domingo, 31 de janeiro de 2016

Versículos bíblicos - 2

Eugène Delacrroix - Liberdade conduzindo o povo (1830)

“Seis dias farás teus negócios, mas ao sétimo dia descansarás: para que descanse teu boi e teu asno; e o filho da tua serva, e o estrangeiro tome refrigério” (Êxodo 23:12). Este versículo 12 do capítulo 23 do segundo livro do pentateuco é uma curiosa e arcaica formulação de respeito pela natureza, animal e humana. A curiosidade reside na justificação dada para o descanso do sétimo dia. A necessidade de toda a natureza repousar. Se olharmos atentamente para a construção do discurso bíblico, descobrimos uma resposta para a seguinte pergunta: para que serve toda aquela narrativa sobre a criação do mundo em seis dias e o descanso de Deus no sétimo? Serve, entre outras coisas, para legitimar o descanso dos homens. Se Deus descansou ao sétimo dia, então ao homem compete fazer o mesmo.

Isto mostra que o problema do tempo de trabalho deveria ser já, naqueles tempos, objecto de apaixonadas e discordantes posições. Haveria, certamente, os “economistas” de serviço a recomendar que não se desperdiçasse tempo fora do labor. O Êxodo mostra-se, assim, um texto emancipatório e libertador, contrariamente ao que muitos gostam, por preguiça ou preconceito, de pensar. Advoga, contrariamente ao espírito burguês, um direito, de carácter divino, a nada fazer. Aliás, este livro bíblico começa com uma das primeiras grandes gestas emancipatórias da humanidade, a libertação do povo de Deus da escravatura no Egipto. No versículo 9 deste mesmo capítulo, está escrito: “Também não oprimirás o estrangeiro; pois vós conheceis a alma do estrangeiro, que fostes estrangeiro na terra do Egipto.” Encontramos a mesma ideia no versículo 21 do capítulo 22.

A doutrina social da Igreja Católica não é um acrescento estranho aos textos do Antigo e do Novo Testamento. Pelo contrário, é a sua emanação, uma combinação de emancipação das opressões terrestres e uma libertação das ilusões do espírito.

Nota final: observe-se bem o quadro de Delacroix e leia-se a descrição da fuga do povo de Israel do Egipto, quando as águas se abriram. (averomundo, 2007/05/16)

sábado, 30 de janeiro de 2016

Versículos bíblicos - 1

Emil Nolde - Landscape in Red Light

“Também não tomarás presente: porque o presente cega os que o vêem, e perverte os negócios dos justos” (Êxodo 23:8). Eis um conselho para todos os tempos e não apenas uma ordem de Deus para Israel, o seu povo. No centro da palavra divina, não está a corrupção. Ela é apenas periférica. A ideia central é outra: o presente cega os que o vêem. Mas o que significará tal cegueira? Há por detrás da construção bíblica toda uma metafórica da luz. O presente, no excesso da sua luz, como o Sol, acaba por cegar.

Ora a cegueira não é a dos olhos, mas a da luz da razão. Esta inclina-se para aquilo que brilha e, por esse excesso de luz, a dissolve, como a luz de uma lâmpada é dissolvida pela luz do dia. A dissolução da luz da razão que o presente – e aqui presente é sempre algo que se torna presente – traz consigo implica a entrada na esfera de uma economia do dom; a um presente recebido corresponde um presente a dar. É nesta troca, onde a razão se inclina e dissolve, que se inscreve a perversão da justiça.

O que o texto bíblico nos mostra é que a perversão dos costumes nasce de uma perversão da razão. Este é o princípio do mal. Mas como é a razão concebida na passagem citada? Como frágil. A metáfora da cegueira, o negativo da metáfora da luz, mostra a razão na sua fragilidade e, por isso, susceptível de corrupção. Contra isso, apenas o imperativo divino “também não tomarás presente”. Este imperativo divino é, porém, toda a lei, a de Deus e dos homens. Numa curta frase encontramos quase toda a filosofia moral kantiana. Mas só a vemos, porque Kant a trouxe à luz e soube ver a estrutura racional sob as imagens religiosas. (averomundo, 2007/05/16)

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

A glória do amor

John Everett Millais - Love from Willmot's Poets

O amor, aliás, é sempre a revolta de um par contra o saber da multidão. (Robert Musil)

A fortuna que o amor alcançou entre os seres humanos dever-se-á menos aos estratagemas biológicos que, através das pulsões eróticas, a espécie utiliza para se reproduzir, do que ao espírito de revolta que representa um par de amantes. Ulrich, a personagem central de O Homem Sem Qualidades, de Robert Musil, distingue claramente o objecto dessa revolta. E este não é sequer a massa, a multidão, mas o seu saber, as suas crenças, opiniões e representações, pois estas são um cimento sólido dessa multidão.

Pedro e Inês ou Romeu e Julieta, no fervor da sua atracção erótica, sabem alguma coisa que a multidão não sabe. Esse saber é, como se sabe pelos desenlaces trágicos conhecidos, inaceitável pela massa. Esta sente sempre desconforto – em alguns casos, verdadeiro terror – perante esse isolamento dos amantes relativamente à opinião da multidão. Estes desconforto ou este terror dever-se-ão a quê? Aqui, Elias Canetti (Massa e Poder) pode ajudar. A revolta dos amantes contra o saber da multidão, o senso comum, contra esse saber que une os homens, traz com ela uma ameaça de desagregação da própria multidão.

É aqui que se percebe a fortuna que o amor alcançou entre a humanidade. Essa fortuna deriva de uma vertigem. Esta nasce de um conflito que se abre em cada amante. Por um lado, ele pertence à multidão, é formatado pelo senso comum, esse saber da massa, e quer que a massa não se desagregue. Por outro, ele deseja um conhecimento pessoal e não partilhável, um saber feito de experiência puramente privada, de uma experiência que põe em causa o saber da multidão e a própria multidão de onde ele saiu, mas a que pertence.

