William Strang - The Temptation (1889)
A nossa é uma época de imagens,
e nos últimos vinte anos duas imagens deram forma à nossa compreensão dos
tempos em que vivemos. A primeira foi a da queda do muro de Berlim e a segunda
a do colapso das torres do World Trade Center. Estas estruturas não eram meros
artefactos; era também símbolos profundamente gravados no espírito (psyche)
público. O primeiro era o símbolo do totalitarismo e da Guerra Fria, a
confrontação entre o mundo livre e o mundo escravizado; as segundas, o símbolo
de um mundo liberal unificado pelas forças da globalização. A queda do muro de
Berlim originou a crença num futuro liberal de paz e prosperidade, que fazia
reviver a fé no progresso humano, que os catastróficos eventos da primeira
parte do século XX quase tinha extinguido. O colapso das Twin Towers, por
contraste, acendeu o medo de um novo fanatismo furioso que ameaça as nossas
vidas e civilização de uma forma especialmente insidiosa. [Michael
Allen Gillepsie (2008). The Theological Origins of Modernity. Chicago and London: The University of
Chicago Press - Kindle Edition, Loc. 19-24]
Não é o conteúdo substantivo da tese de Gillepsie que me interessa
aqui, mas a sua referência às imagens. Estou de acordo que as duas imagens
marcantes e que, de certa forma, fecham o século XX, e abrem o século XXI, são
as referidas pelo autor. Aquilo que dá que pensar, no entanto, não são as
crenças e as formas de existência a que essas imagens se ligam, mas as próprias
imagens. Quando falamos num mundo de imagens e no facto do nosso mundo ser um
mundo de imagens fazemo-lo, ainda que inconscientemente, para fugir à própria
imagem. Assim, ela é signo ou símbolo de qualquer outra coisa dada na nossa
existência social e histórica (o fim do comunismo ou do optimismo liberal).
Isso tranquiliza-nos. Mas sob essa capa escondem-se outras camadas de sentido.
Estas imagens, que em aparência são ligadas a realidades diferentes,
referem-se a uma mesma coisa: a queda. O século XXI começou, assim, sob o
símbolo da queda. A queda é um velho símbolo presente na tradição
judaico-cristã, um símbolo inaugural. A queda de Adão e Eva, a expulsão do
paraíso, a ruína física e a degradação ontológica. Cabe perguntar, então, o que
significa uma época que tem, ou que escolhe, como seu símbolo a queda? Por
analogia, sabemos que é uma época de expulsão dos nossos paraísos, de ruína
material e de degradação da nossa própria condição ontológica.
Na queda do muro de Berlim vimos, ansiosamente, o símbolo da
liberdade. Não menos ansiosamente, pensámos na queda das Twin Towers um acto de
maldade e perversidade extremas. Mas tudo isso são conversões morais que evitam
olhar de frente o acontecer, a pura queda e a sua conexão com a espessa
experiência da humanidade consubstanciada na simbologia religiosa da queda. Em
Berlim e em Nova Iorque é um mundo que rui, por sinal o mesmo, apesar das
aparências em contrário, o mundo da modernidade e do Iluminismo. Tudo isso,
porém, está longe de significar uma libertação e uma emancipação. Se nos
deixarmos instruir pelo velho símbolo da queda, talvez comecemos a entrever o
significado desses acontecimentos. (averomundo,
2010/01/17)
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