Claude Monet - Tulip Fields in Holland (1886)
Não há quem
saia pela manhã a olhar as dispersas sementeiras, os campos invadiram. A mão crispou-se,
é agora novelo de linho esquecido sob a luz da clarabóia. Não há seta que
indique o lugar onde o desejo se quer e irrompe no crepúsculo matinal, entre
corações desfeitos, a gotejar ervas, e as mãos presas à viagem, assim começada,
para um deserto de páginas em branco, sem luz que as ilumine, sem cor que as incendeie,
sem sílabas que lhes dêem por filhos palavras.
Não é um
cântico de júbilo o que na garganta se forma, nem uma palavra tingida pela acidez
dos dias. O arco-íris esbateu-se, mas as nuvens ficaram, cada dia mais opacas,
quase sólidas, numa atmosfera de cactos, ruas vazias, faces atónitas, levemente
estropiadas. Se cicatrizes ainda têm, nelas nasceu uma erva rasa, amarela,
queimada pelo cálcio, a tudo devora.
Não é âncora
o que ofereço, nem lenço para lágrimas, se lágrimas ainda te ardem sobre a pele
rugosa, a face, dizes. Espelhos não fabrico, nem do vidro sei o segredo, nem
das mãos o aconchego. Canto na escuridão para não morrer de medo, para me ouvir
e adivinhar o que ainda sou. Nesta ilusão caminho estrada fora, pés no chão, e
na cabeça, se ainda a tenho, o ar da noite preso a uma vela. Ao arder, ponho
uma máscara de cera e se invoco o deus, oiço a voz de quem já de casa não sai a
olhar as dispersas sementeiras que, no fulgor do passado, os campos invadiam.
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