sábado, 6 de setembro de 2014

Sem rasto

Jorge Carreira Maia - Auto-retrato XI (2013)

Chove!, exclamou ele três vezes e sentou-se na cadeira giratória. A janela aberta deixava entrar a noite pelo escritório, uma noite húmida, de carros lentos a tracejar de luz a negrura do mundo. Trevas vindas sabe-se lá de onde. Pegou no balão de conhaque e ficou a olhar o líquido a tremeluzir, oscilante, movido pela cadência lenta da mão. Ali havia um mistério, um sentido por explicar. Levou o copo à boca e sorveu devagar. Sentiu um leve ardor, mas logo o sabor se metamorfoseou. Era agora uma madeira leve e suave que flutuava na convulsão do palato. Reteve o líquido na boca durante muito tempo, até que este perdeu o sabor e se confundiu com a própria boca. Por fim, pousou o copo e olhou a noite que não desistia de entrar pela janela. Um formigueiro assolou-lhe o corpo, tomou-o por dentro, como se entrasse no centro da alma. De súbito, sentiu que a pele ia tomando novas tonalidades, cada vez mais escuras. Quando, numa torre longínqua, bateram as três horas, já não se distinguia da noite. Se um carro tardio passava e um raio de luz entrava pelo escritório, nada via no lugar onde estava o seu corpo. Ao chegar a aurora não havia um rasto da sua presença. Apenas um balão de conhaque meio cheio de um líquido viscoso e negro e a cadeira vazia a girar lentamente na luz da madrugada. (averomundo, 2008/05/28, revisto)

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