quarta-feira, 4 de julho de 2012

O trabalho do professor

Pérez Villalta - El rumor del tiempo (1984)

A propósito do meu artigo A invenção de Crato e da troca de opiniões que se lhe seguiu na caixa de comentários, fiquei de retomar uma ideia que é fundamental na educação e que nunca é debatida. Tem a ver com o carácter paradoxal daquilo que é pedido aos professores. Em linhas gerais, aquilo que a escola faz, ou deve fazer, é adequar, através da transmissão de um determinado currículo, as novas gerações ao corpo social e à comunidade política a que pertencem. Fazem-no através de quê? Através de um currículo que é proposto à aquisição pelos alunos e transmissão pelos professores.

Ora o currículo proposto, determinado politicamente, é o conjunto de saberes que são considerados essenciais e que, através da sua transmissão/aquisição, devem ser conservados. A escola tem uma natureza estruturalmente conservadora. Isto não é de admirar pois a escola não é uma invenção moderna. Ela já existia, em moldes muito específicos, antes da modernidade irromper na cena do mundo. A função que tinha de transmissão de conhecimentos marca a sua índole conservadora. E a escola, hoje em dia, continua a ter essa função conservadora.

A Querela dos Antigos e dos Modernos, iniciada em 1687, pode ser considerada o momento em que a modernidade ascende à consciência de si. Lentamente, mas de forma cada vez mais acelerada, a questão da modernização abandona o estrito campo das artes e toma conta da sociedade. Como não podia deixar de ser, a necessidade de modernizar vai entrar nos próprios sistemas de ensino, que não apenas se devem modernizar mas, ainda, preparar as novas gerações para uma modernização contínua.

É aqui que está o paradoxo que gera muitos equívocos e dificuldades na profissão de professor e, também e em primeiro lugar, na definição dos objectivos da educação. Aos professores pede-se ao mesmo tempo duas coisas. Que eles preparem as novas gerações para conservar a herança recebida e que preparem essas mesmas gerações para serem inovadoras, isto é, destruidoras (a chamada destruição criadora de Schumpeter, a qual se pode alargar do âmbito económico para a sociedade em geral) dessa herança. Educar para conservar dificilmente é compatível com o educar para destruir. Este paradoxo gera a esquizofrenia que atinge o sistema educativo e todos os agentes que dele fazem parte.

Se olharmos para a atitude de muitos professores, descobrimos que ela plasma uma das posições em jogo na Querela dos Antigos e dos Modernos. Uns serão mais ou menos conscientemente classicistas e outros modernizadores ou revolucionários. A grande maioria, porém, tenta sobreviver no meio do conflito. Onde reside a dificuldade? No material que os professores têm de trabalhar.

Nos alunos? Não. Contrariamente ao que o senso comum pensa, não é essa matéria-prima que os professores devem trabalhar. A matéria de trabalho dos professores é algo que nunca lhes foi dito que é a sua matéria de trabalho. A matéria de trabalho do professor é o tempo. O tempo enquanto habitado por seres humanos que o tentam domar e domesticar. O trabalho do professor é o de agenciar e mediar no presente a transição do passado para o futuro. E para isso, que é o essencial da profissão, não há técnicas nem estratégias que valham a um professor. A dificuldade cresce porque tanto passado como futuro são duas inexistências. O passado já não existe, é apenas memória retida no currículo; o futuro ainda não existe, é apenas expectativa de construção de um novo currículo. 

De facto, não há mapa neste território que é o tempo. Talvez aquilo que faça um grande professor seja a capacidade de viver na paradoxo e aceitar a dilaceração que as exigências da memória e da expectativa põem, a capacidade de colocar os alunos nessa situação paradoxal de conservar uma herança que lhes cabe destruir para sobreviver numa sociedade que é marcada pela contínua obsolescência de tudo. Todos os cursos de formação de professores deveriam começar por uma meditação sobre o tempo e sobre o modo como somos obrigados a viver nele, uma meditação como as novas gerações se vão ligar ao passado, plasmado no currículo, e se devem abrir ao futuro, inventando os materiais que serão objecto de novos currículos que destruirão os anteriores. 

A questão que há a decidir é sempre a seguinte: qual o lote que cabe, no instante presente, ao passado e o lote que cabe ao futuro? Perante os alunos, apenas a intuição do professor, fundada no conhecimento, na experiência e na reflexão, permite agenciar equilibradamente o passado e o futuro, a memória a transmitir e o desejo de destruição a instituir. Não é fácil.

