terça-feira, 30 de setembro de 2014

Robert Frost - Flocos de Neve (Dust of Snow)

Claude Monet - Snow at Argentruil (1875)

Recuperação de uma tradução do poema de Robert Frost publicada no averomundo (2009/09/09).

The way a crow
Shook down on me
The dust of snow
From a hemlock tree

Has given my heart
A change of mood
And saved some part
Of a day I had rued.

Na rua um corvo
Sobre mim sacudiu
Os flocos de neve
De um abeto frio

Deu-se no coração
Uma mudança de ar
E salvou-se parte
De um dia de penar.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

O terror do paternalismo

Oscar Dominguez - Liberdade (1957)

A notícia de portugueses convertidos ao Islão e ao jihadismo começa a desvelar uma realidade que por cá não se imaginava. Como é possível que alguém nascido e educado nos valores da liberdade se converta a práticas que aniquilam a liberdade dos outros? Esta pergunta surge agora com frequência, perante o feroz fanatismo que se observa em várias partes do mundo. Poderá haver explicações sociológicas e psicológicas para estas conversões e para este tipo de atitude. No entanto, elas tenderão a perder o essencial. Aquilo que dinamiza estas atitudes está presente na maioria dos homens. Trata-se da incurável tentação de mudar os outros, de lhes impor uma conversão que, à falta de uma iluminação na Estrada de Damasco, será realizada pela violência física e pela coacção psicológica, desencadeando o medo nas pessoas.

Nos sítios mais benignos do nosso mundo, há sempre gente que está disponível para converter os outros aos seus valores e modos de vida. Espalhar a sua boa nova em campanhas de educação, seja educar para o amor à literatura, à música erudita, ao teatro, à religião, ao clube desportivo. Dir-se-á que estas coisas não têm todas o mesmo valor. É verdade, mas fazer campanhas a favor da música erudita ou de uma religião não deixa de ser uma forma de querer condicionar o gosto do outro e, em última análise, a sua liberdade. O que acontece é que nem todas estas coisas têm o condão de transformar a nossa melancólica indignação, com o desprezo que os outros votam ao nosso gosto e aos nossos prazeres, num exercício purificador de terror.

Não é grave lançar campanhas para criar públicos de leitores ou de amantes de Beethoven. No fundo, todos somos tentados a achar que essas campanhas têm como finalidade fornecer aos outros um bem espiritual superior. A frustração desses desideratos conduzirá a uma certa indignação melancólica, como dizia, que acabará por se conformar com a ordem das coisas e a indiferença da generalidade dos intimados à conversão. No entanto, não deixa de ser uma visão paternalista do mundo e dos outros. Mas quando esse espírito paternalista e apostólico encontra um objectivo absoluto – seja a submissão a Deus ou a construção de uma sociedade perfeita – essa indignação deixa de ser melancólica e encena a ira divina, transformando-se em terror. O terrorista, em última análise, não suporta que a sua visão do mundo não seja sustentada pela adesão universal a ela. Sente isso, sem o assumir, como um desrespeito à sua pessoa, um golpe no seu inconfessado narcisismo. Ele tem a boa nova, a visão que salvará o mundo. Esta paranóia, plena de ressentimento, não suporta a velha liberdade, aquela de cada um fazer, sem tutores, o que entende da sua vida, desde que não prejudique a liberdade dos outros. Ora esta atracção fatal de muitos jovens ocidentais pelo jihadismo é apenas a intensificação paroxística do paternalismo que cada um de nós alberga no fundo dos seus medos e da sua fragilidade, do seu incurável narcisismo.

sábado, 27 de setembro de 2014

Um risco de penumbra

Emil Nolde - Atardecer de otoño (1924)

Um risco de penumbra desenha a noite sobre a copa verdescura das árvores. Trilhos de luz soltam-se dos faróis em desvario. Por vezes, passam casais de namorados. Olham o horizonte à procura de uma lua que lhes abençoe o destino, os leve para onde só a imaginação pode levar. Sentado diante da janela, ouço o canto das coisas que acontecem e deixo-me acontecer com elas. Voo com os pássaros, ronco com os motores, tremo se as árvores são batidas pela brisa da tarde, enamoro-me quando avisto a melancólica dança de Eros, endureço se o calcário da serra me entra pelos olhos. Ainda não chegaram as estrelas. Aspiro a tarde que se vai e sou a sombra que anoitece nela, o risco de penumbra que desce sobre a terra. (averomundo, 2008/05/24, revisto)

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Diminuição do número de deputados?


A proposta, de António José Seguro, de diminuição do número de deputados traz consigo uma perigosa deriva antidemocrática. O tema da diminuição do número de deputados tem uma forte natureza populista. Na verdade, os portugueses possuem um diminuto respeito pelo parlamento. Não têm dos deputados uma imagem benigna. Desprezam-nos, assim como a outros agentes políticos, e acham inútil a existência de tantos parlamentares, até porque, no imaginário popular, são corruptos e pouco ou nada fazem.

Num artigo da semana passada no Público, Vasco Pulido Valente mostrou que a aproximação dos deputados aos cidadãos através da criação de círculos onde só se elege um deputado (círculos uninominais) não passava de uma perigosa fantasia. Seria a substituição dos deputados presos aos interesses dos partidos por deputados presos aos interesses dos grandes senhores desses hipotéticos círculos uninominais. Isto é, passava-se do mau ao péssimo. Em vez de se obstar à corrupção, acabar-se-ia por fomentá-la. Esse argumento bastaria para que alguém com bom senso evitasse propor uma reforma da lei eleitoral assente na criação de círculos uninominais e na diminuição do número de deputados.

Apesar da proposta de Seguro poder ir ao encontro da voz do povo, ela é perigosa, repito. Não apenas porque pode ter o condão de corromper ainda mais o sistema político, mas também porque diminuirá a representatividade do parlamento português. Na verdade, aquilo que está em causa – e que também muito agrada ao PSD – é uma lei eleitoral que, devido à forma como se escolhem os deputados e ao número reduzido destes, acabe por eliminar parte substancial dos grupos parlamentares dos partidos mais pequenos. O que Seguro pretende é, através de manipulação da lei, acabar com a representação parlamentar significativa do CDS-PP, do PCP e do BE. Com a proposta de Seguro, estes partidos, se não desaparecessem da Assembleia da República, ficariam com um número de deputados que os tornariam irrelevantes na Assembleia.

Como cidadão, mesmo que não nutra nenhuma simpatia por qualquer desses três partidos ou outros que possam emergir, quero que os votos dos portugueses sejam respeitados. Não quero que um partido com 35% dos votos governe como se tivesse maioria absoluta, nem quero que um partido com 10% dos votos tenha apenas 1% ou 2% dos deputados. Quero que todos os votos valham sensivelmente o mesmo. Ora a proposta de Seguro despreza a vontade dos portugueses e protege os grandes partidos do sistema, aqueles que levaram Portugal para o terrível lugar onde se encontra. Seguro não tem mais nada para fazer e para propor?

