Umberto Boccioni - Peasants at work (1908)
Desta atitude universal, mas
mítico-prática, destaca-se nitidamente, agora, a atitude “teorética”,
não-prática em qualquer dos sentidos anteriores, a do θαυμάζειν a que as
figuras maiores do primeiro período culminante da Filosofia Grega, Platão e
Aristóteles, reconduzem a origem da Filosofia. Apodera-se dos homens o fervor
de uma consideração e de um conhecimento do mundo que se afasta de todo e
qualquer interesse prático e que, no círculo fechado das suas actividades cognitivas
e nos tempos a elas consagrados, nada mais almeja e alcança que pura teoria.
Por outras palavras, o homem torna-se um espectador descomprometido, sinóptico,
do mundo, torna-se um filósofo; ou melhor: a partir daí, a sua vida torna-se
receptiva apenas às motivações que são possíveis nesta atitude, motivações para
novos objectivos de pensamento e métodos, através dos quais se realiza, por
fim, a Filosofia e o próprio homem se realiza enquanto filósofo. [Edmund
Husserl, A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia]
Com este texto de Husserl, retorno a um problema recorrente. O da
preeminência da prática. Esta preeminência é sublinhada na célebre, e várias
vezes citada aqui (em averomundo), 11.ª tese de Marx ad Feuerbach: «Os filósofos têm apenas
interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é
transformá-lo.» A perspectiva marxiana da supremacia da prática sobre a teoria
é oposta à tradição teorética do Ocidente. O que há de especificamente europeu
e ocidental é a consideração teórica e desinteressada da realidade. Foi isso
que fez a Filosofia e permitiu o nascimento das ciências particulares. A
perspectiva marxiana, por muito que possa surpreender, representa um retrocesso
às dimensões prático-míticas; uma desconsideração da razão na sua dimensão
teórica, por submissão ao critério da práxis, e a abertura novamente para
formas míticas de pensamento, consubstanciadas agora na figura da utopia, que o
chamado comunismo representa exemplarmente.
Mas não é o contraponto a Marx que
me interessa, mas compreendê-lo como um exemplo de uma atitude que se tem vindo
a tornar dominante entre aqueles que, no Ocidente, são anti-marxistas e que
dominam a vida política, económica e social. A submissão de toda a vida social
a imperativos puramente práticos, a própria submissão da universidade aos
interesses empresariais, representa um grave perigo para a subsistência da
Europa e do Ocidente, tal como eles se constituíram a partir da Grécia
clássica. É isto que está a tornar a Europa permeável a formas prático-míticas
de pensamento, formas que não se reconhecem na tradição teorético-contemplativa
ocidental. Por exemplo, a leitura do conflito entre a cultura islâmica e a
cultura ocidental. Quando apenas se vê a questão do véu ou a dos minaretes
suíços (ou agora da adesão de jovens ocidentais ao Islão), não se percebe a dimensão do conflito, que é um conflito entre duas
intencionalidades. dois projectos distintos para a existência da humanidade. É aqui que está o problema e
é aqui que é preciso discuti-lo. O mal do Ocidente não é a falta de acção, mas acção a mais desprovida de pensamento. (averomundo, 2009/12/21, revisto)
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