2 comentários:

  1. Se faço um paralelo com o que se passa nas empresas não é porque ache que gerir uma empresa seja a mesma coisa que gerir uma escola. No entanto, a realidade das empresas é uma realidade que conheço bem pelo que me é difícil abstrair dela quando penso no que se passa numa qualquer outra organização, mesmo que essa organização seja um estabelecimento de ensino.

    Um dos trabalhos que de vez em quando se faz nas empresas, de forma transversal, por forma a que toda a gente esteja alinhada no que se refere aos principais conceitos, é o de identificar coisas que parecem óbvias mas que, de facto, suscitam as maiores divergências. Ex: quem são os nossos clientes, o que é que nós vendemos, quais os nosso objectivos, etc.

    Um caso muito citado: "Quote from a Harley-Davidson exec:"What we sell is the ability for a 43-year-old accountant to dress in black leather, ride through small towns and have people be afraid of him.", ou seja, o que vendem não é uma mota, mas um sonho, um mito.

    Vem isto a propósito de dizer que a matéria prima não são os alunos mas o tempo. Eu diria que isso me causa estranheza.

    Eu diria que o tempo é um recurso ou uma condicionante, mas não a matéria prima. A matéria prima é aquilo em que se pega, se sujeita a um processo de transformação a partir do qual se transforma (passe o pleonasmo) num produto acabado ou intermédio.

    Ora um professor tem por missão (diria eu) transformar o nível de conhecimentos, de compreensão e de construção de novos raciocínios dos alunos a seu cargo. Pega neles num determinado nível e deve acabar o ano lectivo com eles num nível superior.

    Ou seja, tendo em atenção o recurso limitado que é o tempo e todas as circunstâncias que habitam esse tempo, deverá conseguir transmitir conhecimentos básicos e fundadores (ou os chamados 'fundamentals') - e aí a vertente conservadora - evidenciando sempre os processos construtivos e disruptivos que estiveram na génese das descobertas, e incentivando os alunos a que pensem, descubram e pesquisem por si próprios - e aqui a vertente modernista. Quem não perceba bem isto dificilmente cumprirá com o que, a mim, me parecem ser os verdadeiros desígnios da profissão de educador [educador= professor (?)]

    Vou ficar por aqui porque acho que não deve caber muito mais no espaço dos comentários.

    Mas será que, a si, isto lhe faz sentido? Por exemplo: faz-lhe sentido falar de um tema, explicar, fundamentar e, quando os alunos dão mostras de o compreender, desampará-los, mostrando-lhe maneiras totalmente diferentes de interpretar a mesma coisa? Deixá-los perplexos? Pô-los a defender posições contraditórias, estimular a discussão e a elaboração de argumentação? Não é esta uma, das muitas formas, de ser a um tempo conservador e subversivo?

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    1. Sobre a questão do tempo ser a matéria prima do trabalho do professor, voltarei ao assunto a partir da distinção de vários tipos de temporalidade (cósmica, específica, social e psicológica) bem como da sua associação à espacialidade (ao corpo).

      Relativamente aos métodos de trabalho, eles devem variar em conformidade ao que é pedido. Um breve exemplo. Já leccionei o mesmo programa (o de 12.º ano de Filosofia, onde eram trabalhadas 3 obras) de formas absolutamente diferentes. Quando os alunos estavam sujeitos a exames que determinavam a a entrada na universidade, todo o trabalho, avaliação incluída, estava voltado para isso mesmo. Quando acabaram com o exame, tudo mudou, nem testes havia. As aulas funcionavam em seminário, os alunos tinham de ler as obras seleccionadas, mas faziam percursos diferenciados em conformidade com os seus interesses. As avaliações incluíam projectos de investigação e os respectivos trabalhos, bem como a discussão pública dos trabalhos comigo. É evidente que hoje em dia não consigo abrir uma turma de 12.º ano.

      Quem está numa escola sabe que este tipo de trabalho é dirigido a uma elite de alunos (que podem não ser os que têm melhores notas, mas têm desejo de aprender).

      Aquilo que refere na parte final, não implica ser subversivo. O estímulo da discussão e da argumentação pode ser até um programa bastante conservador e uma prática conservadora. Talvez passe por subversiva no ambiente mental português, mas ela tem a sua raiz na sofística grega e no diálogo socrático-platónico. O uso das "quaestio disputata", por exemplo, na escolástica, tinha as virtudes que refere e, no entanto, não visava a descoberta do novo, mas da verdade já previamente dada. Não são os métodos o fundamental, mas a forma como se lida com o tempo e se o concebe. Os métodos, como diz o étimo da própria palavra, são apenas caminhos para...

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