Francis Bacon - Self Portrait with Injured Eye (1972)
As ideias modernas acerca da
psicologia da vida privada são confusas. Muita gente, hoje em dia, pretende que
a sua vida privada nasce por geração espontânea, independentemente das
condições sociais e da influência ambiental. Desse modo, a psique é tratada
como se tivesse uma vida interior por si mesma. A vida psíquica é vista como
tão preciosa e delicada que definhará se exposta às duras realidades do mundo
social. Só florescerá na extensão da sua protecção e isolamento. O self (o
“eu” ou o “si”) de cada um tornou-se a sua principal preocupação. Conhecer-se a
si mesmo é agora um fim, em vez de um meio através do qual alguém conhece o
mundo. E é precisamente porque estamos tão auto-absorvidos que é extremamente
difícil chegarmos a um princípio privado, que explique claramente a nós mesmos
ou aos outros o que são as nossas personalidades. A razão é que, quanto
mais privada for a psique, menos é estimulada, e mais difícil é para nós sentir
ou expressar sentimentos. [Richard Sennett (1974). The Fall of Public Man. London: Penguin, pp.
4, trd. nossa]
A brilhante análise de Sennett da erosão da vida pública nas
sociedades ocidentais foi publicada em 1974. Mas o tempo não lhe retirou nem
brilho nem pertinência. Em 1974, certamente, a análise não faria muito sentido
se lida a partir de Portugal ou de Espanha. Países atrasados no concerto das
nações do primeiro mundo, ainda sem democracia, ou em fase de parto, a vivência
das sociedades modernas era algo afastado e nebuloso.
Mas a partir da consolidação da democracia e da entrada na
normalidade, Portugal começou, apesar de tudo, a parecer-se com os países mais
desenvolvidos. Fundamentalmente foi herdando todos os seus problemas. Aquilo
que é descrito neste excerto, essa cultura do autismo, uma cultura narcísica de
auto-absorção, vi-a nascer e desenvolver-se. Vi-a, fundamentalmente, a partir
da escola. Vi como as famílias, levadas pelo espírito do tempo e a propaganda
funesta de uma certa casta de psicólogos e psiquiatras, começaram a proteger os
seus filhos de forma absurda, evitando ao máximo o choque com a dura realidade
social.
Mas o que de mais tenebroso pude assistir foi à intervenção do próprio Estado, através do sistema educativo, na propagação do narcisismo, do autismo, da absorção das crianças e dos jovens em si mesmos. O que é notável neste processo de destruição da vida pública não é o zelo das famílias e o apostolado de certos psicólogos e psiquiatras. O notável é o próprio Estado, que deveria estar preocupado com esta tendência de auto-absorção dos cidadãos, ter sido a principal alavanca do ensimesmamento a que se assiste. A destruição da vida pública nasce pela iniciativa dos responsáveis políticos, como se uma pulsão de morte os habitasse. Não vou perder tempo com exemplos, pois são tantos que o leitor sempre encontrará vários para ilustrar estas afirmações.
Não está já em causa que os responsáveis políticos defendam o bem
comum. O mínimo que se lhes exigiria seria que fomentassem o comum, a vida
pública, a necessidade dos indivíduos compreenderam a dura realidade do mundo
social, com as suas regras e rituais. Ora quando uma civilização se entorpece
no fechamento de cada membro em si mesmo, que leitura se poderá fazer? Quando é
a própria elite política que promove esta oclusão narcísica dos
indivíduos, o mínimo que se poderá dizer é que chegou o fim de um mundo. (averomundo, 2010/02/27, com o título O fechamento em si)
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