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Da pura teoria

Umberto Boccioni - Peasants at work (1908)

Desta atitude universal, mas mítico-prática, destaca-se nitidamente, agora, a atitude “teorética”, não-prática em qualquer dos sentidos anteriores, a do θαυμάζειν a que as figuras maiores do primeiro período culminante da Filosofia Grega, Platão e Aristóteles, reconduzem a origem da Filosofia. Apodera-se dos homens o fervor de uma consideração e de um conhecimento do mundo que se afasta de todo e qualquer interesse prático e que, no círculo fechado das suas actividades cognitivas e nos tempos a elas consagrados, nada mais almeja e alcança que pura teoria. Por outras palavras, o homem torna-se um espectador descomprometido, sinóptico, do mundo, torna-se um filósofo; ou melhor: a partir daí, a sua vida torna-se receptiva apenas às motivações que são possíveis nesta atitude, motivações para novos objectivos de pensamento e métodos, através dos quais se realiza, por fim, a Filosofia e o próprio homem se realiza enquanto filósofo. [Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia]

Com este texto de Husserl, retorno a um problema recorrente. O da preeminência da prática. Esta preeminência é sublinhada na célebre, e várias vezes citada aqui (em averomundo), 11.ª tese de Marx ad Feuerbach: «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.» A perspectiva marxiana da supremacia da prática sobre a teoria é oposta à tradição teorética do Ocidente. O que há de especificamente europeu e ocidental é a consideração teórica e desinteressada da realidade. Foi isso que fez a Filosofia e permitiu o nascimento das ciências particulares. A perspectiva marxiana, por muito que possa surpreender, representa um retrocesso às dimensões prático-míticas; uma desconsideração da razão na sua dimensão teórica, por submissão ao critério da práxis, e a abertura novamente para formas míticas de pensamento, consubstanciadas agora na figura da utopia, que o chamado comunismo representa exemplarmente. 

Mas não é o contraponto a Marx que me interessa, mas compreendê-lo como um exemplo de uma atitude que se tem vindo a tornar dominante entre aqueles que, no Ocidente, são anti-marxistas e que dominam a vida política, económica e social. A submissão de toda a vida social a imperativos puramente práticos, a própria submissão da universidade aos interesses empresariais, representa um grave perigo para a subsistência da Europa e do Ocidente, tal como eles se constituíram a partir da Grécia clássica. É isto que está a tornar a Europa permeável a formas prático-míticas de pensamento, formas que não se reconhecem na tradição teorético-contemplativa ocidental. Por exemplo, a leitura do conflito entre a cultura islâmica e a cultura ocidental. Quando apenas se vê a questão do véu ou a dos minaretes suíços (ou agora da adesão de jovens ocidentais ao Islão), não se percebe a dimensão do conflito, que é um conflito entre duas intencionalidades. dois projectos distintos para a existência da humanidade. É aqui que está o problema e é aqui que é preciso discuti-lo.  O mal do Ocidente não é a falta de acção, mas acção a mais desprovida de pensamento. (averomundo, 2009/12/21, revisto)

terça-feira, 23 de setembro de 2014

O estupro do nada

Chema Cobo - Eternity as a half of nothing (1997)

Devo a Claudio Magris – ao título de uma crónica sua no Corriere della Sera recolhida em Alfabetos – o espantoso título, O estupro do nada, que usurpei para titular o meu pobre post. Magris deriva, na sua crónica, para a perturbação introduzida pela irrupção de um novo ser, seja uma criança, uma obra de arte, seja o próprio mundo tirado ex nihilo pelo artifício de Deus. O que me fascinou, porém, no título não foi a sua relação com o produto do estupro, o novo ser que emerge perturbante e perturbador. O que é verdadeiramente fascinante é o acto de estuprar o nada, o exercício de uma violência, de uma violação onde o violado é um puro ausente – nada – ou uma pura e simples ausência.

Sob tudo isto – ou talvez em seu redor – sente-se o odor da heresia. Não tanto nas considerações que se podem fazer sobre a arte ou mesmo sobre a irrupção de um novo ser – por exemplo, um ser humano – na ordem existente no mundo. De facto, nesses casos é um excesso a expressão usada por Claudio Magris. Esse excesso deve-se ao facto de não ser o nada que é violado, mas antes uma certa ordem do ser. Essa ordem do ser é violada e aniquilada. A mulher que é estuprada (e todo o acto sexual entre um homem e uma mulher pode ser visto como um estupro, uma violação) e dá à luz aquele que vem depois dela e lhe anuncia a sua morte, aquele que a aniquila. Por outro lado, a nova obra de arte resulta da aniquilação de uma tradição artística por algo que a supera e vem tornar patentes os seus limites. A criação humana – seja a de um filho ou a de uma obra de arte – pode ser vista como um estupro, mas nunca como o estupro do nada. A perturbação não vem do excesso de libido mas do que emerge e põe em causa o que está. O sexo e o génio do homem são demasiado impotentes para violar a ausência de ser que é o nada.

O estupro do nada só é possível pela potência divina. Só um Deus omnipotente terá esse poder – essa libido incomensurável – de arrancar o nada da sua recorrente ausência e introduzir a desordem do ser naquele vazio que a mente dos homens não consegue conceber, mas que o seu coração teme mais que todo o resto. O único estupro do nada pensável é a criação divina ex nihilo. Confessar que só Deus tem o poder e a libido para violar o nada não será uma forma de evidenciar a sua omnipotência? De certa forma. Mas mais do que sublinhar uma reverência perante o poder divino, nós podemos ver aí um dedo acusador. No conceito de estupro, mesmo que seja o do nada, nunca deixa de ecoar a ideia de um crime, da violação de uma ordem jurídica prévia, diria de uma ordem jurídica pré-cósmica e pré-ôntica. Dito de outra maneira, a criação do mundo não terá sido um acto de bondade mas um crime. E estamos já plenamente mergulhados no velho perfume da heresia. 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Um sono colonial

