Umberto Boccioni - Group of figures related to scene of an urban crowd (1910)
Não celebrarás no deserto a
festa, um dia, à sombra dos canaviais, a ordenaram. Tomado pela areia movediça,
o corpo cede instante a instante e, no lento mover-se em direcção ao fundo,
contamina-se de insectos. Multidões de varejeiras desenham uma prisão de asas,
tão leve como as flores do nenúfar, e, nessa inquietação, sobeja ainda um sopro
que de entre os lábios sai. A mão, assim lhe chamaram, acaricia as grades, e no
vento por elas soprado há um frémito fatal que escurece a negra luz: sobre o
mundo, ao arder, incendeia furacões, tempestades tropicais, as areias em
convulsão, onde corpos, exaustos de tanto gritar, se tornam cediços, maleáveis,
matéria friável a abrir-se à inconstância pegajosa dos sonhos.
Por aí caminha um povo de
sonâmbulos, as nuvens tapam de folhas os que enfrentam as agruras sufocadas das
areias, poeira solícita que ao alcatrão cobre e dos homens o escondem, como se
ele, na síntese viscosa que o faz ser, cometesse um crime e em seu ser
criminoso apenas velados espaços quisesse por morada.
Era um povo sem pátria nem
castelos nem rios nem memória. Habitava a nudez e quando os homens se
inclinavam para os seios das mulheres, estas olhavam a paisagem ao longe e
deixavam a água escorrer dos cântaros de barro vermelho, cobriam de luto a
cabeça e os olhos, olhos eram, fechavam-se à intensa cor do dia, agora um risco
vazio num calendário de folhas ressequidas, herbário onde rosas, violetas e
lírios se decompunham durante os meses de Verão, violentos meses eram.
Seguiam depois em frente, homens
e mulheres, mas nem o deserto os acolherá nem lugar terão para a festa, um dia,
na ordenação das coisas, ordenada lhes fora. Seguem calados o movimento dos
astros, enquanto com os dedos desenham esfinges de água sólida sobre o silente
fragor da terra.
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