Anónimo japonês - Portrait of the poet Shinratei Manzo (1829)
Ao longe as sirenes ecoam na água
da tarde, e um ruído de carvão atiça-se na estrada onde o viandante poisa, por
instantes tão breves, um pé, logo de seguida o levanta, enquanto o outro, se
outro ainda tem, desce em direcção à poeira branca e suja da terra. Assim
caminham aqueles que caminham, talvez um santuário no fim da estrada exista, e dessa
caminhada seja, quando a voz se afundar no peito, ponto final, denso e cerrado
e agreste.
Os que caminham são ladrões de
palavras. Roubam, na inércia do caminhar, os túmulos onde elas adormeceram, tão
mortas, esquecidas de tanto hábito, gastas pelo vilipêndio dos dias, como se já
não houvesse, no som que as animava, um segredo de flores pelo chão ou
vacilantes cascatas ao cair da tarde, onde as aves do deus bebam a água
derradeira antes de entoarem, pela tarde de cinza, o mais belo dos cantos, diz
quem o escutou.
Talvez a vindimadora ainda não
venha, a frágil foice em riste, cerzir com pétalas animais e terra metálica a
fissura que da vida a morte desliga. Os ladrões, ao afastarem-se para ela vão,
caminham na noite por estradas de palavras, sílabas desfeitas na oclusão do
palato, na cercadura sempre fechada dos lábios. Avançam pregados à sombra e
reviram os olhos se os ilumina o clarão de algum pássaro, ou da lonjura da
estrada um carro, na pressa motorizada que ronca, os entontece de luz,
encandeia e logo desaparece, sem que um destino para aquela chama o que caminha
descubra, quando na noite ouve as sirenes e se afasta, cheio de palavras
roubadas, dos túmulos de pedra e cal. Os deuses para elas os construíram nas
manhãs intérminas, enlouquecidos, pois a vindimadora jamais a foice lhes
estende.
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