Claude Joseph Vernet - Harbor Scene

Vibram as folhas das palmeiras como se vivêssemos num mundo colonial, mas faltam as águas do oceano e o calor que animava as gentes quando, nesses antigos ultramares, desciam as extensas alamedas a caminho do mar. Aí a vida parecia ter uma cor que só os grandes leitores de romances imaginariam. Tudo é mais baço nesta hora e neste lugar. As avenidas são sintomas de uma vida magoada, restos de feridas cobertas de pústulas. Um aroma amargo desprende-se das casas pelas janelas quebradas, por onde se avistam as flores; o tempo as secou. Quando me sento e olho, de olhos cerrados, as ruas, vejo as bandeiras arvoradas nos barcos que passam suspensos pela indiferença dos mastros. Nas velas, pressinto o azul fremente das águas batidas pelo sol e, enquanto os vultos vêm e vão presos à sua dor, adormeço no império marítimo da minha solidão. (averomundo, 2008/05/25, Revisto)

domingo, 21 de setembro de 2014

A não ser que algo aconteça…

Camille Pissarro - O bosque de Marly (1891)

O mundo natural luxuriante onde o homem evoluiu está a ser transformado num ambiente largamente artificial (prosthetic). De forma crucial, num espaço de tempo humanamente relevante, esta perda da biodiversidade é irreversível. É verdade que a vida na terra recuperou a sua riqueza após a última grande extinção; mas somente após terem passado dez milhões de anos. A não ser que algo aconteça para quebrar a orientação actual, todas as futuras gerações de seres humanos viverão num mundo biologicamente mais empobrecido do que foi durante uma eternidade (for aeons). [John Gray (2004). Heresies Against Progress and Other Illusions. London: Granta Books, pp. 33]

O que dá que pensar nesta citação de John Gray não é a constatação da perda da biodiversidade. Tão pouco a ideia de um ambiente cada vez mais artificial. Aliás, a ideia de Gray remete para um ambiente protésico, isto é, pleno de próteses. O que dá que pensar é a expressão “A não ser que algo aconteça…”(Unless something occurs…). O que poderá acontecer para levar os homens a alterar a forma como colonizam o planeta? Há aqui o reconhecimento dos limites do entendimento humano, a confissão de que é necessário que algo de exterior ao homem surja, para que este altere a orientação que imprime à sua própria vida, como aliás se viu pelo magros ou nulos resultados da conferência de Copenhaga. Mas este “a não ser que algo aconteça…” inscreve o céptico filósofo inglês numa tradição pouco considerada filosoficamente, a do profetismo do Antigo Testamento. No “a não ser que algo aconteça…” pensa-se já a catástrofe a vir, o castigo de um Deus irado com os seus filhos. Quando a pura imanência se mostra impotente para travar os desvarios humanos, o que lhes resta? O recurso à transcendência, ao exógeno, ao totalmente outro. (averomundo, 2010/01/02)

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Os Antónios


Se fosse militante socialista, escolheria para chefe o Costa. Fá-lo-ia por dois motivos. Em primeiro lugar, António Costa tem mais experiência política. Foi ministro e é um Presidente de Câmara (a da capital) com sucesso reconhecido. Em segundo lugar, tem muito maior capacidade de penetrar no eleitorado e conduzir os socialistas à vitória. Seguro tem uma parte do partido com ele. Pode ser que ganhe a Costa dentro do partido, mas isso será um hara-kiri para os socialistas. Já se percebeu que ninguém, fora do grupo de apoiantes de Seguro, lhe dá qualquer credibilidade.

O problema que se me coloca, a mim que não sou militante de nada, não é tanto se ganha o Seguro ou o Costa. O problema é outro. O que fará, cada um deles, com a vitória que obtiver. E aqui as coisas turvam-se. Ambos são acusados de não terem sequer políticas para apresentar ao eleitorado. Esta percepção, todavia, é falsa. Tanto Costa como Seguro têm, nas suas cabeças, muito claras as políticas que farão. O que acontece é que elas não são diferentes entre si e não podem ser ditas ao eleitorado. Os socialistas precisam de votos de esquerda para ganhar, mas as políticas que têm são iguais às de Sócrates e às de Passos Coelho (que se encontra há longos meses em campanha eleitoral, não sei se notaram). Não dizem porque dizer o que vão fazer implica a perda de votos.

A disputa entre os Antónios tem tido a virtude – uma péssima virtude, diga-se – de ocultar o grande problema com que se debate o regime político português, o seu fechamento. Na verdade, nem Passos Coelho, nem Seguro, nem Costa, nem seja quem for, manda ou mandará o que quer que seja. Cumprem ordens. Não há eleições para primeiro-ministro. As legislativas, em Portugal, servem para escolher o feitor ou o capataz que aplicará aquilo que lhe for imposto pelos mercados através da União Europeia. A escolha do putativo primeiro-ministro não representa uma opção política, mas um acto de clubite partidária e de apreciação estética. Quem não pertence a nenhuma das seitas, percebe que o arco da governação é todo igual, porque assim tem de ser.

Como os Antónios – esteticamente diferentes – são politicamente iguais entre si e não muito diferentes (uma certa sensibilidadezinha social, nada de muito nítido) dos Pedros e Paulos do outro lado, como os portugueses não conferem grande credibilidade ao que está à esquerda do PS, o que esta luta entre Antónios está a preparar é o espaço político para que um demagogo, de discurso justicialista, desça à terra, envolto em nevoeiro, e faça a sua entrada triunfal na cena política portuguesa. Aguardemos.

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O referendo na Escócia

Howard Hodgkin - Scotland (1994-95)

Está a decorrer o referendo na Escócia. Determinará se esta se torna um país independente ou continuará integrada no Reino Unido. Os resultados virão mais logo, mas há duas coisas que este referendo, independentemente do resultado, veio tornar claras. Em primeiro lugar, apesar do ataque contínuo de que tem sido alvo, o Estado-Nação ainda é capaz de acender paixões e de atear corações. As elites políticas e económicas podem achá-lo um estorvo para os seus desígnios, mas parece que a notícia da sua morte é um bocado exagerada. Quem não o tem parece desejá-lo e muitos que, tendo-o e vêem a sua destruição, começam a procurar soluções políticas que o defendam. Em segundo lugar, é cada vez mais claro que a ilusão de um mapa-mundo político estável é isso mesmo, uma ilusão. A cada vez menos lenta dissolução da cosmovisão proveniente do fim da segunda guerra mundial está a trazer para a agenda geopolítica global o problema da redefinição de fronteiras, nações e estados. Parece que a história que tinha acabado continua bem viva e de boa saúde. Veremos que sinais os escoceses enviam ao mundo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

A teia sombria

Claude Monte - Madame Monet on a Garden Bench (1873)

