David Siqueiros - La Nueva Democracia (1945)
Historicamente, a democracia
manifestou-se sempre tanto como uma promessa, tanto como um problema. Promessa
de um regime harmonizado com as necessidades da sociedade, sendo esta última
fundada sobre a realização de um duplo imperativo de igualdade e de autonomia.
Problema de uma realidade, muitas vezes, bastante longe de satisfazer estes
nobres ideais. O projecto democrático nunca deixou de ficar incompleto lá mesmo
onde ele era proclamado, quer tenha sido grosseiramente pervertido, subtilmente
contraído ou mecanicamente contrariado. No sentido mais forte do termo, nunca
conhecemos regimes plenamente «democráticos». As democracias realmente
existentes permaneceram inacabadas ou mesmo confiscadas, em proporções, segundo
os casos, muito variáveis. Daí que os desencantamentos andem a par com as
esperanças que fizeram nascer as rupturas com os mundos da dependência e do
despotismo [Pierre Rosanvallon (2006). La contre-démocracie. La politique à l'âge de la défiance. Paris:
Ed. du Seuil].
Não se encontrará a nossa democracia perto do quadro descrito por
Rosanvallon? Não se estará ela a tornar numa «democracia» confiscada. É certo
que as instituições vão funcionando, mas vive-se um momento em que a tensão
entre a esperança na democracia e a descrença (o autor fala em défiance -
desconfiança, suspeita) parece estar a pender para o lado da suspeita. Muita
gente começa a suspeitar da capacidade da democracia realizar as suas
promessas.
O interesse do texto de Rosanvallon reside em chamar a atenção sobre o
óbvio: a democracia realiza-se num cumprimento de um duplo imperativo, o da
igualdade e o da autonomia, isto é, da liberdade. Durante os últimos decénios a
querela entre igualdade e liberdade tem animado as discussões sobre filosofia
política, tendo a consideração da igualdade sofrido um abalo, até como desforra
dos tempos em que o igualitarismo marxista tomou conta de uma parte do mundo e
arrastou uma parte substancial do Ocidente a inventar o Estado-Providência, uma
forma democrática de assegurar uma certa igualdade entre os membros de uma
sociedade.
O que interessa, neste momento em que as desigualdades entre os homens
se acentuam, é chamar a atenção para uma outra perspectiva. A querela entre
liberdade e igualdade sublinhou apenas os aspectos aparentemente incompatíveis
entre ambas. Mas o que ficou recalcado foi o facto de liberdade e igualdade se
requererem mutuamente. O perigo das desigualdades sociais acentuadas não é
apenas do aumento do fosso entre ricos e pobres, mas o de abrir o caminho para
uma efectiva eliminação da autonomia de larga massa de indivíduos e a
consequente supressão da liberdade.
A democracia é promessa e problema. Promessa de uma sociedade mais
justa, problema de encontrar a justa medida onde igualdade e liberdade se
maximizem mutuamente. A suspeita que nasce sobre a democracia funda-se nessa
clivagem entre igualdade e liberdade, clivagem que faz parecer que a liberdade
apenas serve para que os mais fortes oprimam os mais fracos. Se não quisermos
ver a liberdade suprimida, então será melhor que cuidemos e inventemos novas
formas de realizar os imperativos da democracia. (averomundo, 2009/03/05)
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