Amadeo de Souza Cardoso - Cabeça (1914-16)
Em terra alheia sou peregrino e caminho
ébrio pelo asfalto. As torrentes de ar incendeiam-me o rosto, as faces lívidas
com que entro nesta cidade, e deixam aberto em mim o martelar furioso das
pedras ígneas do silêncio. Não sei o preço da viagem, nem tenho nos bolsos
moedas, ouro, prata. Algumas pedras da estrada, se as penso, tomo na mão e o
peso verga-me o olhar para o alcatrão.
Às vezes, tão poucas, oiço vozes
ao longe e sonho com prados de água seca e fogos frios de Outono, se transpira
de cansaço. Tão gélido o fogo, o que me trazem para escutar, cor de cobre,
metálico nas labaredas, na terra entram e ocultam-se. São fogos de Outono, a
vergonha habita-os, e longe dos olhares procuram moradia. Pela calada da noite
o seco véu do Inverno virá.
Do turbilhão dos músculos
soltam-se passos infalíveis, o bater dos pés pelo chão, levam-me terra fora.
Que dizer? Ao vê-los, riem crianças. A voz cala-se. Se o corpo caminha, ela,
rouca, suspende-se, e só os olhos se agitam no repouso da paisagem, nova sempre
vem, e entra por eles e filtra-se no cérebro do que caminha, passos errantes, a
gerar riso de moscardo, cinzento, sem pétalas, gretado como as águas amargas
dos que tiveram memória e dela foram despojados.
Desconheço as faces, o horizonte
mas devolve, e não posso comprar pão e vinho. Há muito deixei de ter mesa onde
os pousar e se regressar agora à casa branca, um dia disseram-me: esta é a tua
casa, as paredes não me reconhecerão e naquela mesa, se mesa ainda tiver, não
haverá para a minha sombra lugar, nem guardanapo, nem prato de barro esperará a
ânsia da fome, haveria de a ter.
Resta-me caminhar, passar. As
portas fechadas, cadeados quebrados, janelas corridas. Às vezes, tomam-me as
sombras da tarde e a elas entrego o nada que me resta, os deuses mo deram.
Perdida a ausência que me movia, ergue-se uma canção pura: delata-me à negra
noite, aos terrores da infância. O coração descompassado esvai-se num grito, e
logo o silêncio o arrebata e o devolve à planície da mudez. Ergo-me sobre as
pernas e, preso a meus passos, retomo a viagem, olhos no horizonte, um saco de
ervas e dois relâmpagos por bagagem.
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