Já não pega no livro como noutros tempos. Senta-se no enorme terraço e alisa as escamas do gato que, mal a vê sentada e de olhos semicerrados, lhe salta para colo. Às vezes boceja. Abre a boca, mas a mão logo a tapa, como se o gesto fosse o resultado de um longo condicionamento herdado daqueles que vieram antes dela. Da sua estirpe, ouvia-a, um dia, sussurrar para si mesma. Se o vento desce da serra um pouco mais frio, põe um xaile pelas costas e esfrega os braços com um vigor inesperado. Não lê, apenas olha em frente, procura na paisagem um sinal, o breve sintoma de uma doença, uma sombra anunciadora, o símbolo do porvir, a lenta decomposição da vida. Olha. Na sonolência que o dia traz, ela senta-se e olha em frente, os olhos trémulos pelo excesso de luz. Depois levanta-se, dá um pequeno passeio e torna a perscrutar o horizonte. Encolhe os ombros desalentada e recolhe-se na teia sombria, a casa que a viu nascer. (averomundo, 2008/05/27, revisto)

terça-feira, 16 de setembro de 2014

A queda

William Strang - The Temptation (1889)

A nossa é uma época de imagens, e nos últimos vinte anos duas imagens deram forma à nossa compreensão dos tempos em que vivemos. A primeira foi a da queda do muro de Berlim e a segunda a do colapso das torres do World Trade Center. Estas estruturas não eram meros artefactos; era também símbolos profundamente gravados no espírito (psyche) público. O primeiro era o símbolo do totalitarismo e da Guerra Fria, a confrontação entre o mundo livre e o mundo escravizado; as segundas, o símbolo de um mundo liberal unificado pelas forças da globalização. A queda do muro de Berlim originou a crença num futuro liberal de paz e prosperidade, que fazia reviver a fé no progresso humano, que os catastróficos eventos da primeira parte do século XX quase tinha extinguido. O colapso das Twin Towers, por contraste, acendeu o medo de um novo fanatismo furioso que ameaça as nossas vidas e civilização de uma forma especialmente insidiosa. [Michael Allen Gillepsie (2008). The Theological Origins of Modernity. Chicago and London: The University of Chicago Press - Kindle Edition, Loc. 19-24]

Não é o conteúdo substantivo da tese de Gillepsie que me interessa aqui, mas a sua referência às imagens. Estou de acordo que as duas imagens marcantes e que, de certa forma, fecham o século XX, e abrem o século XXI, são as referidas pelo autor. Aquilo que dá que pensar, no entanto, não são as crenças e as formas de existência a que essas imagens se ligam, mas as próprias imagens. Quando falamos num mundo de imagens e no facto do nosso mundo ser um mundo de imagens fazemo-lo, ainda que inconscientemente, para fugir à própria imagem. Assim, ela é signo ou símbolo de qualquer outra coisa dada na nossa existência social e histórica (o fim do comunismo ou do optimismo liberal). Isso tranquiliza-nos. Mas sob essa capa escondem-se outras camadas de sentido.

Estas imagens, que em aparência são ligadas a realidades diferentes, referem-se a uma mesma coisa: a queda. O século XXI começou, assim, sob o símbolo da queda. A queda é um velho símbolo presente na tradição judaico-cristã, um símbolo inaugural. A queda de Adão e Eva, a expulsão do paraíso, a ruína física e a degradação ontológica. Cabe perguntar, então, o que significa uma época que tem, ou que escolhe, como seu símbolo a queda? Por analogia, sabemos que é uma época de expulsão dos nossos paraísos, de ruína material e de degradação da nossa própria condição ontológica.

Na queda do muro de Berlim vimos, ansiosamente, o símbolo da liberdade. Não menos ansiosamente, pensámos na queda das Twin Towers um acto de maldade e perversidade extremas. Mas tudo isso são conversões morais que evitam olhar de frente o acontecer, a pura queda e a sua conexão com a espessa experiência da humanidade consubstanciada na simbologia religiosa da queda. Em Berlim e em Nova Iorque é um mundo que rui, por sinal o mesmo, apesar das aparências em contrário, o mundo da modernidade e do Iluminismo. Tudo isso, porém, está longe de significar uma libertação e uma emancipação. Se nos deixarmos instruir pelo velho símbolo da queda, talvez comecemos a entrever o significado desses acontecimentos. (averomundo,  2010/01/17)

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Da tolerância e do intolerável

Ivonne Sánchez Barea - Islam (1999)

Motivada por uma decisão do governo norueguês – impede o financiamento da construção de mesquitas na Noruega por parte de países onde não há liberdade religiosa – acompanhei de longe, no facebook, uma discussão feita a partir desta decisão. A discussão girava em torno da tolerância ou não para com os muçulmanos, bem como se os cristãos devem ou não agir tal como agem certos grupos de islamistas. Vale a pena pensar duas coisas. Em primeiro lugar, a questão da tolerância e dos seus limites. A segunda é o alcance do preceito cristão que, em face de uma agressão, ordena dar a outra face.

No século XVII, devido aos conflitos religiosos, desenvolve-se o pensamento acerca da tolerância entre pessoas de credos diferentes. John Locke é um dos principias pensadores da tolerância. Segundo Locke, a tolerância possui um núcleo central que a torna eficiente e, por outro lado, possui limites. O núcleo central da tolerância é a separação entre o Estado e a Religião. O Estado serve para proteger os bens civis e só ele pode usar a força quando os bens civis de alguém são postos em causa. Não compete ao Estado tratar da salvação das almas – isso é um problema da religião – mas assegurar que cada um possa ter a vida religiosa que entender (isto é, defender a liberdade religiosa), desde que isso não ponha em causa os bens civis dos outros. Contudo, Locke exclui da tolerância religiosa os ateus (pois o seu juramento, devido a não serem crentes, não tem valor) e os católicos (pois obedecem a um príncipe estrangeiro, o Papa), bem como todos aqueles que querem, pela força, impor a sua religião aos outros. Em resumo, a tolerância é fundamental, assenta na separação entre o Estado e a Religião, mas tem limites. Há coisas que são intoleráveis. Desta perspectiva de Locke, retenha-se não a intolerância para com ateus e católicos, mas para com aqueles que pretendem usar a violência para impor ou defender a sua religião.

Que fazer com o preceito cristão que ordena, em caso de agressão, dar a outra face? Perante a perseguição dos cristãos no Médio-Oriente, não deveriam os próprios cristãos ocidentais dar a outra face, por exemplo? Não deveriam aceitar todas as exigências que os muçulmanos fazem nos países ocidentais, incluindo aquelas que vão contra a lei civil? Não seria esse acto um verdadeiro dar a outra face? O problema, porém, encontra resposta nos próprios textos evangélicos. O dar a outra face é uma acção individual. Nenhuma comunidade se pode construir na base deste dar a outra face, como salientou, salvo erro, Hannah Arendt. A solução está no dai a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus. A própria separação entre o Estado e a Religião está aqui enunciada. O cristão, individualmente, pode ou deve dar a outra face, mas o poder político dos países ocidentais deve proteger os bens civis, isto é, a vida, a liberdade e a propriedade dos indivíduos.