Mais do que os dons eróticos do objecto amado, é esta vertigem nascida do conflito entre a inclinação para o saber da massa e o desejo de uma experiência e de um saber privados que faz a glória do amor. E o amor persiste enquanto o par amoroso sentir a sua paixão como uma revolta, enquanto sentir a dilaceração entre aquilo que é o senso comum da massa e o seu saber privado, pessoal e intransmissível.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 3. Ave de rapina

Georgia O'Keeffe - A Black bird with snow-covered red Hills (1946)

3. Ave de rapina

Os ramos frios, as letras ardentes,
a luz onde poiso se cai a maresia.
Um som brame na esquina da rua,
semeia bolor no centro do peito.

Nos dias de sol, a voz de um anjo,
presa na mudez que desce do céu,
canta no silêncio do caminho.
Sobre o fulgor da tarde cai a chuva

parda de granizo e a ave de rapina
plana, suspensa da plumagem,
à espera da lua, à espera da morte.

Aguarda o destino vindo na palavra,
na água que desliza sobre a terra,
no voo do animal coberto de fogo.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Distância e harmonia

Henri Matisse - Armonía en rojo (1908)

A espécie humana é, muitas vezes, para além de previsível, muito cansativa. Aliás, uma coisa está ligada à outra. Cansa de tão previsível. Se imagina que tem de quebrar uma rotina, age em massa na defesa da repetição, do eterno retorno do mesmo. E torna-se uma ameaça. Na verdade, só há uma maneira de viver em harmonia com os seres humanos. Frequentá-los o menos possível. Αἰδώς (Aidos) era a deusa grega da vergonha, da modéstia e da humildade. Αἰδώς era também uma virtude essencial para a comunidade política. Costumo interpretar esta virtude como o exercício da justa distância, pois tanto a vergonha como a modéstia e a humildade trazem consigo um certo distanciamento do outro e da massa dos outros. É este distanciamento que nos permite viver em harmonia.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Ser anacrónico

Ángel Orcajo - Entre el espacio y el tiempo (1989-90)

Houve um tempo em que gostaria de estar à frente do tempo, descobrir o inédito onde poucos o tinham visto. Amava a vanguarda, esse símbolo moderno do provir, e as suas rupturas, como se isso fosse o verdadeiro sentido da vida. Como, hoje em dia, essas levianas pretensões me parecem nefastas, sintomas de uma moléstia pouco digna de consideração. Mesmo uma educação tradicional centra a criança na voragem do futuro.

Nesse tempo também havia os que amavam o passado. Amavam-no como se ele fosse o modelo ideal de toda existência. Na verdade, esse amor não era mais que uma fixação infantil ou uma reacção contra exuberância da vida. É preciso ser absolutamente indigente ou incomensuravelmente rico para que o amor pelo passado seja um sentimento desinteressado e não apenas um culto reactivo, uma experiência do ressentimento, uma revolta contra a vida.

Mas o dilema entre passado e futuro é um falso dilema. E esta falsidade não se deve ao facto de o presente ser uma terceira alternativa. Ser anacrónico é a esperança dos que não cultuam o futuro nem o passado, tão pouco o presente. Pertencer a todos os tempos e a nenhum. Instalar-se na Grécia e de seguida na Renascença. Passear-se por Roma, para logo caminhar em Konigsberg e, boquiaberto, ver o professor Kant na pontualidade dos seus passeios. Em todos os tempos, ser estrangeiro e estar neste tempo como se a ele não pertencesse.

Quando falam em utopias os intestinos revolvem-se-me. Recusar o espaço é o pecado maior, é recusar o corpo, os corpos que amámos, os lugares que nos acolheram. O tempo, porém, é um déspota implacável que a cada instante nos pontapeia, como se exibisse uma ordem de expulsão nunca completamente cumprida. O tempo expulsa-nos do espaço, rouba-nos os corpos amados, descorporaliza-nos. O tempo é o verdadeiro significado da utopia. Em vez da utopia a ucronia. Melhor, a anacronia. Ser anacrónico e nada mais do que anacrónico. Quanto tempo demorará a viagem para o não-tempo? (averomundo, 2007/05/24)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Uma abertura

Antón van Dyck - The Mystic Marriage of Saint Catherine (1618-20)

Pensa-se que o misticismo é um mistério pelo qual entramos num outro mundo; mas ele é apenas, ou mesmo, o mistério de viver de modo diferente no nosso próprio mundo. (Robert Musil, O Homem Sem Qualidades III, p. 212)

Ulrich, personagem principal do romance de Musil, em conversa com a irmã, sublinha o traço central daquilo que é visto como experiência mística. Não se trata de uma fuga ao mundo, tão pouco será a invenção de um mundo imaginário para onde os místicos se transportariam. A ligação entre mística e religião contaminou a primeira com o imaginário da segunda, mas tudo parece ser mais simples e muito diferente. Em vez de uma transferência para o além, a experiência mística será uma sobre-atenção ao real, um exercício de ultrapassagem da visão rotineira e vulgar do mundo, uma ruptura com o hábito e, por isso tudo, uma abertura para o não visto, o não ouvido, o não sentido e - porque não? - para o não pensado. Em resumo, uma abertura para a realidade.

domingo, 24 de janeiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 2. Céu azul coberto

Oskar Kokoschka - Manhã e Tarde (1966)

2. Céu azul coberto

Um ponto côncavo e sonoro.
A chama ateada do passado
rumoreja se chega o verão,
uiva se perdida pela estrada.

Pela manhã desenha-se
a raiva que floresce no dia,
no céu azul coberto
de aves e nuvens e astros.

E as horas correm sombrias,
presas ao vento da memória,
presas na água oferecida
à boca seca de tanto esperar.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

sábado, 23 de janeiro de 2016

Em louvor da abulia

Franz Josef Kline - Tragedy (1961)

Em Syllogismes de l’Amertume, Cioran, num dos seus aforismos, diz: “Os abúlicos, porque deixam as ideias sem as alterar, deveriam ser os únicos a ter acesso a elas. Quando os atarefados se apropriam delas, a doce confusão quotidiana organiza-se como tragédia.”

