Vale a pena escutar a lição de Fernando Rosas, no Público, sobre os 194 anos do nosso constitucionalismo. Uma sensação estranha apodera-se do ouvinte. O constitucionalismo, nos seus diversos momentos, emerge sempre como um drama constitucional, como se, na verdade, existisse ainda hoje - e isso foi patente com o governo anterior - uma nostalgia por uma ordem política pré-constitucional. As constituições escritas são um produto da Revolução Francesa e visam limitar a a arbitrariedade do poder. Foram contestadas pelos teóricos da contra-revolução, nomeadamente por Joseph de Maistre, talvez o mais brilhante inimigo da Revolução Francesa.
O que significa uma ordem pré-constitucional? Fernando Rosas, na sua lição, acaba por referi-lo, quando fala da suspensão da Carta Constitucional por D. Miguel e o retorno ao absolutismo régio. Esta nostalgia por uma ordem pré-constitucional, todavia, pode manifestar-se muito para além da questão específica do poder. O destino da Constituição de 1933 e as suas subsequentes revisões são o momento mais claro, mas não o único, dessa nostalgia. Esta manifesta-se na concepção organicista da sociedade. A sociedade não é vista como um somatório de indivíduos que interagem segundo os seus interesses, mas como um organismo onde cada um encontro o seu lugar. Deste ponto de vista, não há diferença significativa em relação ao absolutismo e as ordens sociais em que este se estruturava. Tão ou mais marcante que o anti-comunismo da Constituição de 33 é o seu anti-liberalismo.
E na constituição de 1976 também está presente essa nostalgia de uma ordem pré-liberal? Aparentemente, não. Ela é a primeira constituição que, como explica Fernando Rosas, consagra plenamente a democracia. No entanto, podemos ainda encontrar essas nostalgia de uma ordem orgânica, pré-liberal, no texto constitucional. Não tanto na tutela da democracia pelo Conselho da Revolução, embora essa tutela fosse tudo menos democrática. Fundamentalmente, na inscrição dos direitos sociais no texto constitucional. Esta inscrição não significa um desejo de um regime político como o velho absolutismo, mas é sintoma de uma vontade de integração orgânica de todos assegurada pelo aparelho político.
A concepção organicista da sociedade da Constituição de 33 ou os direitos sociais constitucionalizados em 76 são, embora de formas diversas e com fundamentações muito diferentes, sinais de nostalgia de uma ordem orgânica na qual todos encontram, a priori, o seu lugar, o qual é cuidado pela acção benévola do Estado. São também a manifestação da dificuldade que, desde a primeira hora, o liberalismo encontrou em Portugal. De certa maneira, os portugueses pressentem que entregues a si mesmos - apesar das bravatas com que nunca deixam de se cobrir e de evidenciar a sua hiperbólica masculinidade ou galhardia - não saberiam encontrar o seu lugar na sociedade. Não perceber este pressentimento, este medo que se vai travestindo de inveja, de incapacidade de inscrição na realidade, de saudade, etc., etc., é colocar-se fora do país real. Quando isso acontece na política, é um passo para o desastre.
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