A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.
No passado fim-de-semana, Vasco Pulido Valente (VPV) escrevia no
Público o seguinte: «O futebol, a obsessão com a cozinha e os concertos de
música popular são três maneiras de resistir à realidade doméstica e ao
desespero a que ela nos reduziu. É uma evasão, uma grande evasão». O tema da grande evasão não é outro senão o da
alienação marxista. A religião para Marx era uma alienação pois representava
uma consciência invertida da realidade social. Hoje em dia, em que a influência
da religião nos comportamentos humanos é, em Portugal, tendencialmente nula, a
alienação da realidade social vem através do futebol, da obsessão com a comida gourmet e a música popular, nas palavras
de VPV.
Nesta retórica, encontramos a velha crítica – de que Platão e o
cristianismo foram os expoentes – das paixões humanas. As paixões sempre foram
vistas como as grandes inimigas da razão. Pressupõe-se que os homens esmagados
pelas suas paixões – é escravo das suas paixões, dizia-se – são incapazes de
condutas racionais e sofrem, por isso, de uma espécie de deficiência contumaz para
conhecer a verdade e agir segundo os preceitos da sábia razão. Veja-se como VPV
mostra as paixões da bola, da comida e da música (só faltou a do sexo) como
formas de resistir à realidade, isto é, de não encarar a verdade de frente.
Este tipo de moralidade cansa-me. Há nela uma duplicidade
insuportável. O moralista terá por certo as suas paixões, mas está sempre
disposto a apontar ao próximo o dedo inflexível, o que é uma forma de evidenciar
tanto a sua presumida superioridade como de mostrar a indigência moral dos
outros. Estes não passam de alienados ou de evadidos da realidade. Ora está
longe de estar demonstrado que ter paixões (seja a religião, o futebol, a
música, a comida, o sexo ou a filatelia) nos impeça de perceber qual é o nosso
lugar na sociedade e de compreender a realidade.
Por outro lado, o que todos nós procuramos nas paixões não é a
alienação e a evasão da realidade. É o contrário. Na paixão, seja ela qual for,
o homem procurar viver intensamente a realidade do objecto da paixão,
experimentá-la nos seus limites, destruir as fronteiras que a vida quotidiana
impõe e abrir-se para algo que o transcenda e tenha, por isso mesmo, um excesso
de realidade. Contrariamente ao que escreve VPV, não é para resistirem à
realidade que os portugueses se entregam às paixões que ele denuncia. É para a
encontrarem, para experimentarem a intensidade que qualquer um de nós atribui
àquilo que é real. Deixem as nossas paixões em paz.
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