Masai girls undergoing their Rites of Passage in Kenya
No debate em curso na esfera pública sobre a abolição dos exames dos
1.º e 2.º ciclos têm sido esgrimidos argumentos de diversas ordens, pedagógica,
psicológica, social e política. Há um aspecto, mais fundamental, que, todavia,
tem sido deixado de lado, o qual poderia ser denominado como aspecto
antropológico. A questão pode ser colocada da seguinte forma: o que significam
os exames no âmbito de uma cultura como a nossa? A resposta funda-se num
conceito do antropólogo francês Arnold Van Gennep (1873 – 1957). Os exame são ritos de passagem. Os ritos de passagem são ficções colectivas que têm por fim
ordenar a natureza. Marcam uma alteração no estatuto da pessoa. Estes ritos
de passagem permitem aos indivíduos, das sociedades tradicionais, estruturar a
sua vida em etapas precisas, o que lhes possibilita dar sentido à sua
existência e à sua condição mortal. São formas de tornar o mundo mais familiar
e, por isso, menos ameaçador.
Os exames – em qualquer nível de escolaridade – têm estas características.
São provas que marcam uma alteração do estatuto da pessoa. O indivíduo que
passa por um rito de passagem torna-se, simbolicamente, outro. Ganha uma
densidade que não possuía e adquire a consciência de ter enfrentado uma
provação e de a ter ultrapassado. As sociedades modernas possuem no seu núcleo central
o conhecimento. É este que permite ao homem sobreviver e dar sentido à sua
própria existência. Não é de estranhar que os ritos de passagem na nossa
sociedade tomem a figura de rituais, cujo núcleo é a submissão a provações cognitivas.
Os exames são isto mesmo.
Aquilo que agora acontece de novo em Portugal, que é prática
generalizada no mundo ocidental, o protelar da prestação de provas até ao
início da juventude (9.º ano, final do ensino básico), diz-nos muito sobre o Ocidente.
Na prática, a ruptura com a infância faz-se apenas já depois de a puberdade ter
sido ultrapassada. Esta abolição dos ritos de passagem que assinalam o fim da
infância (o exame do 4.º ano) e a dos ritos de passagem da puberdade (o exame
do 6.º ano) tem uma clara leitura: uma recusa dos próprios adultos em ajudar as
novas gerações a ultrapassarem a infância, protelando até uma idade tardia a
ruptura com essa infância. Os adultos agem como se tivessem medo de que as
crianças saiam da infância e se aprestem para lhes tomar o lugar.
Ser submetido a um rito de passagem – no nosso caso, a exames – não é
uma ameaça à criança e ao jovem em idade da puberdade. Pelo contrário, é
dar-lhe um sentido para as transformações físicas e espirituais pelas quais
está a passar. Ele passou o exame e tornou-se outro. Ganhou uma nova
identidade. Tornou-se também mais seguro de si e compreendeu que a vida é
composta por etapas e por provas. A abolição dos exames no Ocidente – recordo que eles são os nossos ritos de passagem –, em vez de ajudar as novas gerações, torna-as menos capazes de dar um significado simbólico à existência, menos
capazes de enfrentar obstáculos e de os superar. Na prática, infantiliza-as e
torna-as menos aptas a enfrentar os ritos de passagem que vão ser decisivos na
idade adulta.
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