi uma solução para a escassez
endémica com que o país sempre se debateu, refiro-me ao mar, foi recalcado,
esquecido, abandonado, fora do seu aproveitamento turístico. Com a adesão à CEE,
a frota de pesca desapareceu. O que serviu a outros para racionalizar, a nós
serviu para destruir, como se a relação com o mar não fosse mais do que um mero
sonho. No século XV, o sonho levou-nos mar fora, para outras paragens. Hoje, o
mar implica não a fuga, mas a razão, o trabalho, a diligência. Por isso o
abandonámos, preferimos alugar camas e a servir refeições a quem passa por cá
para olhar o mar com melancolia. (in averomundo,
2010/02/16)
PS. O texto acima data do início de 2010. De então para cá, poderá o
leitor pensar, a questão do mar alterou-se. O que estava recalcado voltou de
novo à consciência e à linguagem. Há muito que não se falava tanto do mar como
desde que o país foi intervencionado pela troika.
Representará isto uma reviravolta na mentalidade nacional? Se olharmos para o
fundo dos discursos, de imediato se percebe que o mar é um sucedâneo – comprado
em fim-de-estação – do PREC e da CEE. A liquidez das águas oceânicas apela à difusa
fluidez dos sonhos. O mar está a tornar-se numa nova desculpa (ver esse mapa
da extensão da plataforma continental
proposto à ONU) que tem todos os
ingredientes para sustentar o delírio de várias gerações.
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