domingo, 7 de maio de 2023

A crise


(Nota: o texto foi escrito antes da crise das relações entre Primeiro-Ministro e Presidente da República, os pormenores e soluções possíveis tornaram-se anacrónicos, o fundamental do texto permanece actual.)
 

O que se está a passar na área da governação é um sintoma de um mal que atinge os fundamentos da vida política. A oposição à direita está na expectativa de novas eleições, o Presidente da República ameaça com o uso dos poderes para dissolver o parlamento, o presidente do Partido Socialista, ao falar da necessidade de uma remodelação ministerial, passou uma certidão de óbito à actual composição do governo. Independentemente do que vem aí, se uma remodelação do governo, se uma dissolução do parlamento, parece não haver capacidade para ultrapassar o que se passa à superfície e perceber o que, mais fundo, está a originar a crise. 


Durante décadas, um populismo difuso cultivado pelos portugueses, secou em muitas pessoas o desejo de participar na vida política. Um discurso antipolítico, absolutamente destrutivo, mascarado de liberdade crítica, alimentou o afastamento de muita gente boa da vida política. As pessoas não se estão para se sujeitar à vociferação popular, para ver a sua vida arrastada pela praça pública, para serem vilipendiadas apenas porque pensam de uma determinada maneira. Isto já se manifestava no tempo em que não havia redes sociais. Com a vinda destas, tudo piorou.  Como povo, conseguimos afastar os melhores.


Os partidos políticos, todavia, não são inocentes. Os da área da governação tornaram-se estâncias de incompetentes e videirinhos. Sem concorrência de gente competente e com sentido cívico, a vida partidária tornou-se uma árdua luta por lugares e prebendas, para a busca da miserável glória de ocupar lugares nas diversas instâncias do poder. Miserável, não porque o poder político seja algo de indigno, mas porque muitos dos que o ocupam não o fazem para servir o bem comum. Nem uma remodelação governativa, nem uma troca de opções ideológicas mudará alguma coisa. Só a cegueira ideológica achará que uma opção em volta do PSD será, em substância, diferente da actual. 


Temo, na verdade, que não exista uma solução para o problema. O mais plausível é que, com remodelação ou novas eleições, tudo se continue a degradar. Os portugueses, alimentados por uma comunicação social partidarizada e pelo anonimato das redes sociais, insistirão numa cultura onde falta grandeza cívica e onde está ausente qualquer preocupação pela democracia e pelo Estado de direito. Os militantes partidários, cegos pelo desejo de serem alguém, continuarão as suas guerras do Arlequim e da Manjerona, com os seus dramas de faca e alguidar. Até que a ruína destrua o edifício democrático e se entregue o país a um aventureiro disposto a usar o chicote sobre os portugueses.

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