John Everett Millais - Love from Willmot's Poets
O amor, aliás, é sempre a revolta de um par contra o saber da
multidão. (Robert Musil)
A fortuna que o amor alcançou entre os seres humanos dever-se-á menos
aos estratagemas biológicos que, através das pulsões eróticas, a espécie
utiliza para se reproduzir, do que ao espírito de revolta que representa um par
de amantes. Ulrich, a personagem central de O
Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, distingue claramente o objecto dessa
revolta. E este não é sequer a massa, a multidão, mas o seu saber, as suas
crenças, opiniões e representações, pois estas são um cimento sólido dessa
multidão.
Pedro e Inês ou Romeu e Julieta, no fervor da sua atracção erótica,
sabem alguma coisa que a multidão não sabe. Esse saber é, como se sabe pelos
desenlaces trágicos conhecidos, inaceitável pela massa. Esta sente sempre
desconforto – em alguns casos, verdadeiro terror – perante esse isolamento dos
amantes relativamente à opinião da multidão. Estes desconforto ou este terror
dever-se-ão a quê? Aqui, Elias Canetti (Massa e Poder) pode ajudar. A revolta
dos amantes contra o saber da multidão, o senso comum, contra esse saber que
une os homens, traz com ela uma ameaça de desagregação da própria multidão.
É aqui que se percebe a fortuna que o amor alcançou entre a humanidade.
Essa fortuna deriva de uma vertigem. Esta nasce de um conflito que se abre em
cada amante. Por um lado, ele pertence à multidão, é formatado pelo senso
comum, esse saber da massa, e quer que a massa não se desagregue. Por outro,
ele deseja um conhecimento pessoal e não partilhável, um saber feito de
experiência puramente privada, de uma experiência que põe em causa o saber da
multidão e a própria multidão de onde ele saiu, mas a que pertence.
Mais do que os dons eróticos do objecto amado, é esta vertigem nascida
do conflito entre a inclinação para o saber da massa e o desejo de uma
experiência e de um saber privados que faz a glória do amor. E o amor persiste
enquanto o par amoroso sentir a sua paixão como uma revolta, enquanto sentir a
dilaceração entre aquilo que é o senso comum da massa e o seu saber privado,
pessoal e intransmissível.
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