Cândido Portinari - Futebol (1935)
A transferência do treinador Jorge Jesus do Benfica para o Sporting é um daqueles momentos privilegiados em que podemos perceber onde reside a força simbólica do futebol, força que permite agregar milhões de pessoas, dando vazão aos sentimentos e às emoções que a vida obriga a recalcar. Como todos os grandes símbolos, o futebol tira a sua força da ambiguidade que reside nele.
Por um lado, é o emblema das sociedades de mercado, assentes na competição e na concorrência, onde, com excepção daquilo que é explicitamente ilegal (e mesmo aí...), tudo é possível, não havendo quaisquer limites ético-morais que travem a busca da vitória sobre o rival. E as multidões de adeptos, onde se incluem pessoas de elevada honradez, compreendem este tipo de práticas e, mais do que isso, exigem-nas.
Por outro, o futebol acorda, nessas mesmas multidões ávidas de vitórias custe o que custar, uma estranha nostalgia de uma comunidade ética perfeita. Valores como fidelidade, gratidão, respeito, reconhecimento são trazidos à luz do dia e esgrimidos contra aqueles que, movidos pelo seu interesse pessoal, fazem escolhas que contrariam o coração do adepto. A reacção dos benfiquistas à saída de Jorge Jesus é apenas mais um exemplo dessa nostalgia de uma comunidade ética sem a mácula da traição.
O futebol atrai multidões porque é o dispositivo simbólico que consegue soldar, em milhões e milhões de seres humanos, a necessidade de ser moderno e competitivo, adequado à sociedade concorrencial em que vivemos, com o apelo nostálgico de uma comunidade solidária, de valores morais irrepreensíveis. O futebol alimenta tanto a razão calculadora do homem como o foco imaginário de uma utopia social construída na nostalgia de uma ordem pré-moderna. A transferência de Jesus, para além do seu significado escatológico e sotereológico clubista, tem sido uma verdadeira lição sobre as sociedades contemporâneas.
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