O mundo moderno, fundamentalmente o mundo pós-Marx, tornou-se o imenso palco de uma tragédia desmesurada. Na retaguarda dessa tragédia está a força do pensamento. Aqui o termo força deve ser compreendido no sentido de violência. Pensar é o exercício de uma violência, como o notou Heidegger, de uma violência muito específica: reduzir o mundo real e concreto na sua multiplicidade de formas ao mundo asséptico e organizado das relações entre conceitos. Um conceito não é uma coisa, apenas uma representação. Que haverá de mais violento do que esta redução das coisas a puras representações mentais?

Este supremo exercício da violência é subtil, o mais das vezes só alguns – a quem dão o equívoco nome de filósofos – dão por ele. Imaginemos que estamos perante um terramoto. A terra torce e abana, mas talvez a vida ainda possa continuar. A tragédia vem depois, com as réplicas e o possível maremoto. Quando os homens querem levar à prática os seus conceitos (esses terramotos originários) a tragédia começa, pois a realidade está muito para além desses conceitos.

Porque falei em Marx? Por causa das suas 11 teses ad Feuerbach. Não passam de um repositório de apelos ao crime. Não me estou apenas a referir à célebre 11.ª tese, “Os filósofos limitaram-se até agora a interpretar o mundo de diferentes modos; do que se trata é de o transformar.” Observe-se a 2.ª tese, “É na prática onde o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade, o poder, a terrenalidade do seu pensamento.” Está aqui tudo: a violência, a tragédia, a coacção infinita sobre a vida e o homem. Marx tinha uma fixação na filosofia de Hegel. Mas esta, um poderoso exercício intelectual, uma redução do existente ao lógico, não tinha repercussões práticas. Na sua juventude, Marx julgou dever realizar a filosofia, fazer com que a realidade se adequasse a ela. A tragédia e a decepção que foi a experiência comunista começou aqui. A doce confusão, la douce pagaille, no dizer de Cioran, tornou-se no mundo planificado e sobrevigiado até descambar no goulag. Realizar a filosofia só pode levar à maior das tragédias.

Mas se falei de Marx, não foi por causa do marxismo, mas de uma nova forma de violência conceptual que se abate sobre o mundo, um mundo onde os inimigos de Marx triunfaram. A vida quotidiana, aquela onde os homens vivem la douce pagaille, é cada vez mais colonizada pelo pensamento, pelos conceitos, pelos esquemas abstractos. As sociedades pós-modernas ou tardo-capitalistas, na linguagem de Habermas, foram colonizadas por esta infinita necessidade de controlo da vida prática pelos conceitos teóricos. As ciências sociais e humanas, com destaque para a economia, a sociologia e as chamadas «ciências da educação», constituem-se como novas formas de opressão do quotidiano dos homens. Não pelo seu aspecto científico enquanto tal, mas pela obsessão daqueles que as utilizam no mundo quotidiano para vergar o real aos conceitos e às prescrições derivadas desses campos teóricos. Uma violência sem fim cai sobre os cidadãos, sob a forma do discurso mole da avaliação, da organização e da eficiência. Onde deveria prontificar a fluidez vital, os contactos informais, a responsabilidade e a liberdade individuais, ganha preponderância o colectivo - não se confunda com o comunitário -, os mecanismos abstractos, a coacção inominável. As ciências sociais, económicas, educacionais e afins são o suporte do crime, o lugar de onde os bandoleiros disparam sobre os inocentes.

A razão emancipou-se do corpo, individual e social, onde estava ancorada, e num delírio sem fim está a tornar a vida dos homens numa tragédia. O inferno é o delírio da razão autónoma, do racionalismo sem razoabilidade. O mundo foi tomado pelos atarefados de Cioran, os quais, sem qualquer pudor, estão apostados em transformar cada canto da vida num indizível gulag. O pior é que esses atarefados, sempre dispostos a manejar umas ideias e uns conceitos e a pô-los em prática, vivem ao nosso lado, conhecemo-los, falamos com eles. Mas não nos iludamos, eles não são nossos amigos. Emprenhados pelo delírio da razão técnica, exaltados pela glória que imaginam que os espera, destruirão quem quer que seja que se oponha ao seu desígnio de tornar o mundo racional, de violentarem a vida em nome do esquematismo abstracto que um dia, numa qualquer universidade – outro local cada vez mais suspeito – lhe sopraram.

Mas então a filosofia não será um crime? Não, os filósofos sabem que a filosofia não passa de um jogo, uma forma secundária de literatura. Os filósofos não se imaginam a transformar o mundo das ideias em realidade através da prática. No fundo, Marx nunca foi um filósofo. Os filósofos, apesar de encheram a boca com a razão, sabem muito bem quais os seus limites e não têm ilusões sobre a realização prática da filosofia. Não são abúlicos, mas levam uma vida inteira para se tornarem abúlicos. A filosofia é o exercício de domesticação das veleidades da vontade, isto é, da razão prática. É por isso que ela é um amor à sabedoria. Será sabedoria quando o filósofo for tomado pelo silêncio, pelo grande silêncio. (averomundo, 2007/05/25)

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Terapia

Nicolas Poussin - The Plague of Ashdod (1630)

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano

A RTP teve a feliz ideia de adaptar para português uma série de origem israelita que gira à volta de sessões de psicanálise. Deu-lhe o nome de Terapia. Em cada dia da semana, um paciente confronta-se consigo mesmo no consultório do psicanalista. À primeira vista nada parece menos motivante para um telespectador do que assistir a uma consulta, onde um paciente fala e um psicoterapeuta escuta e murmura.

A verdade, porém, é que a consulta, apesar de não conter praticamente qualquer tipo de acção a não ser os diálogos, torna-se um lugar privilegiado de conflitos e suspense. De tal maneira que o espectador – como acontecia antigamente com os leitores de romances em folhetim – anseia pelo episódio da próxima semana para acompanhar o destino do paciente e ver o que lhe acontece.

