segunda-feira, 4 de abril de 2016

O Livro do Êxodo 1. As dispersas sementeiras

Claude Monet - Tulip Fields in Holland (1886)

Não há quem saia pela manhã a olhar as dispersas sementeiras, os campos invadiram. A mão crispou-se, é agora novelo de linho esquecido sob a luz da clarabóia. Não há seta que indique o lugar onde o desejo se quer e irrompe no crepúsculo matinal, entre corações desfeitos, a gotejar ervas, e as mãos presas à viagem, assim começada, para um deserto de páginas em branco, sem luz que as ilumine, sem cor que as incendeie, sem sílabas que lhes dêem por filhos palavras.

Não é um cântico de júbilo o que na garganta se forma, nem uma palavra tingida pela acidez dos dias. O arco-íris esbateu-se, mas as nuvens ficaram, cada dia mais opacas, quase sólidas, numa atmosfera de cactos, ruas vazias, faces atónitas, levemente estropiadas. Se cicatrizes ainda têm, nelas nasceu uma erva rasa, amarela, queimada pelo cálcio, a tudo devora.

Não é âncora o que ofereço, nem lenço para lágrimas, se lágrimas ainda te ardem sobre a pele rugosa, a face, dizes. Espelhos não fabrico, nem do vidro sei o segredo, nem das mãos o aconchego. Canto na escuridão para não morrer de medo, para me ouvir e adivinhar o que ainda sou. Nesta ilusão caminho estrada fora, pés no chão, e na cabeça, se ainda a tenho, o ar da noite preso a uma vela. Ao arder, ponho uma máscara de cera e se invoco o deus, oiço a voz de quem já de casa não sai a olhar as dispersas sementeiras que, no fulgor do passado, os campos invadiam.

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