Porta Missé - Pensador (1981)
Retomo, adaptando a um novo contexto não polémico, um texto antigo, do
meu blogue averomundo, sobre a acusação
de vacuidade da linguagem simbólica, nomeadamente da que está presente na
teologia e na religião. A linguagem teológica estaria cheia de misteriosos e venerandos
hieróglifos, os quais ocultariam a
vacuidade da própria linguagem. Será assim?
A linguagem simbólica exprime o pensamento sobre o divino. Do divino
não têm os homens conhecimento, não há ciência empírica dele, mas podem
pensá-lo. Para o pensar precisam de o simbolizar e simbolizar as "experiências"
que dele possuem. Como Kant ensina, não há conhecimento de Deus ou da
imortalidade da alma, apenas pensamento. Mas Kant também ensina que o mesmo se
passa com a liberdade. A liberdade não é um dado empírico, não é cognoscível,
dela não há ciência possível. Mas isso não significa que, quando usamos a
linguagem para simbolizar essa liberdade, estejamos a disfarçar o que quer que
seja. Os homens têm agido no pressuposto da liberdade, na crença na liberdade,
bem como no pressuposto da existência de Deus e da imortalidade da alma. Uma
coisa é idêntica à outra.
Isto não significa que seja
impróprio falar de vacuidade da linguagem. Essa vacuidade não deriva, porém, de
a linguagem ser utilizada para referir "experiências" não empíricas
da humanidade, como aquelas que as religiões tratam, ou aquelas que pressupõem a
liberdade. A vacuidade da linguagem nasce da sua impotência para dizer a
realidade e da degradação contínua que toma conta dela, tornando-a menos
própria para dizer o que quer que seja, cativa que fica da banalidade que a
usura quotidiana impõe.
É no símbolo religioso e na metáfora poética que a linguagem tem maior
pregnância. Ela é obscura, mas essa obscuridade não se confunde com a
equivocidade lexical que o uso quotidiano impõe. A obscuridade da linguagem
está enraizada na própria obscuridade da existência e da relação do homem com
aquilo que o envolve. Quando o símbolo e a metáfora se degradam em catacreses,
ou metáforas mortas, é o momento em que a linguagem já não serve para pensar e
está radicalmente banalizada, correspondendo a uma experiência banal do
quotidiano.
É aqui que se coloca uma coisa que cada vez me interessa mais. A
riqueza do conceito filosófico não está na sua claridade, por muito que tenha
sido esse o programa da modernidade encetado por Descarte. A riqueza do
conceito filosófico radica na sua origem simbólico-tropológica. Não é o traço
claro e distinto que dá que pensar, mas o fundo obscuro, essa contaminação da
linguagem filosófica pela sua origem mitopoética que fornece a matéria para o
pensar. Pensar é caminhar para dentro das metáforas e dos símbolos, é escavar
nessa "ausência de pensamentos".
Essa ausência de pensamentos não significa que não haja nada para
pensar, pelo contrário. A ausência de pensamentos surge como uma intimação a
pensar. Por exemplo, pensar a liberdade. Eu sei que nunca poderei ter uma
ciência da liberdade, mas isso não me exime do dever de a pensar. E o termo
liberdade, apesar do seu uso banalizado, não deixa de ser símbolo e metáfora,
não deixa de ser obscuro e é essa obscuridade que nos dá que pensar. O mesmo se
passa com a linguagem simbólica das religiões, apesar do seu uso profundamente
degradado e positivado. Nesses símbolos esconde-se uma experiência e um
interesse obscuros da humanidade que nos dão que pensar. Só aí há que pensar. O
espírito de veneração e mistério dos crentes é apenas o sintoma desse interesse
obscuro que habita o homem desde que é homem.
O resto é conhecimento e mero raciocinar, e esses pertencem à ciência
ou a certos jogos florais de carácter argumentativo a que a filosofia, cada vez
mais, parece querer resumir-se. O grande problema da teologia não é o mistério,
nem o símbolo, nem a metáfora. Não é que ela possua um conjunto de hieróglifos
que tapam o vazio da existência de Deus. O problema da teologia é o seu uso da
razão entendida como mero entendimento e faculdade puramente lógica fundada na
não-contradição. O problema da teologia é a tentação de fazer ciência daquilo de
que não há ciência, a tentação de não pensar o símbolo e as metáforas, os
hieróglifos, que estão espalhados no seu corpo. (averomundo, 2009/06/12)
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