O que se está a passar neste momento é que nos países europeus existem grupos que não se reconhecem nos valores europeus, nem aceitam a separação entre política e religião. Parecem dispostos, mal têm a força para isso, a impor o seu modo de vida, aniquilando a liberdade individual. O que estamos a assistir é a um teste à elasticidade da democracia na Europa. Será que a vida democrática tem em si poder suficiente para lidar com aqueles que não aceitam os valores ocidentais, nomeadamente a tolerância fundada na separação entre política e religião? Neste momento, as coisas ainda são tratadas no âmbito dos casos de polícia. Mas se o conflito se agravar, se as posições entre os defensores da tolerância e os defensores de posições intolerantes conduzirem ao um conflito aceso, se o medo começar a crescer, é possível que a Europa troque a vida democrática por governos mais fortes, mais duros, mais exclusivos, mais intolerantes. Mais intolerantes em nome da própria tolerância. A situação é bastante perigosa. O ideal seria evitar este confronto de valores, mas o mundo é o que é.

sábado, 13 de setembro de 2014

A reprodução interdita

René Magritte - La Reproduction interdite (1937)

Só, num quarto de hotel, sentado diante de um espelho, oiço um concerto de Bach e escrevo: Olho-me no espelho e vejo um vulto que me olha com desdém. Noto as parecenças comigo, um ar de família, mas metade da minha idade. Ri-se com a alarvidade da juventude. E, enquanto o riso ecoa, ele penetra mais e mais no interior do espelho, afastando-se de mim, fundindo-se no vidro, ganhando um corpo roubado ao mundo das imagens. Se lhe estendo a mão, faz um esgar de desprezo e recua mais rapidamente, recusando-me a sua. Enquanto ri, leva a minha imagem e eu vejo-o cada vez mais jovem, mais insensato. Ao último acorde, o espelho quebra-se em mil fragmentos. Em vão procurei até hoje um que me devolvesse o reflexo do meu corpo.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A razão e o desejo


Uma estimativa da população portuguesa para 2060 (faltam cerca de 45 anos) prevê que sejamos, nessa altura, seis milhões. Isto é, os dados apontam para que nos próximos 45 anos Portugal perca 40% da sua população, para além de um acentuado aumento da população idosa. Uma das formas de mascarar o verdadeiro cerne do problema reside na recorrente lamentação de que os políticos não criam condições para as pessoas terem filhos. Apesar de haver alguma verdade na afirmação, e de não existirem políticas eficazes de apoio às famílias, o problema encontra-se noutro lado.

Pode-se parafrasear Kant e dizer que a natureza teria andado muito mal se tivesse confiado à razão humana a propagação da espécie. Até há algumas décadas, a propagação da vida humana estava fundada não na escolha e decisão racional dos indivíduos, mas no desejo cego presente no impulso sexual. Desejo esse que sempre se mostrou eficaz para assegurar a continuidade da espécie humana. A descoberta da pílula permitiu a construção de dispositivos eficazes de planeamento  familiar. O que significa isto? Significa que a propagação da espécie foi retirada do âmbito do desejo sexual e colocada sob uma decisão aparentemente racional dos indivíduos. Paulatinamente, as pessoas deixam de ter filhos porque optam por não tê-los. A geração de novos seres passou a depender da razão calculadora dos progenitores, que podem separar o prazer sexual da reprodução.

A introdução da razão no processo de procriação acabou por ter efeitos – se medidos pelo interesse racional dos indivíduos – contraditórios. As pessoas alegam não ter filhos por falta de condições para tal. Agem segundo o seu interesse particular. Mas há consequências destas decisões. A diminuição da população, devido ao planeamento racional dos nascimentos, acaba por ir contra os interesses futuros dos indivíduos, pois deixa de haver quem lhes possa assegurar uma velhice com um módico de dignidade. A introdução do planeamento familiar veio resolver importantes problemas sociais. A verdade, porém, é que criou outros, porventura bem mais graves.

O assunto é ainda mais crítico pois a razão que criou o problema parece impotente para o resolver. Os portugueses vão desaparecendo não porque um epidemia os leva, uma guerra de extermínio se abate sobre eles ou uma catástrofe natural os dizima. Vão desaparecer porque – como outros povos ocidentais – confiaram à razão aquilo – a propagação da vida – que sempre foi da jurisdição do cego desejo sexual. Tudo tem um preço.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Onzes de Setembro

Giorgio de Chirico - The Evil Genius of a King (1914-15)

O que seria a História sem o mal? Não me refiro a essas pequenas maldades que vamos perpetrando ao longo da vida, essas faltas que transformam, por momentos e segundo o nosso interesse, o outro numa mera coisa. Refiro-me ao mal massivo transportado pelo interesse político. Um mal que cai sobre as pessoas sem lhes dar possibilidade de defesa. O dia 11 de Setembro foi particularmente fecundo na produção desse tipo de mal. Um mal que planta um marco na história dos homens.

Em 1973, um golpe de estado levado a acabo pelas forças armadas chilenas, com o apoio dos EUA e dirigido pelo general Pinochet, derrubou o governo legítimo de Salvador Allende. A repressão que se seguiu foi inominável, marcada por uma crueldade feroz e um ódio muito pouco digno da vida civilizada. A importância deste golpe de estado, porém, não reside tanto na ferocidade com que se abateu sobe as suas vítimas. Golpes de estado cruéis não faltaram na América Latina. A importância reside no facto de ele ter fechado um caminho possível para o desenvolvimento da vida política. O Chile foi uma tentativa de construção de uma sociedade não capitalista através de um processo de reformas, mantendo o respeito pela constituição e pelas instituições democráticas de natureza plural. Os EUA, contudo, vieram dizer que nunca permitiriam tal coisa. O golpe de estado de 1973, no Chile, não acabou um mundo nem começou um outro. Foi muito importante porque, com ele, acabou uma ilusão. O mal nunca permitiria que um outro caminho político fosse possível sem que ele próprio, com o espectáculo da morte e do terror, fosse convocado. Dito de outra maneira, as sociedades capitalistas nunca permitiriam uma transição para além delas a não ser que fossem obrigadas pela violência e derrotadas no campo de batalha.

Em 2002, os atentados terroristas contra as torres gémeas são, obviamente, uma manifestação do mal, mas tendo agora uma motivação diferente. Não se trata de defender as sociedades de mercado mas de atacá-las no seu coração, nos próprios EUA. Não em nome de uma opção referente ao mercado, mas de uma visão religiosa do mundo e como desforra de um sentimento de humilhação civilizacional sentido pelo mundo islâmico. Se no caso do Chile o mal caiu, em primeiro lugar, sobre inocentes comprometidos politicamente (inocentes, pois não é crime participar na vida democrática da nação), no caso de 2011 os alvos foram pessoas inocentes e completamente descomprometidas. Estavam ali e a sua culpa era apenas a de estarem no local errado à hora errada.

