Edvard Munch - Atardecer en el Paseo Karl Johann (1892)
Ontem, aqui, argumentou-se a favor dos exames a partir da sua função
cultural, numa perspectiva que se poderia dizer etnológica. Hoje
recupero um texto escrito em 2007, no meu antigo blogue averomundo. Tem pelo menos a virtude de mostrar que sou favorável
aos exames desde há muito. A perspectiva adoptada no texto é diferente da de
ontem e pode ser vista como complementar. Reflecte sobre o exame como mecanismo
de vigilância de produção de confiança social. Segue o texto de 2007.
Qual o fundamento social para a existência de exames? Não é testar os
conhecimentos ou avaliar os alunos. Observe-se o que acontece num exame. O dado
social mais importante de um exame não é a prova, nem a sua resolução, nem os
seus resultados, mas a vigilância. Um conjunto de alunos é submetido a uma
prova vigiada por dois professores. Porquê? Porque é necessário vigiar as
aprendizagens.
A sociedade não confia no ensino dos professores e na sua avaliação e
precisa de a vigiar através de exames nacionais. Por outro lado, também não
confia nos alunos. Por isso, estes, em exame, são vigiados por dois
professores, que não apenas vigiam os alunos, mas que se vigiam entre si, não
vá algum tergiversar. A coisa não fica por aqui. Os professores na vigilância
são vigiados por funcionários, não deite um deles a correr escola fora. Há
também a presença vigilante de outros professores que coordenam o processo e a
própria direcção das escolas encontra-se em estado vígil. A inspecção,
vigilante, inspecciona as vigilâncias.
Por fim, o Ministério da Educação, benévolo, está vigilante
relativamente ao processo das vigilâncias. Nas traseiras de todo este processo
de vigilância, encontra-se a ameaça de punição (vigiar e punir, Foucault
dixit). Numa democracia, supõe-se que os eleitores vigiarão e estarão
vigilantes relativamente ao poder político, incluindo aí o Ministério da
Educação.
O fundamento social para a existência dos exames é a desconfiança no
próximo. Os exames existem, como outros mecanismos sociais, porque a confiança
entre os indivíduos que fazem parte de uma comunidade é muito frágil. A
fragilidade da confiança, isto é, da fé (fiança) conjunta, leva à criação de
mecanismos que evitem a suspeita e certifiquem os resultados, mostrando que eles
são dignos de fé. Os exames são uma forma de aumentar a confiança social no
trabalho dos professores e das escolas.
Abolir os exames – como se fez e alguns pretendem consumar esse facto,
acabando com todos os exames – seria fazer fé no próximo. A causa é nobre, mas
sofre de um optimismo antropológico não confirmado pela realidade. Os exames
públicos são, pelo contrário, a expressão de um pessimismo antropológico. O
homem não é um ser fiável e do qual os outros se possam fiar. Se isto estiver
claro na nossa cabeça, percebemos a realidade dos exames, porque são
necessários e porque deverão ser alargados a todos os ciclos. Servem para criar confiança no sistema.
Um estado de direito funciona segundo a lei e presume que todos são
inocentes até prova em contrário. Contudo, esta confiança está assente num
fundamento negativo: o da desconfiança geral entre os homens. A expressão
«presunção de inocência» é o mais poderoso revelador desse fundamento negativo
e, como os exames, uma forma de pessimismo antropológico. Se este pessimismo
antropológico tivesse sido dominante nos últimos trinta anos, ter-se-iam
evitado muitos disparates e a educação dos portugueses teria outras colorações
e apresentaria outro aspecto. (averomundo,
2007/06/21)
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