Devido à evolução da televisão, tenho o privilégio de poder assistir a estes episódios à hora do telejornal e não quando são transmitidos. Também os noticiários trocaram a informação objectiva pela narrativa ficcional. São histórias sem fim, onde os pobres jornalistas se obrigam a inventar um discurso desconexo para não dizer coisa alguma, com a única finalidade de ocuparem o tempo de antena e, instrumentalizando a vida das pessoas, fazer com que a emissão de televisão saia mais barata.

A ficção informativa tornou-se, hoje em dia, uma ameaça à saúde pública, alimentando uma histeria mansa e sem fim, cujo resultado é impedir as pessoas de olhar objectivamente a realidade e de a avaliar criticamente. Poder ver, no lugar dos noticiários, uma série como Terapia não é apenas um prazer estético devido à qualidade dos diálogos e das intrigas. É uma verdadeira terapia contra o enjoo e o absurdo em que a informação se tornou neste pobre país.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

O perigo de jogar Xadrez

Lucas van Leyden - The Game of Chess (1508)

Afinal o Xadrez é uma coisa perigosíssima para a alma e nalguns sítios ainda mais para o corpo. Esta estapafúrdia fatwa (decreto religioso) do grande mufti da Arábia Saudita, xeque Abdulaziz al-Sheikh, contra o jogo de Xadrez, estabelece um ponto de união entre sunitas e xiitas, pois também o líder dos xiitas iraquinos, Ali al-Sistani, considera que é proibido jogar Xadrez. A atitude espontânea de um ocidental é sorrir e não levar a sério este tipo de coisas. Elas são contudo reveladoras da incomensurabilidade entre o Islão e o Ocidente.  É insuportável para um ocidental que alguém regule a sua vida, como se ele não possuísse livre-arbítrio e, na prática, estivesse eternamente na menoridade. 

O que está em jogo no conflito de valores entre o Ocidente e o Islão é só uma coisa: a liberdade do indivíduo. A possibilidade de cada um fazer o que quer da sua vida, desde que isso não afronte os direitos dos outros. Se há uma coisa que devemos, ainda hoje, ao Iluminismo, e a qual devemos lutar por conservar, é a saída da menoridade, o direito de governar a nossa vida como muito bem entendermos, sem ter de prestar contas a ninguém. Proibir o jogo de Xadrez não é uma mera anedota. É o sinal de uma cultura que, quem ama a liberdade, deve considerar intolerável. E não, não sou etnocêntrico. A liberdade que quero para mim, admito - e desejo - que seja querida por qualquer outro, seja ocidental, muçulmano, taoista ou hindu. Há valores que são superiores a outros, aqueles que podem ser partilhados por qualquer um.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O Silêncio da Terra Sombria - 1. Terra Branca

Paul Gauguin - Breton Village in the Snow (1894)

1. Terra Branca

Era uma terra calcária, branca, branca
como o pó da estrada. Sobre as margens
morriam as lentas figuras da infância
tomadas pela cólera que as devastava.

O coração banido entoava uma litania.
Suado e deserto, descrevia a paisagem
feita de terra, branca como a manhã,
aberta sobre a camisa rota de algodão.

[O Silêncio da Terra Sombria, 1993]

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Condor Popular & Ciclone


Estas capas pertencem a duas revistas de aventuras (livros aos quadradinhos) muito populares quando eu era aluno da escola primária. Estas revistas são clones uma da outra. Não sei se ambas eram editadas pelas Agência Portuguesa de Revistas, ou se alguma teria outro editor. O que as marca é uma concepção, absolutamente idêntica, onde o preto e o branco das figuras se combina com uma outra cor (rosa, verde, azul, cinzento, laranja, etc.), que vai variando de número para número. Tanto quanto recordo, as histórias eram bastante simples e o número de páginas relativamente diminuto, trinta e duas. Uma leitura popular, a preços absolutamente populares. Estes número custavam 1$20, no Continente, e 1$50, no Ultramar. E custaram assim durante muitos anos. Tempo em que a inflação era coisa desconhecida. Lembro-me de "cravar" uma ao meu pai cada vez que ia com ele ao café. Jornal, para ele. Ciclone ou Condor, para mim. Como se prova, os alicerces da minha cultura são mesmo bastante baixos... (averomundo, 2007/08/12)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O prazer da multiplicidade

Valero Iriarte - Don Quijote armado caballero

Há dias, numa entrevista à Antena 2, o escritor espanhol Juan Goytisolo, a propósito do seu afastamento ideológico dos nacionalismos, tornava sua a perspectiva de Carlos Fuentes e afirmava pertencer à pátria cervantina. Eis uma pátria digna de se pertencer. Acrescentava, a dado momento, que tinha lido várias vezes o D. Quixote e, em todas elas, tinha encontrado uma obra nova. Ser cidadão da pátria cervantina significa então escrever de tal maneira que o leitor, cada vez que lê uma certa obra, descobre que está num novo território, com novas instituições, novas acções e novas personagens. Esta ideia define como ideal regulador da obra de arte o palimpsesto. Não porque a obra esteja escrita num pergaminho várias vezes raspado para reutilização, mas porque ela contém, em potência, uma multiplicidade de sentidos e de mundos. Assim, a arte - o romance, por exemplo - não é a produção de um sentido a partir de determinados materiais, mas o artifício de criar um potencial de sentidos, talvez infinito, a serem descobertos e configurados pelos leitores. Sob a aparência de uma unidade de sentido e acção, a obra de arte romanesca oferece ao leitor o prazer infinito da multiplicidade, no qual o mesmo leitor, se a tomar como um espelho, pode encontrar o prazer de se descobrir, também ele, como múltiplo, o prazer da sua própria multiplicidade.