O 11 de Setembro de 2002 marca também o fim de uma ilusão. A ilusão de que a História tinha acabado, que, paulatinamente, o mundo se iria converter ao liberalismo iluminista. Foi, porém mais do que isso. Foi o começo de uma nova era marcada pela insegurança, pelo exercício continuado do terror. Se a revolução iraniana de 1979 tinha sido o prenúncio sintomático de que algo estava a mudar, o 11 de Setembro de 2002 selou essa mudança, trazendo uma nova forma de conflito. Se até à queda do Muro de Berlim o conflito era jogado entre dois ramos do Iluminismo (o liberalismo e o socialismo), a partir de 2002 ficou claro que o Iluminismo (agora reduzido à sua vertente liberal) iria ser desafiado por uma visão tradicionalista e religiosa do mundo.

Se o golpe chileno se inscreve no conflito entre duas concepções do Iluminismo e duas formas de conceber a importância dos mercados na sociedade, o mundo inaugurado com o derrube das torres gémeas tem em si outra particularidade. Enquanto os EUA e os ocidentais combatem para abrir mercados, para entregar os bens naturais e a vida social à dinâmica da livre-empresa e dos mercados não regulados, os seus inimigos combatem em nome de Deus, motivados religiosamente, movidos pelo ressentimento civilizacional e pelo ódio às formas de vida social dos ocidentais.

O terrível dia 11 de Setembro – seja o do golpe chileno, seja o do ataque terrorista nos EUA – parece ter-se tornado um dia simbólico de manifestação do mal. E que tipo de mal se manifestou nos dois casos? Esse mal que se concretizou no assassinato de muitas pessoas reside fundamentalmente no desejo – motivado por diferentes interesses – de impor aos outros uma forma de vida que eles não querem. É irrelevante que os perseguidos sejam, na oratória dos perseguidores, esquerdistas ou infiéis, ou outra coisa qualquer. O relevante é esse desejo, nunca apaziguado no coração do homem, de impor aos outros o seu modo de vida ou de os castigar pelo simples facto de o não seguirem. Enquanto esse desejo continuar vivo no coração dos homens, o mal continuará a sua acção e a História não terá fim.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Auto-absorvidos

Francis Bacon - Self Portrait with Injured Eye (1972)

As ideias modernas acerca da psicologia da vida privada são confusas. Muita gente, hoje em dia, pretende que a sua vida privada nasce por geração espontânea, independentemente das condições sociais e da influência ambiental. Desse modo, a psique é tratada como se tivesse uma vida interior por si mesma. A vida psíquica é vista como tão preciosa e delicada que definhará se exposta às duras realidades do mundo social. Só florescerá na extensão da sua protecção e isolamento. O self (o “eu” ou o “si”) de cada um tornou-se a sua principal preocupação. Conhecer-se a si mesmo é agora um fim, em vez de um meio através do qual alguém conhece o mundo. E é precisamente porque estamos tão auto-absorvidos que é extremamente difícil chegarmos a um princípio privado, que explique claramente a nós mesmos ou aos outros o que são as nossas personalidades. A razão é que, quanto mais privada for a psique, menos é estimulada, e mais difícil é para nós sentir ou expressar sentimentos. [Richard Sennett (1974). The Fall of Public Man. London: Penguin, pp. 4, trd. nossa]

A brilhante análise de Sennett da erosão da vida pública nas sociedades ocidentais foi publicada em 1974. Mas o tempo não lhe retirou nem brilho nem pertinência. Em 1974, certamente, a análise não faria muito sentido se lida a partir de Portugal ou de Espanha. Países atrasados no concerto das nações do primeiro mundo, ainda sem democracia, ou em fase de parto, a vivência das sociedades modernas era algo afastado e nebuloso.

Mas a partir da consolidação da democracia e da entrada na normalidade, Portugal começou, apesar de tudo, a parecer-se com os países mais desenvolvidos. Fundamentalmente foi herdando todos os seus problemas. Aquilo que é descrito neste excerto, essa cultura do autismo, uma cultura narcísica de auto-absorção, vi-a nascer e desenvolver-se. Vi-a, fundamentalmente, a partir da escola. Vi como as famílias, levadas pelo espírito do tempo e a propaganda funesta de uma certa casta de psicólogos e psiquiatras, começaram a proteger os seus filhos de forma absurda, evitando ao máximo o choque com a dura realidade social.

Mas o que de mais tenebroso pude assistir foi à intervenção do próprio Estado, através do sistema educativo, na propagação do narcisismo, do autismo, da absorção das crianças e dos jovens em si mesmos. O que é notável neste processo de destruição da vida pública não é o zelo das famílias e o apostolado de certos psicólogos e psiquiatras. O notável é o próprio Estado, que deveria estar preocupado com esta tendência de auto-absorção dos cidadãos, ter sido a principal alavanca do ensimesmamento a que se assiste. A destruição da vida pública nasce pela iniciativa dos responsáveis políticos, como se uma pulsão de morte os habitasse. Não vou perder tempo com exemplos, pois são tantos que o leitor sempre encontrará vários para ilustrar estas afirmações.

Não está já em causa que os responsáveis políticos defendam o bem comum. O mínimo que se lhes exigiria seria que fomentassem o comum, a vida pública, a necessidade dos indivíduos compreenderam a dura realidade do mundo social, com as suas regras e rituais. Ora quando uma civilização se entorpece no fechamento de cada membro em si mesmo, que leitura se poderá fazer? Quando é a própria elite política que promove esta oclusão narcísica dos indivíduos, o mínimo que se poderá dizer é que chegou o fim de um mundo. (averomundo, 2010/02/27, com o título O fechamento em si)

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Meditações Taoistas (22)

Jorge Carreira Maia - Chemins qui ne mènent nulle part. Serra de Aire (2007)

Que as pessoas temam a gravidade da morte e não partam.
Que haja barcos e carros mas não com quê carregá-los.
Que haja armas e couraças mas não razões para as exibir.
Lao Tse, Tao Te King, LXXX

Este tempo de agitada precipitação que nos coube. Partir, agir, lutar, entregar-se ao delírio da acção, mobilizar-se. Que o movimento não pare. Os homens parecem ser o fruto tardio de um anjo inquieto, de um deus tocado pela imperfeição. Herdaram essa falha e, na fatalidade que lhes coube, o seu coração nunca coincide consigo mesmo, incendiando a imaginação, orquestrando a razão, apurando os sentidos para outras e outras incursões. Vorazes colonizadores, tomaram conta da Terra e anseiam lançar colónias no espaço sideral, como se o seu lugar nunca fosse aquele onde nasceram, mas o que os espera, quando a febre toca o coração e os lança no caminho.

