William Blake - O Minotauro
Um texto publico no meu antigo blogue averomundo, em Janeiro de 2009. Parece escrito para hoje.
Tudo o que se está a passar revela uma coisa que, tendencialmente, esquecemos:
existir, viver, estar no mundo é uma coisa problemática e a vida, por mais que
criemos direitos para a proteger, está constantemente à beira da crise. Se os
direitos, neles incluídos os direitos socais, fazem sentido dentro do jogo da
linguagem social, já não fazem qualquer sentido dentro do jogo da linguagem da
natureza. Na natureza, sobreviveremos se nos conseguirmos adaptar. O problema é
que esquecemos muitas vezes que as sociedades humanas são construções fundadas
na natureza e que, por mais eficiência que se consiga na vida social, a
natureza, com os seus humores variáveis, acaba sempre por irromper, mostrando a
fragilidade da nossa existência. Seria bom, assim, compreender que as situações
críticas não são uma especificidade dos sistemas capitalistas, mas do mero
facto do homem vir ao mundo. O Iluminismo, tanto o de cariz liberal como o de
feição marxiana, espalhou a ilusão de ser possível construir sociedades
imunes às crises. Não podemos, pelo simples facto da nossa constituição
ontológica o não permitir: a crise é inerente à natureza do homem e de tudo o
que ele constrói.
Isso não significa, porém, que uma conduta descuidada e desregulada
seja a resposta ao existir crítico do homem. As sociedades humanas não são uma
espécie de duplicação de uma natureza anterior ao estado social, mas formas dos
homens regularem as suas relações com a natureza, com os outros homens e com o
mundo sobrenatural (seja este real ou puramente imaginário). Se a crise se
inscreve na estrutura ontológica do homem, a verdade é que o jogo cooperativo
que é a sociedade visa diminuir ao máximo os perigos que representa uma
natureza deixada sem vigilância. Quando se imagina o mercado, um produto
social, como sendo regulado por leis "naturais", está-se a esquecer a
essência social e reguladora de todas as instâncias sociais, entre elas o mercado.
Uma das consequências pode ser, então, a seguinte: o mercado, em vez de
produzir um papel regulador na distribuição dos bens que são necessários aos
membros da espécie, pode arrastar muitos desses membros para situações
críticas, porventura inultrapassáveis.
Inerente à essência do homem é, ao mesmo tempo, a assunção da
importância do risco e da regulação. No pensamento grego, à krisis responde a proairesis, isto é, a escolha
deliberada. É na dimensão da deliberação que se encontra a resposta para a
prevenção e solução das situações críticas. Deliberar implicar o uso da razão
na ponderação, na busca do equilíbrio e da justa medida. Quando a razão se
afasta da justa medida e se torna um mero instrumento de cálculo da eficiência,
os actos tornam-se desrazoáveis e a capacidade dos homens fazerem
frente às situações críticas, inerentes à existência, torna-se cada vez mais
frágil. A crise financeira e o triste espectáculo a que se assiste deve-se, em
última análise, a decisões de carácter filosófico que desvalorizam, tanto nas
decisões individuais como nas institucionais, o papel da razão enquanto
faculdade de deliberar em conformidade com o equilíbrio e a justa medida. O que
mostra uma característica nem sempre muito clara da própria razão: a sua
vulnerabilidade. (averomundo,
2009/01/26)