domingo, 17 de janeiro de 2016

A nossa herança

Anónimo românico - Historia de Caín y Abel

Há duas narrativas simbólicas que, na nossa cultura, são essenciais para compreender a condição humana. Essas narrativas estão longe se nos darem uma visão optimista da nossa condição actual. Não é que neguem em absoluto ao homem a possibilidade de uma vida segundo o bem, mas não aqui e agora. Trata-se do mito da queda de Adão e Eva e da Alegoria da Caverna, de Platão. Com o mito da queda ficamos a saber que não vivemos no paraíso. O lugar que nos cabe é o da dor, do sofrimento, da finitude e da morte. Mesmo os prazeres se inscrevem nesse horizonte sombrio para onde fomos relegados após a desobediência dos nossos pais ancestrais. A história de Abel e Caim conclui essa visão pessimista sobre a nossa existência no mundo. Na Alegoria da Caverna, ficamos a saber que somos prisioneiros e, fundamentalmente, ignorantes. Mesmo que um ou outro dos reclusos se evada e descubra a luz da verdade e do bem, a multidão dos homens que vivem na caverna jamais compreenderá o que ele tem para dizer. De certa maneira, e fundindo as duas narrativas, podemos dizer que Adão e Eva, ao serem expulsos do paraíso, foram encerrados na caverna platónica, que não é outra coisa senão o mundo que habitamos. O que estas narrativas põem a nu é a ilusão de que o mundo que habitamos seja o lugar onde o bem e a verdade se realizam de forma absoluta. Recomendam, antes, a humildade tanto sobre os objectivos dos nossos actos como sobre o valor da nossas crenças. Na verdade, não deixamos de ser os herdeiros dos que foram expulsos do paraíso e encerrados na caverna.

sábado, 16 de janeiro de 2016

Livro do Entardecer (40) entardecer

Vincent Van Gogh - Paisagem ao entardecer (1885)

40. entardecer

não sei se o caminho é este
onde canto no silêncio
e oiço a voz obscura da terra
a zunir num coro de cigarras
se é verão e transpiro de cansaço

não sei a porta por onde entrarás
vestida de vazio e mágoa
trazendo um vinho já amargo
a pele gasta pelo tempo
que um dia te deixou ser rapariga

nada sei de caminhos e portas
nem de vozes a cantar em silêncio
sento-me na minha cadeira
é tudo o que tenho para esperar
entre a manhã e o entardecer

(averomundo, 2010/02/16)

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Exames e pessimismo antropológico

Edvard Munch - Atardecer en el Paseo Karl Johann (1892)

Ontem, aqui, argumentou-se a favor dos exames a partir da sua função cultural, numa perspectiva que se poderia dizer etnológica. Hoje recupero um texto escrito em 2007, no meu antigo blogue averomundo. Tem pelo menos a virtude de mostrar que sou favorável aos exames desde há muito. A perspectiva adoptada no texto é diferente da de ontem e pode ser vista como complementar. Reflecte sobre o exame como mecanismo de vigilância de produção de confiança social. Segue o texto de 2007.

Qual o fundamento social para a existência de exames? Não é testar os conhecimentos ou avaliar os alunos. Observe-se o que acontece num exame. O dado social mais importante de um exame não é a prova, nem a sua resolução, nem os seus resultados, mas a vigilância. Um conjunto de alunos é submetido a uma prova vigiada por dois professores. Porquê? Porque é necessário vigiar as aprendizagens.

A sociedade não confia no ensino dos professores e na sua avaliação e precisa de a vigiar através de exames nacionais. Por outro lado, também não confia nos alunos. Por isso, estes, em exame, são vigiados por dois professores, que não apenas vigiam os alunos, mas que se vigiam entre si, não vá algum tergiversar. A coisa não fica por aqui. Os professores na vigilância são vigiados por funcionários, não deite um deles a correr escola fora. Há também a presença vigilante de outros professores que coordenam o processo e a própria direcção das escolas encontra-se em estado vígil. A inspecção, vigilante, inspecciona as vigilâncias.

Por fim, o Ministério da Educação, benévolo, está vigilante relativamente ao processo das vigilâncias. Nas traseiras de todo este processo de vigilância, encontra-se a ameaça de punição (vigiar e punir, Foucault dixit). Numa democracia, supõe-se que os eleitores vigiarão e estarão vigilantes relativamente ao poder político, incluindo aí o Ministério da Educação.

O fundamento social para a existência dos exames é a desconfiança no próximo. Os exames existem, como outros mecanismos sociais, porque a confiança entre os indivíduos que fazem parte de uma comunidade é muito frágil. A fragilidade da confiança, isto é, da fé (fiança) conjunta, leva à criação de mecanismos que evitem a suspeita e certifiquem os resultados, mostrando que eles são dignos de fé. Os exames são uma forma de aumentar a confiança social no trabalho dos professores e das escolas.

Abolir os exames – como se fez e alguns pretendem consumar esse facto, acabando com todos os exames – seria fazer fé no próximo. A causa é nobre, mas sofre de um optimismo antropológico não confirmado pela realidade. Os exames públicos são, pelo contrário, a expressão de um pessimismo antropológico. O homem não é um ser fiável e do qual os outros se possam fiar. Se isto estiver claro na nossa cabeça, percebemos a realidade dos exames, porque são necessários e porque deverão ser alargados a todos os ciclos. Servem para criar confiança no sistema.

Um estado de direito funciona segundo a lei e presume que todos são inocentes até prova em contrário. Contudo, esta confiança está assente num fundamento negativo: o da desconfiança geral entre os homens. A expressão «presunção de inocência» é o mais poderoso revelador desse fundamento negativo e, como os exames, uma forma de pessimismo antropológico. Se este pessimismo antropológico tivesse sido dominante nos últimos trinta anos, ter-se-iam evitado muitos disparates e a educação dos portugueses teria outras colorações e apresentaria outro aspecto. (averomundo, 2007/06/21)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Exames e ritos de passagem

Masai girls undergoing their Rites of Passage in Kenya

No debate em curso na esfera pública sobre a abolição dos exames dos 1.º e 2.º ciclos têm sido esgrimidos argumentos de diversas ordens, pedagógica, psicológica, social e política. Há um aspecto, mais fundamental, que, todavia, tem sido deixado de lado, o qual poderia ser denominado como aspecto antropológico. A questão pode ser colocada da seguinte forma: o que significam os exames no âmbito de uma cultura como a nossa? A resposta funda-se num conceito do antropólogo francês Arnold Van Gennep (1873 – 1957). Os exame são ritos de passagem. Os ritos de passagem são ficções colectivas que têm por fim ordenar a natureza. Marcam uma alteração no estatuto da pessoa. Estes ritos de passagem permitem aos indivíduos, das sociedades tradicionais, estruturar a sua vida em etapas precisas, o que lhes possibilita dar sentido à sua existência e à sua condição mortal. São formas de tornar o mundo mais familiar e, por isso, menos ameaçador.