Se ao menos temessem a morte, se a viagem lhes surgisse na fantasia como não tendo retorno, se a guerra não fosse por si só razão para a fazer. Se tudo assim caminhasse, se a dispersão não soasse aos ouvidos como o mais belo dos cantos, seria ainda possível retornar ao velho jardim e perder-se entre árvores e rosas. Seria ainda possível esperar o crepúsculo sentado e sorver cada instante que traz, escondido no seu coração, o véu da noite. Que fazer, porém, se até a morte perdeu a sua gravidade e tudo se tornou leve e fluido? Frívolos, os príncipes atearam o desejo do longínquo no peito dos homens e estes partiram em campanha, como se vida não fosse mais do que perder-se no desconhecido e atear a guerra nos lugares onde a paz se demora.

Sábio é o homem que silencia em si o desejo de partir e descobre, no espaço que lhe coube, todos os segredos que o universo contém. Ali estão todos os rios do mundo, e os mares e as florestas. Naquela pequena aldeia, ele encontra cada metrópole que o seu olhar não viu, mas que o seu coração sabe perscrutar quando, trazida por um vento imemorial, chega a madrugada. Um dia, cuja memória há muito se dissolveu, um príncipe ainda jovem sentou-se no jardim do palácio. O seu coração tumultuava e um desejo insensato parecia impeli-lo para conhecer outros homens, outras línguas, outras terras, a beleza de outras mulheres. Se preciso fosse, segredava-lhe o sangue, haveria de levar a guerra onde ninguém ainda tivesse escutado o seu nome. 

O pai, vendo-o assim preso de tanta perturbação, olhou-o nos olhos e quedou-se ali emudecido. Olhava-o, enquanto o dia se desfazia, lentamente, da sua carga. Durante muitas horas o jovem príncipe não percebeu o que o pai estava ali a fazer. De súbito, porém, dentro da sua cabeça ecoou uma voz, uma voz que não era a do seu pai mas a voz dos pensamentos que habitavam aquele que lhe dera a vida. E ele ouviu: quando descobrires na tua mulher todas as mulheres, quando escutares no ruído do rio a voz de todos os oceanos, quando ouvires uma palavra na nossa língua e compreenderes todas as línguas, então serás rei e o trono que me pertence será teu.

domingo, 7 de setembro de 2014

Administrar uma casa

Jorge Carreira Maia - Mitologias (uma casa portuguesa) (2014)


A pessoa que tiver intenção de administrar uma casa [hoje, pode entender-se por casa qualquer organização] de forma correcta tem de estar familiarizada com os lugares de que se vai ocupar, ser dotada, por natureza, de boas qualidades e de possuir, por vontade própria, sentido de trabalho e de justiça. Ora, se algum destes elementos lhe faltar, irá cometer erros frequentes na empresa a que meteu mãos. [Aristóteles, Os Económicos, 1345b7 - 11]

Uma pequena lição de Aristóteles sobre a figura, para utilizar a linguagem actual, do gestor. Nesta lição, pensa-se, porém, tudo o que é essencial. Em primeiro lugar, a vocação, isto é, o ser dotado por natureza de qualidades para o cargo que se desempenha. Vocação não significa aqui o mero desejo de ordenar e dominar os outros, mas a posse inata, nascida com a pessoa (por natureza), de qualidades que visam o bem da organização e a realização das finalidades a que esta se propõe. Não basta, todavia, a vocação, as boas qualidades naturais. São precisas mais duas coisas. Por um lado, o conhecimento (estar familiarizada com os lugares de que se vai ocupar). Como é peregrina a ideia de que um gestor gere bem qualquer coisa, desde uma empresa de sapatos até um hospital ou uma escola. Para administrar uma organização é preciso conhecê-la e aos fins a que ela se propõe. Mas qualidades naturais e conhecimento ainda não são suficientes, é preciso uma vontade boa. Como se manifesta esta vontade boa? Pela posse do sentido de trabalho e do sentido de justiça. Veja-se que não basta trabalhar muito e bem. É preciso ser justo no exercício do poder gestionário. A justiça implica o reconhecimento do contributo de todos os membros e a distribuição de encargos e recompensas de acordo com esse contributo. Se algum destes elementos faltar, então os erros na condução da organização serão frequentes. Ora, serão os nossos gestores, directores, administradores, públicos e privados, detentores de todas estas qualidades? Que importância darão eles, na prática e não na sua mera opinião, por exemplo, à justiça? A sociedade portuguesa está numa situação muito difícil. Parte substancial dessa dificuldade não advirá do facto dos nossos dirigentes não satisfazerem esta tabela de valores aristotélica? Não precisará o país de começar por reformar a sua classe dirigente a todos os níveis? (averomundo, 2010/01/27)

sábado, 6 de setembro de 2014

Sem rasto

Jorge Carreira Maia - Auto-retrato XI (2013)

Chove!, exclamou ele três vezes e sentou-se na cadeira giratória. A janela aberta deixava entrar a noite pelo escritório, uma noite húmida, de carros lentos a tracejar de luz a negrura do mundo. Trevas vindas sabe-se lá de onde. Pegou no balão de conhaque e ficou a olhar o líquido a tremeluzir, oscilante, movido pela cadência lenta da mão. Ali havia um mistério, um sentido por explicar. Levou o copo à boca e sorveu devagar. Sentiu um leve ardor, mas logo o sabor se metamorfoseou. Era agora uma madeira leve e suave que flutuava na convulsão do palato. Reteve o líquido na boca durante muito tempo, até que este perdeu o sabor e se confundiu com a própria boca. Por fim, pousou o copo e olhou a noite que não desistia de entrar pela janela. Um formigueiro assolou-lhe o corpo, tomou-o por dentro, como se entrasse no centro da alma. De súbito, sentiu que a pele ia tomando novas tonalidades, cada vez mais escuras. Quando, numa torre longínqua, bateram as três horas, já não se distinguia da noite. Se um carro tardio passava e um raio de luz entrava pelo escritório, nada via no lugar onde estava o seu corpo. Ao chegar a aurora não havia um rasto da sua presença. Apenas um balão de conhaque meio cheio de um líquido viscoso e negro e a cadeira vazia a girar lentamente na luz da madrugada. (averomundo, 2008/05/28, revisto)

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O vazio religioso


As posições políticas de David Cameron e de Angela Merkel sobre a autêntica barbárie que ocorre no Iraque mostram a ameaça que nos confronta. Contudo, o devaneio islamista do Califado, pelo menos neste momento, é apenas um indício do problema. A grande ameaça para a Europa vem menos destes selváticos delírios do que daquilo que se passa entre nós.

