Jorge Carreira Maia - Auto-retrato XI (2013)
Chove!, exclamou ele três vezes e sentou-se na cadeira giratória. A
janela aberta deixava entrar a noite pelo escritório, uma noite húmida, de
carros lentos a tracejar de luz a negrura do mundo. Trevas vindas sabe-se lá de
onde. Pegou no balão de conhaque e ficou a olhar o líquido a tremeluzir, oscilante,
movido pela cadência lenta da mão. Ali havia um mistério, um sentido por
explicar. Levou o copo à boca e sorveu devagar. Sentiu um leve ardor, mas logo
o sabor se metamorfoseou. Era agora uma madeira leve e suave que flutuava na
convulsão do palato. Reteve o líquido na boca durante muito tempo, até que este
perdeu o sabor e se confundiu com a própria boca. Por fim, pousou o copo e
olhou a noite que não desistia de entrar pela janela. Um formigueiro assolou-lhe
o corpo, tomou-o por dentro, como se entrasse no centro da alma. De súbito,
sentiu que a pele ia tomando novas tonalidades, cada vez mais escuras. Quando,
numa torre longínqua, bateram as três horas, já não se distinguia da noite. Se
um carro tardio passava e um raio de luz entrava pelo escritório, nada via no
lugar onde estava o seu corpo. Ao chegar a aurora não havia um rasto da sua
presença. Apenas um balão de conhaque meio cheio de um líquido viscoso e negro e a cadeira vazia a girar lentamente na luz da madrugada. (averomundo, 2008/05/28, revisto)
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