Os exames – em qualquer nível de escolaridade – têm estas características. São provas que marcam uma alteração do estatuto da pessoa. O indivíduo que passa por um rito de passagem torna-se, simbolicamente, outro. Ganha uma densidade que não possuía e adquire a consciência de ter enfrentado uma provação e de a ter ultrapassado. As sociedades modernas possuem no seu núcleo central o conhecimento. É este que permite ao homem sobreviver e dar sentido à sua própria existência. Não é de estranhar que os ritos de passagem na nossa sociedade tomem a figura de rituais, cujo núcleo é a submissão a provações cognitivas. Os exames são isto mesmo.

Aquilo que agora acontece de novo em Portugal, que é prática generalizada no mundo ocidental, o protelar da prestação de provas até ao início da juventude (9.º ano, final do ensino básico), diz-nos muito sobre o Ocidente. Na prática, a ruptura com a infância faz-se apenas já depois de a puberdade ter sido ultrapassada. Esta abolição dos ritos de passagem que assinalam o fim da infância (o exame do 4.º ano) e a dos ritos de passagem da puberdade (o exame do 6.º ano) tem uma clara leitura: uma recusa dos próprios adultos em ajudar as novas gerações a ultrapassarem a infância, protelando até uma idade tardia a ruptura com essa infância. Os adultos agem como se tivessem medo de que as crianças saiam da infância e se aprestem para lhes tomar o lugar.

Ser submetido a um rito de passagem – no nosso caso, a exames – não é uma ameaça à criança e ao jovem em idade da puberdade. Pelo contrário, é dar-lhe um sentido para as transformações físicas e espirituais pelas quais está a passar. Ele passou o exame e tornou-se outro. Ganhou uma nova identidade. Tornou-se também mais seguro de si e compreendeu que a vida é composta por etapas e por provas. A abolição dos exames no Ocidente – recordo que eles são os nossos ritos de passagem –, em vez de ajudar as novas gerações, torna-as menos capazes de dar um significado simbólico à existência, menos capazes de enfrentar obstáculos e de os superar. Na prática, infantiliza-as e torna-as menos aptas a enfrentar os ritos de passagem que vão ser decisivos na idade adulta. 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Uma triste campanha

Henri Matisse - The Sorrows of the King (1952)

Consta que vai haver eleições presidenciais. E este constar diz tudo sobre essas eleições. Uma triste campanha. Não sei quantas personalidades, mais ou menos exóticas - e todas elas têm o seu quê de exotismo -, percorrem o país para cumprir os mínimos exigidos a quem se candidata. Falta-lhes o fôlego, a emoção, a convicção. Aos cidadãos, falta-lhes a paciência. Há uma coisa, porém, que é preciso dizer sobre esta real desvalorização da eleição presidencial. Ela deve-se à esquerda. Esta, enredada em múltiplos e diferenciados cálculos partidários, esqueceu-se, depois da recusa de António Guterres, de encontrar um candidato sólido e com pretensões vencedoras. Trocou-o por um desfile de personalidades cuja função é fazer propaganda ao partido ou marcar a posição da facção. Julgo que Cristo não precisa de descer à terra para tudo ficar consumado à primeira volta. Mais uma vez, a esquerda entrega sem combate a presidência à direita. Depois não se queixe.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Livro do Entardecer (39) carnaval

José Gutiérrez Solana - Carnaval en un pueblo

39. carnaval

dançam dançam dançam
remadores do rio da morte
braços pernas ao vento
à chuva pesada e fria
dançam na melancolia
dançam no inverno
corpos a baloiçar
pendem do patíbulo
e a vida foge pelo mastro
de onde cristo algum
jamais ressuscitaria

(averomundo, 2010/02/15)

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A duplicidade em que vivemos

Jackson Pollock - White Light (1954)

Hoje assisti a uma conferência do físico Carlos Fiolhais sobre a história da evolução das concepções acerca da luz. Há neste tipo de acontecimento qualquer coisa que não deixa de me espantar. O espanto é gerado, em parte, pela confiança manifestada pelo conferencista no progresso da ciência. Diria que estava perante um digno herdeiro do iluminismo, de alguém que manifesta uma confiança na razão e na capacidade do homem em pôr problemas e de, através do esforço da razão, os resolver. Esta conferência, se tivesse acontecido nos anos 80, não me teria provocado o espanto que provocou hoje. O que terá acontecido de lá para cá? Fundamentalmente, o papel primordial da razão tem sido posto em causa nas últimas décadas. A emergência, no palco mundial dos fundamentalismos religiosos, veio desafiar as narrativas alicerçadas na confiança na razão.

Estava a assistir - com grande prazer, saliente-se - à performance  de Carlos Fiolhais e pensava, ao mesmo tempo, que muitos dos problemas que se colocam hoje em dia nascem de crenças sem qualquer alicerce racional, as quais desabaram na Europa e são hoje parte da sua vida. A Europa que se esforçou desde o século XVII para expulsar o mito da vida social, tornando-o um assunto da esfera privada, essa Europa que construiu um conjunto de instituições desencantadas, como muito bem o percebeu Max Weber, chega ao século XXI confrontada com narrativas que trazem consigo o mundo encantado, sob a forma de pesadelo, que tinha expulso por um trabalho laborioso de cinco séculos. E é esta duplicidade - a da afirmação da autonomia da razão e a da negação dessa mesma autonomia da razão - que não deixa de me espantar, de me dar que pensar.

domingo, 10 de janeiro de 2016

O bem que quero e o mal que faço

Edgar Jené - Sohn des Nordlichts (1949)


Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero, esse faço. (Paulo, Rom. 7:19)

Foi a psicanálise que tematizou a questão das feridas narcísicas. Com Copérnico - e a evolução posterior da astronomia - o homem descobriu que não está - nem é - o centro do universo. Darwin, por seu lado, torna claro que nenhum estatuto especial cabe ao ser humano, o qual é, como todos os outros seres vivos, o fruto da evolução das espécies. Por fim, a psicanálise sublinha que o homem nem sequer de si mesmo é senhor, que as suas razões, que parecem claras e transparentes, são, na verdade, obscuras, motivadas pelo inconsciente, que ele não controla ou sequer conhece.

