quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Da pura teoria

Umberto Boccioni - Peasants at work (1908)

Desta atitude universal, mas mítico-prática, destaca-se nitidamente, agora, a atitude “teorética”, não-prática em qualquer dos sentidos anteriores, a do θαυμάζειν a que as figuras maiores do primeiro período culminante da Filosofia Grega, Platão e Aristóteles, reconduzem a origem da Filosofia. Apodera-se dos homens o fervor de uma consideração e de um conhecimento do mundo que se afasta de todo e qualquer interesse prático e que, no círculo fechado das suas actividades cognitivas e nos tempos a elas consagrados, nada mais almeja e alcança que pura teoria. Por outras palavras, o homem torna-se um espectador descomprometido, sinóptico, do mundo, torna-se um filósofo; ou melhor: a partir daí, a sua vida torna-se receptiva apenas às motivações que são possíveis nesta atitude, motivações para novos objectivos de pensamento e métodos, através dos quais se realiza, por fim, a Filosofia e o próprio homem se realiza enquanto filósofo. [Edmund Husserl, A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia]

Com este texto de Husserl, retorno a um problema recorrente. O da preeminência da prática. Esta preeminência é sublinhada na célebre, e várias vezes citada aqui (em averomundo), 11.ª tese de Marx ad Feuerbach: «Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.» A perspectiva marxiana da supremacia da prática sobre a teoria é oposta à tradição teorética do Ocidente. O que há de especificamente europeu e ocidental é a consideração teórica e desinteressada da realidade. Foi isso que fez a Filosofia e permitiu o nascimento das ciências particulares. A perspectiva marxiana, por muito que possa surpreender, representa um retrocesso às dimensões prático-míticas; uma desconsideração da razão na sua dimensão teórica, por submissão ao critério da práxis, e a abertura novamente para formas míticas de pensamento, consubstanciadas agora na figura da utopia, que o chamado comunismo representa exemplarmente. 

Mas não é o contraponto a Marx que me interessa, mas compreendê-lo como um exemplo de uma atitude que se tem vindo a tornar dominante entre aqueles que, no Ocidente, são anti-marxistas e que dominam a vida política, económica e social. A submissão de toda a vida social a imperativos puramente práticos, a própria submissão da universidade aos interesses empresariais, representa um grave perigo para a subsistência da Europa e do Ocidente, tal como eles se constituíram a partir da Grécia clássica. É isto que está a tornar a Europa permeável a formas prático-míticas de pensamento, formas que não se reconhecem na tradição teorético-contemplativa ocidental. Por exemplo, a leitura do conflito entre a cultura islâmica e a cultura ocidental. Quando apenas se vê a questão do véu ou a dos minaretes suíços (ou agora da adesão de jovens ocidentais ao Islão), não se percebe a dimensão do conflito, que é um conflito entre duas intencionalidades. dois projectos distintos para a existência da humanidade. É aqui que está o problema e é aqui que é preciso discuti-lo.  O mal do Ocidente não é a falta de acção, mas acção a mais desprovida de pensamento. (averomundo, 2009/12/21, revisto)

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