terça-feira, 23 de setembro de 2014

O estupro do nada

Chema Cobo - Eternity as a half of nothing (1997)

Devo a Claudio Magris – ao título de uma crónica sua no Corriere della Sera recolhida em Alfabetos – o espantoso título, O estupro do nada, que usurpei para titular o meu pobre post. Magris deriva, na sua crónica, para a perturbação introduzida pela irrupção de um novo ser, seja uma criança, uma obra de arte, seja o próprio mundo tirado ex nihilo pelo artifício de Deus. O que me fascinou, porém, no título não foi a sua relação com o produto do estupro, o novo ser que emerge perturbante e perturbador. O que é verdadeiramente fascinante é o acto de estuprar o nada, o exercício de uma violência, de uma violação onde o violado é um puro ausente – nada – ou uma pura e simples ausência.

Sob tudo isto – ou talvez em seu redor – sente-se o odor da heresia. Não tanto nas considerações que se podem fazer sobre a arte ou mesmo sobre a irrupção de um novo ser – por exemplo, um ser humano – na ordem existente no mundo. De facto, nesses casos é um excesso a expressão usada por Claudio Magris. Esse excesso deve-se ao facto de não ser o nada que é violado, mas antes uma certa ordem do ser. Essa ordem do ser é violada e aniquilada. A mulher que é estuprada (e todo o acto sexual entre um homem e uma mulher pode ser visto como um estupro, uma violação) e dá à luz aquele que vem depois dela e lhe anuncia a sua morte, aquele que a aniquila. Por outro lado, a nova obra de arte resulta da aniquilação de uma tradição artística por algo que a supera e vem tornar patentes os seus limites. A criação humana – seja a de um filho ou a de uma obra de arte – pode ser vista como um estupro, mas nunca como o estupro do nada. A perturbação não vem do excesso de libido mas do que emerge e põe em causa o que está. O sexo e o génio do homem são demasiado impotentes para violar a ausência de ser que é o nada.

O estupro do nada só é possível pela potência divina. Só um Deus omnipotente terá esse poder – essa libido incomensurável – de arrancar o nada da sua recorrente ausência e introduzir a desordem do ser naquele vazio que a mente dos homens não consegue conceber, mas que o seu coração teme mais que todo o resto. O único estupro do nada pensável é a criação divina ex nihilo. Confessar que só Deus tem o poder e a libido para violar o nada não será uma forma de evidenciar a sua omnipotência? De certa forma. Mas mais do que sublinhar uma reverência perante o poder divino, nós podemos ver aí um dedo acusador. No conceito de estupro, mesmo que seja o do nada, nunca deixa de ecoar a ideia de um crime, da violação de uma ordem jurídica prévia, diria de uma ordem jurídica pré-cósmica e pré-ôntica. Dito de outra maneira, a criação do mundo não terá sido um acto de bondade mas um crime. E estamos já plenamente mergulhados no velho perfume da heresia. 

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