Esta última ferida no narcisismo humano, a mais decisiva para a psicanálise, era já muito clara para Paulo de Tarso. A dilaceração da vontade, entre o bem que quer e o mal que pratica (induzida pela carne, que se pode aproximar do inconsciente freudiano), é a medida da nossa própria natureza. A fragilidade da nossa vontade é o sintoma e a prova da nossa finitude. A consciência dessa finitude deve, deste modo, cair sobre todas as nossas palavras e acções (e aqui há que seguir a lição de Austin e Searle: falar ainda é uma forma de agir), lançando sobre elas uma desconfiança generalizada. Quando, cheios de boa vontade, queremos derramar sobre o mundo palavras e acções boas, não será o mal (o interesse egoísta), que habita no nosso inconsciente ou na nossa carne, que estamos a espalhar? Que queremos, na verdade, espalhar?

sábado, 9 de janeiro de 2016

Escrever como máscara

René Magritte - The End of Contemplation (1927)

Escrever é ser outro. Mesmo na crónica de opinião, há uma alteridade radical entre o «eu que escreve» e a pessoa que empresta o seu nome ao «eu que escreve». Um «eu enquanto sujeito psicológico» é espontaneamente aquilo que é. O «eu que escreve» só o é por artifício. Os leitores, muitas vezes de forma ingénua, tendem a identificar os dois, mas isso não passa de um preconceito, talvez de uma forma rápida de resolver o enigma da escrita. O máximo que se pode dizer é que o «eu psicológico» cria o «eu que escreve» e que este, ao tomar a herança da escrita em suas mãos, umas vezes melhor, outras pior, cria os materiais escritos (crónicas, poemas, narrativas, filosofia, etc.). De certa forma, há sempre um certo escândalo na questão dos direitos de autor. Aquele que os pode reivindicar não é um verdadeiro autor e o verdadeiro autor (o eu escritor) não é uma pessoa e por isso não pode ter direitos.  O drama de tudo isto reside no seguinte paradoxo: aquele que escreve escreve para ser outro. Os leitores tendem porém a identificar, sem qualquer fissura, um e outro. Mas Ricardo Reis, Alberto Caeiro ou Álvaro de Campos não eram Fernando Pessoa. O próprio Fernando Pessoa não era Fernando Pessoa. (averomundo, 2007/07/08)

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Livro do Entardecer (38) nada sei

Juan Navarro Baldeweg - Letras (1998)

38. nada sei

nada sei desse nome soberano
que se ergue para a luz

nada sei do caminho de pedra
que rasga a planície

nada sei das grandes fogueiras
que junho traz no regaço

nada sei do nome do meu nome
que declina e desaparece

(averomundo, 2010/02/14)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

António Costa

Pierre Bonnard - La Chasse (1908)

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

Agora que os ânimos mais exaltados descobriram o ridículo em que navegavam, vale a pena tentar perceber o significado político das opções de António Costa, da troca da velha aliança com a direita por uma aliança à esquerda. A leitura mais simplista é dizer que o fez para não sair da vida política. Isto não é falso, mas é não entender tudo o que estava em jogo. Para além do futuro político de António Costa, o do Partido Socialista. Se o PS fizesse aquilo que a direita ou Francisco Assis pretendiam – apoiar um governo de PSD/CDS – o futuro do PS seria muito negro. Tornar-se-ia, a curto prazo, irrelevante no panorama político português.

António Costa revelou-se não apenas hábil na manobra política mas ainda um profundo conhecedor da realidade portuguesa, tanto da realidade das elites políticas como do espírito popular. Calculou que a sua esquerda não tinha outro remédio senão apoiar um governo seu, mesmo que não esteja especialmente entusiasmada com a experiência, como é o caso do PCP. Calculou que a direita e o Presidente da República, para além da indignação e da exaltação, só tinham de aceitar a nova configuração parlamentar e dar posse a um governo PS. Não temeu sequer que a direita conseguisse organizar uma fronda contra a sua solução. Na verdade, a fronda foi tentada, mas a sociedade não se comoveu por ver PSD e CDS postos fora da governação. Não estamos em tempo de Marias da Fonte.

Será esta opção eficaz para salvar o PS da irrelevância? No mínimo dá-lhe tempo. A situação política na Europa, da qual depende a nossa, é muito instável e imprevisível. Se a Europa persistir na imposição de uma austeridade extrema, o mais natural é António Costa deixar de ter espaço de manobra para manter o acordo com os partidos à sua esquerda. Estes, contudo, ficam com o ónus de o derrubarem, de abrirem o caminho para uma nova vitória da direita e, o que é uma real possibilidade, de verem uma parte do seu eleitorado votar PS.