O século XXI será religioso ou não será.  Apesar de André Malraux sempre ter negado a autoria desta frase, esta parece uma profecia concretizada. A questão religiosa, com a emergência do Islão como protagonista político global, tornou-se um elemento decisivo nas sociedades actuais. A religião é, desde que o homem é homem, omnipresente nas sociedades humanas. Mais, a religião é o foco central da estruturação das identidades colectivas e individuais, mesmo que isso seja incompreensível para muitos de nós. A questão central, tendo isto em conta, é que não há vazios religiosos por muito tempo. Se uma religião se retira, outra ou outras surgirão para ocupar o lugar vazio.

Este é o principal perigo que vive a Europa. Para além de possuir grandes comunidades imigrantes de fortes convicções religiosas – muçulmanas, principalmente – e de grande crescimento demográfico, os europeus subjectivaram a prática religiosa e, por isso, relativizaram-na. Isso permitiu estabelecer uma vida de tolerância interconfessional, mas, com o passar do tempo, implicou um grande vazio espiritual. Esse vazio, num primeiro tempo, foi ocultado pelas religiões políticas. A revivescência do paganismo com o fascismo e o nazismo e a inversão do cristianismo no socialismo e no comunismo foram ainda formas de manifestação do espírito religioso. Mortas as ideologias, ficou o vazio.

É neste vazio do cristianismo e dos seus valores que o Islão vê uma janela de oportunidade para a sua expansão no Ocidente. O crescimento de sociedades muito desiguais e a aniquilação das classes médias estão a criar condições para a formação de uma enorme massa de párias. É aqui, e na ausência de convicções cristãs fundas, que o Islão vê o enorme campo de recrutamento e de conversão dos infiéis.

Não esqueçamos três coisas. Em primeiro lugar, Bento XVI avisou que a Igreja se tornaria minoritária e perseguida. Depois, desespero, pobreza e ressentimento formam o melhor dos campos para a emergência de conversões religiosas em massa. Por fim, a história não se mede por anos ou décadas, e nunca tem fim. Em resumo, o grande problema do Ocidente não é a economia ou a política. O grande problema é o vazio religioso.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Pena de morte

Jack Levine - El prisionero

Os Estados Unidos, apesar das suas virtudes, sofrem de múltiplas e diversificadas patologias. Por exemplo, a doença da liberdade do porte de armas. Contudo, a patologia que mais me impressiona é a do culto, em diversos estados federais, da pena de morte. Segundo noticia o Público, dois meios irmãos, presos há 30 anos e condenados à morte, foram agora ilibados a partir de análises do ADN. Pior, na altura dos factos que conduziram à sua condenação eram já reconhecidamente portadores de grave deficiência mental. Já foram inocentados, através de análises ao ADN, 317 condenados, 18 dos quais estavam no corredor da morte. Cerca de 70% são negros.

Há fortes argumentos contra a pena de morte. Por mais hediondo que seja um crime, a realização de um homicídio legal, como penalização do acto criminoso, não repõe nada do que foi retirado à vítima. Apenas sacia a sede de vingança. Sede justificada, mas que não deve ser tida como fundamento da decisão jurídica. Um segundo argumento pode ser o da necessidade do Estado dar o exemplo evitando fazer aquilo - matar alguém - que tenta impedir que se faça. A questão dos equívocos judiciais, porém, torna a pena de morte completamente inaceitável. Mais, os equívocos judiciais estão longe de ser uma excepção como se vê nos EUA. Nestes casos, o Estado não apenas tira uma vida. Tira a vida a um inocente, que foi injustamente condenado a partir de um julgamento, a mais das vezes, de deficiente qualidade. Abolir a pena de morte é, em última análise, uma precaução perante a falibilidade humana.

Se o argumento da precaução é, do ponto de vista moral, o mais frágil a favor da abolição da pena capital, não deixa de ser aquele que, aos olhos da maioria das pessoas, exerce um efeito mais poderoso. O coração humano, pouco propenso para a reflexão sobre princípios ético-morais, é facilmente arrebatado pelo sentimento. Perante o hediondo do crime, grita por vingança. Olho por olho e dente por dente, exige. Mas em sociedades com um módico de civilidade, esse mesmo coração sente a injustiça da condenação dos inocentes e acaba por abdicar da mais radical forma de pena. O que dá que pensar é a razão por que ainda se mantém esse tipo de pena num conjunto de Estados federais americanos. Mais, como é que, por exemplo, um acto de misericórdia - a comutação da pena de morte em prisão perpétua - pode conduzir ao fim da carreira política de um governador? Pura patologia social.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

A utopia conservadora

Rufino Tamayo - Llamada de la revolución (1935)

Ser conservador, portanto, é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o experimentado ao não experimentado, o facto ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao demasiado abundante, o conveniente ao perfeito, um presente sorridente a uma felicidade utópica. (Michael Oakeshott, On being conservative, in Rationalism in Politics and Other Essays) [citação aqui]

No essencial, estou de acordo com a visão conservadora de Oakeshott. Ela não é mais do que a sábia prudência e a justa medida dos gregos. O curioso, porém, é que a crítica da utopia que está presente no texto e no pensar do filósofo anglo-saxónico não deixa de ser ela mesma utópica. Quando diz "Ser conservador, portanto, é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o experimentado ao não experimentado..." refere apenas um ideal. O grande problema é que, mesmo na política, há momentos em que o não familiar e o desconhecido se apresentam perante os homens. Nessas horas, não há experiência que os valha. Terão, mesmo contra vontade, de trilhar o não-experimentado. Há em tudo o que é humano uma caducidade. Por isso, também as instituições se tornam obsoletas e dão lugar a outras, muitas vezes pelo sedição geral.

Faz sentido o pensamento conservador como desconstrução do desejo revolucionário, do querer revolucionar as instituições que ainda são sólidas e merecem conservação. Mas há um outro lado. As revoluções não nascem do desejo dos revolucionários. Elas são como um terramoto, uma espécie de acontecimento natural, onde o não familiar reclama o não-experimentado. A sua facticidade é ultrajante. Em primeiro lugar, ultraja os defensores da velha ordem (como foi possível 1789, ou como foi possível o 5 de Outubro, ou... ou...?). Mas ultraja, também, os supostos revolucionários. As revoluções, como muito bem viu Joseph de Maistre, conduzem mais os homens do que estes a elas. Nestes momentos, o ideal conservador é puramente utópico. É inútil, nos tempos de excepção, tentar parar o carro revolucionário (desejo conservador) ou conduzi-lo (desejo revolucionário).

Em certas alturas históricas que nunca escolhemos, só o não-conhecido possibilita encontrar um princípio de ordem para o caos natural que impera nas relações sociais. Será esse princípio de ordem totalmente desconhecido que acabará, com o tempo, por se tornar no familiar e no conhecido que vale a pena conservar. (averomundo, 2010/01/29)