quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Exames e ritos de passagem

Masai girls undergoing their Rites of Passage in Kenya

No debate em curso na esfera pública sobre a abolição dos exames dos 1.º e 2.º ciclos têm sido esgrimidos argumentos de diversas ordens, pedagógica, psicológica, social e política. Há um aspecto, mais fundamental, que, todavia, tem sido deixado de lado, o qual poderia ser denominado como aspecto antropológico. A questão pode ser colocada da seguinte forma: o que significam os exames no âmbito de uma cultura como a nossa? A resposta funda-se num conceito do antropólogo francês Arnold Van Gennep (1873 – 1957). Os exame são ritos de passagem. Os ritos de passagem são ficções colectivas que têm por fim ordenar a natureza. Marcam uma alteração no estatuto da pessoa. Estes ritos de passagem permitem aos indivíduos, das sociedades tradicionais, estruturar a sua vida em etapas precisas, o que lhes possibilita dar sentido à sua existência e à sua condição mortal. São formas de tornar o mundo mais familiar e, por isso, menos ameaçador.

Os exames – em qualquer nível de escolaridade – têm estas características. São provas que marcam uma alteração do estatuto da pessoa. O indivíduo que passa por um rito de passagem torna-se, simbolicamente, outro. Ganha uma densidade que não possuía e adquire a consciência de ter enfrentado uma provação e de a ter ultrapassado. As sociedades modernas possuem no seu núcleo central o conhecimento. É este que permite ao homem sobreviver e dar sentido à sua própria existência. Não é de estranhar que os ritos de passagem na nossa sociedade tomem a figura de rituais, cujo núcleo é a submissão a provações cognitivas. Os exames são isto mesmo.

Aquilo que agora acontece de novo em Portugal, que é prática generalizada no mundo ocidental, o protelar da prestação de provas até ao início da juventude (9.º ano, final do ensino básico), diz-nos muito sobre o Ocidente. Na prática, a ruptura com a infância faz-se apenas já depois de a puberdade ter sido ultrapassada. Esta abolição dos ritos de passagem que assinalam o fim da infância (o exame do 4.º ano) e a dos ritos de passagem da puberdade (o exame do 6.º ano) tem uma clara leitura: uma recusa dos próprios adultos em ajudar as novas gerações a ultrapassarem a infância, protelando até uma idade tardia a ruptura com essa infância. Os adultos agem como se tivessem medo de que as crianças saiam da infância e se aprestem para lhes tomar o lugar.

Ser submetido a um rito de passagem – no nosso caso, a exames – não é uma ameaça à criança e ao jovem em idade da puberdade. Pelo contrário, é dar-lhe um sentido para as transformações físicas e espirituais pelas quais está a passar. Ele passou o exame e tornou-se outro. Ganhou uma nova identidade. Tornou-se também mais seguro de si e compreendeu que a vida é composta por etapas e por provas. A abolição dos exames no Ocidente – recordo que eles são os nossos ritos de passagem –, em vez de ajudar as novas gerações, torna-as menos capazes de dar um significado simbólico à existência, menos capazes de enfrentar obstáculos e de os superar. Na prática, infantiliza-as e torna-as menos aptas a enfrentar os ritos de passagem que vão ser decisivos na idade adulta. 

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