Se a Europa tiver aprendido alguma coisa e se António Costa tiver o mesmo grau de habilidade política e de conhecimento dos actores europeus que teve no caso português, então é possível que o governo se mantenha até ao fim da legislatura. O que ganha o PS com isso? Evitar o seu desaparecimento como grande partido e, ao mesmo tempo, reforçar a possibilidade de acordos à esquerda, trazendo o BE e a CDU para a esfera da governação e da responsabilidade pelos destinos do país. Ao mesmo tempo o PS recentra a vida política. Por outro lado, os socialistas serão julgados por aquilo que o governo de António Costa fizer e não pela governação de José Sócrates. Não será pouco.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A patologia do poder


A Coreia do Norte fez constar que deflagrou uma bomba de hidrogénio. A ser verdade - e mesmo não o sendo -, o facto corrobora o que se escreveu ontem aqui sobre o caos actual, mas não é isso o que me interessa agora. O que me interessa é o carácter exemplar do regime norte-coreano. Dir-se-á que o regime é uma caricatura e, por isso, nada tem de exemplar. As caricaturas são, contudo, reveladores poderosos da realidade. Ao aumentar certos traços do real, elas tornam-nos claramente manifestos. O regime de Pyongyang, através da sua natureza caricatural, revela aquilo que está presente em todo o poder político. A imprevisibilidade, a arrogância, a insensatez, o desprezo pelos homens, o paternalismo, a tirania. Contra-argumentar-se-á que muitos regimes políticos não são como o regime norte-coreano. É verdade, mas em todos eles estão presentes os germes daquilo que se manifesta na Coreia do Norte. Os elementos patológicos não se manifestam porque são controlados internamente pelos cidadãos. Sempre que a cidadania é débil, a patologia do poder torna-se de imediato visível.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

O caos actual

Wassily Kandinsky - All Saints Picture (1911)

O mundo caótico de que fala Guterres, no Público, não é propriamente uma novidade. O carácter fluido, sem estrutura sólida, tinha-se já manifestado nas épocas que geraram as duas guerras mundiais. Estas são já a manifestação de uma aliança entre a desagregação de estruturas sociais e políticas e o desenvolvimento da técnica. É o poderio da técnica que dá uma tonalidade caótica à desagregação das estruturas políticas. O que agora se manifesta, de uma forma mais intensa, é ainda a mesma coisa. A sensação mais carregado de uma situação caótica, como se ela fosse quase uma pura novidade, deve-se à recordação de um mundo ordenado e estruturado pela Guerra Fria. Esta não apenas dividiu o mundo entre duas super-potências. Deu-lhe ordem e uma aparência de solidez. Caído o muro de Berlim, desagregado o poder da URSS, intensificada a III revolução tecnológica, a velha fluidez do mundo, que se manifestou no que precedeu as guerras de 1914-18 e de 1939-45, volta e volta na forma de caos. Um caos do qual não se vislumbra nenhum cosmos futuro.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Livro do Entardecer (37)

Pierre Auguste Renoir - Mulher jovem com véu (1875)

37. a que distância ficam

a que distância ficam
os teus olhos
se a noite cai
e tudo se vela
no fulgor das trevas
na luz da tempestade

(averomundo, 2010/02/10)

Da distância e da proximidade


A irrupção da paixão erótica anula, entre os amantes, aquilo que é a norma fundamental da vida entre os seres humanos, a distância. Dizer a outro que se ponha no seu lugar não é, em primeiro lugar, um culto da hierarquia. É um pedido para que não anule a justa distância que nos permite estar em segurança. Só depois vem o prazer da hierarquia. A distância é o elemento central das nossas vidas. Manter-se à distância, colocar o outro à distância. A necessidade da distância provém de um medo arcaico ligado à necessidade de sobrevivência. A proximidade de outro é sentida como uma ameaça e uma ameaça mortal. 

É o impulso erótico - que mistura desejo sexual e fascínio pela morte - que abre o caminho para o contacto, a proximidade, o desejo de tocar e de ser tocado, uma pulsão de fusão. Esta pulsão de fusão, todavia, tem a sua génese na distância e vive da distância. A consumação da aproximação e a iteração da proximidade acabam por dissolver a energia de Eros. Esta apenas subsiste se na própria aproximação se mantiver uma distância, num jogo tenso entre distância, aproximação, fusão e distanciamento. Um distanciamento que torne a velar o objecto da paixão, numa luta contra a revelação e o conhecimento. Se o conhecimento triunfa, a distância, aquela que afasta sem desejo de aproximação, instala-se. A vitória do conhecimento é sempre uma degradação do desejo e do fascínio pela morte, uma vitória na luta pela sobrevivência.

sábado, 2 de janeiro de 2016

Utopia, imaginação e razão

Hans Holbein, the Younger - Sir Thomas More (c.1527)

O Público assinala hoje os 500 anos da publicação de Utopia, de Thomas More. Anuncia que vai realizar uma série especial sobre velhas e novas utopias. Aguardemos. O texto renascentista de More é um daqueles que lançou uma longa sombra, cujos efeitos chegam aos nossos dias. Como já escrevi aqui, tenho uma difícil relação com as utopias. Não tanto enquanto género literário e como exercício da imaginação produtora. Não são o género literário que mais me motiva, mas não sinto por ele especial rejeição. O meu problema nasce com a transição da utopia da esfera da imaginação para a da razão política. Quando os homens, inflamados por uma imaginação transbordante, usam a razão para realizar politicamente a utopia que os abrasa, o resultado nunca é bonito de se ver.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2016

Da vida civilizada

Francisco de Goya y Lucientes - Cruel lástima!

Na sobrevivência cada qual é inimigo do outro, e quando medida por esse triunfo elementar (o de sobreviver), toda a dor é insignificante. (Elias Canetti, Massa e Poder)

A vida civilizada que, até aqui, nos tem sido dada a viver faz-nos esquecer, com demasiada facilidade, que a civilização não é um dado adquirido. A qualquer momento a queda no não civilizado é uma possibilidade que nunca deixa de assombrar a vida. A decisão fundamental - no sentido de um fundamento que escore o edifício da civilização - que pode afastar a queda na barbárie reside em evitar que a massa humana se aproxime perigosamente do limiar onde a luta pela sobrevivência é central. No fundamento de uma vida civilizada não está nem a educação nem a cultura, mas uma vida material que permita aos seres humanos afastarem do seu horizonte de preocupações a luta pela sobrevivência, essa luta onde qualquer dor é insignificante. Já que estamos a entrar num ano novo, seria bom que, Europa fora, não se esquecesse que aquilo que é ainda uma vida civilizada assenta no afastamento para longe desse fantasma, do retorno desse fantasma.