Iago Pericot - Máquina (1963)
Deve-se a Paulo Portas o baptismo da actual solução
governativa como geringonça. Com o
verbo fácil que o caracteriza, confiando no brilho da sua inteligência, mas
esquecendo que do outro lado não estavam propriamente idiotas, o ex-líder do
CDS decidiu fazer uma pilhéria e, entre prognósticos de catástrofes terríveis,
desvalorizar a solução dos adversários políticos que lhe tinham tomado o lugar. A graçola deve
ter saído espontaneamente da boca, pois ela teve um efeito completamente
contrário ao pretendido.
A direita ficou encantada com o achado e repetiu-o, e
repete-o, vezes sem conta quando fala da coligação parlamentar que suporta a
solução governativa. A esquerda reagiu à pilhéria com boa disposição e, em vez
de fazer de virgem ofendida, nessa altura não faltavam no país virgens
ofendidas, tomou aos ombros a designação, brincou com ela e fez-se à vida.
Aliás, fê-lo de forma bastante inteligente. Teve a intuição de que o valor
lexical da palavra e o valor de uso popular não eram os mesmos.
Lexicalmente, geringonça significa algo pouco sólido e que
se desfaz facilmente. Era nisto que Paulo Portas pensava. No entanto, quando
alguém diz que uma coisa é uma geringonça retira-lhe de imediato uma tonalidade
ameaçadora, capaz de destruir este mundo e o outro. No uso popular da
expressão, está presente a pouca solidez, mas, fundamentalmente, uma certa
leveza e ausência de ameaça. É algo com que se brinca e que não se teme. Ora o
grande risco que António Costa correu foi o do temor que poderia haver em levar
o BE e o PCP para a área da governação. A esquerda, ao aceitar a pilhéria de Portas,
resolveu o problema. A direita ainda tentou fazer uma fronda contra a solução
governativa, mas ficou a falar sozinha. Quem podia ter medo de uma geringonça?
É um mistério a direita continuar a usar o
termo para designar a actual solução governativa. Primeiro, porque continua a
oferecer uma imagem de leveza à esquerda e a retirar-lhe aquilo que supostamente teria de ameaçador. Depois, porque, passados dois anos,
toda a gente percebeu que a solução é sólida e construída com engenho pelos
diversos protagonistas. Há ali um grande trabalho de engenharia política, que
permitiu não só que o PS reocupasse o centro político, como o BE e o PCP
entrassem nesse espaço de moderação, expulsando de lá o PSD. Cada vez que Passos Coelho e os actores e
comentadores políticos de direita falam em geringonça estão a reforçar aquilo
que querem combater. A geringonça funciona para a direita como um véu lexical que não a
deixa ver a realidade.
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