Chema Cobo - Eternity as a half of nothing (1997)
Devo a Claudio Magris – ao título de uma crónica sua no Corriere della Sera recolhida em Alfabetos – o espantoso título, O estupro do nada, que usurpei para titular
o meu pobre post. Magris deriva, na
sua crónica, para a perturbação introduzida pela irrupção de um novo ser, seja
uma criança, uma obra de arte, seja o próprio mundo tirado ex nihilo pelo artifício de Deus. O que me fascinou, porém, no
título não foi a sua relação com o produto do estupro, o novo ser que emerge
perturbante e perturbador. O que é verdadeiramente fascinante é o acto de estuprar
o nada, o exercício de uma violência, de uma violação onde o violado é um puro
ausente – nada – ou uma pura e simples ausência.
Sob tudo isto – ou talvez em seu redor – sente-se o odor da heresia.
Não tanto nas considerações que se podem fazer sobre a arte ou mesmo sobre a
irrupção de um novo ser – por exemplo, um ser humano – na ordem existente no
mundo. De facto, nesses casos é um excesso a expressão usada por Claudio
Magris. Esse excesso deve-se ao facto de não ser o nada que é violado, mas antes
uma certa ordem do ser. Essa ordem do ser é violada e aniquilada. A mulher que
é estuprada (e todo o acto sexual entre um homem e uma mulher pode ser visto
como um estupro, uma violação) e dá à luz aquele que vem depois dela e lhe
anuncia a sua morte, aquele que a aniquila. Por outro lado, a nova obra de arte
resulta da aniquilação de uma tradição artística por algo que a supera e vem tornar
patentes os seus limites. A criação humana – seja a de um filho ou a de uma obra
de arte – pode ser vista como um estupro, mas nunca como o estupro do nada. A
perturbação não vem do excesso de libido mas do que emerge e põe em causa o que
está. O sexo e o génio do homem são demasiado impotentes para violar a ausência
de ser que é o nada.
O estupro do nada só é possível pela potência divina. Só um Deus
omnipotente terá esse poder – essa libido incomensurável – de arrancar o nada
da sua recorrente ausência e introduzir a desordem do ser naquele vazio que a
mente dos homens não consegue conceber, mas que o seu coração teme mais que
todo o resto. O único estupro do nada pensável é a criação divina ex nihilo. Confessar que só Deus tem o
poder e a libido para violar o nada não será uma forma de evidenciar a sua
omnipotência? De certa forma. Mas mais do que sublinhar uma reverência perante
o poder divino, nós podemos ver aí um dedo acusador. No conceito de estupro,
mesmo que seja o do nada, nunca deixa de ecoar a ideia de um crime, da violação
de uma ordem jurídica prévia, diria de uma ordem jurídica pré-cósmica e
pré-ôntica. Dito de outra maneira, a criação do mundo não terá sido um acto de
bondade mas um crime. E estamos já plenamente mergulhados no velho perfume da
heresia.
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