Franz Josef Kline - Tragedy (1961)
Em Syllogismes de
l’Amertume, Cioran, num dos seus aforismos, diz: “Os abúlicos, porque
deixam as ideias sem as alterar, deveriam ser os únicos a ter acesso a elas.
Quando os atarefados se apropriam delas, a doce confusão quotidiana organiza-se
como tragédia.”
O mundo moderno, fundamentalmente o mundo pós-Marx, tornou-se o imenso
palco de uma tragédia desmesurada. Na retaguarda dessa tragédia está a força do
pensamento. Aqui o termo força deve ser compreendido no sentido de violência.
Pensar é o exercício de uma violência, como o notou Heidegger, de uma violência
muito específica: reduzir o mundo real e concreto na sua multiplicidade de
formas ao mundo asséptico e organizado das relações entre conceitos. Um
conceito não é uma coisa, apenas uma representação. Que haverá de mais violento
do que esta redução das coisas a puras representações mentais?
Este supremo exercício da violência é subtil, o mais das vezes só
alguns – a quem dão o equívoco nome de filósofos – dão por ele. Imaginemos que
estamos perante um terramoto. A terra torce e abana, mas talvez a vida ainda
possa continuar. A tragédia vem depois, com as réplicas e o possível maremoto.
Quando os homens querem levar à prática os seus conceitos (esses terramotos
originários) a tragédia começa, pois a realidade está muito para além desses
conceitos.
Porque falei em Marx? Por causa das suas 11 teses ad Feuerbach. Não passam de um
repositório de apelos ao crime. Não me estou apenas a referir à célebre 11.ª
tese, “Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes
modos; do que se trata é de o transformar.” Observe-se a 2.ª tese, “É na
prática onde o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, a
terrenalidade do seu pensamento.” Está aqui tudo: a violência, a tragédia, a
coacção infinita sobre a vida e o homem. Marx tinha uma fixação na filosofia de
Hegel. Mas esta, um poderoso exercício intelectual, uma redução do existente ao
lógico, não tinha repercussões práticas. Na sua juventude, Marx julgou dever
realizar a filosofia, fazer com que a realidade se adequasse a ela. A tragédia
e a decepção que foi a experiência comunista começou aqui. A doce confusão, la douce pagaille, no dizer de Cioran,
tornou-se no mundo planificado e sobrevigiado até descambar no goulag. Realizar a filosofia só pode
levar à maior das tragédias.
Mas se falei de Marx, não foi por causa do marxismo, mas de uma nova
forma de violência conceptual que se abate sobre o mundo, um mundo onde os
inimigos de Marx triunfaram. A vida quotidiana, aquela onde os homens vivem la
douce pagaille, é cada vez mais
colonizada pelo pensamento, pelos conceitos, pelos esquemas abstractos. As
sociedades pós-modernas ou tardo-capitalistas, na linguagem de Habermas, foram
colonizadas por esta infinita necessidade de controlo da vida prática pelos
conceitos teóricos. As ciências sociais e humanas, com destaque para a
economia, a sociologia e as chamadas «ciências da educação», constituem-se como
novas formas de opressão do quotidiano dos homens. Não pelo seu aspecto
científico enquanto tal, mas pela obsessão daqueles que as utilizam no mundo
quotidiano para vergar o real aos conceitos e às prescrições derivadas desses
campos teóricos. Uma violência sem fim cai sobre os cidadãos, sob a forma do
discurso mole da avaliação, da organização e da eficiência. Onde deveria
prontificar a fluidez vital, os contactos informais, a responsabilidade e a
liberdade individuais, ganha preponderância o colectivo - não se confunda com o
comunitário -, os mecanismos abstractos, a coacção inominável. As ciências
sociais, económicas, educacionais e afins são o suporte do crime, o lugar de
onde os bandoleiros disparam sobre os inocentes.
A razão emancipou-se do corpo, individual e social, onde estava
ancorada, e num delírio sem fim está a tornar a vida dos homens numa tragédia.
O inferno é o delírio da razão autónoma, do racionalismo sem razoabilidade. O
mundo foi tomado pelos atarefados de Cioran, os quais, sem qualquer pudor,
estão apostados em transformar cada canto da vida num indizível gulag. O pior é que esses atarefados,
sempre dispostos a manejar umas ideias e uns conceitos e a pô-los em prática,
vivem ao nosso lado, conhecemo-los, falamos com eles. Mas não nos iludamos,
eles não são nossos amigos. Emprenhados pelo delírio da razão técnica,
exaltados pela glória que imaginam que os espera, destruirão quem quer que seja
que se oponha ao seu desígnio de tornar o mundo racional, de violentarem a vida
em nome do esquematismo abstracto que um dia, numa qualquer universidade –
outro local cada vez mais suspeito – lhe sopraram.
Mas então a filosofia não será um crime? Não, os filósofos sabem que a
filosofia não passa de um jogo, uma forma secundária de literatura. Os
filósofos não se imaginam a transformar o mundo das ideias em realidade através
da prática. No fundo, Marx nunca foi um filósofo. Os filósofos, apesar de
encheram a boca com a razão, sabem muito bem quais os seus limites e não têm
ilusões sobre a realização prática da filosofia. Não são abúlicos, mas levam
uma vida inteira para se tornarem abúlicos. A filosofia é o exercício de
domesticação das veleidades da vontade, isto é, da razão prática. É por isso
que ela é um amor à sabedoria. Será sabedoria quando o filósofo for tomado pelo
silêncio, pelo grande silêncio. (averomundo,
2007/05/25)