Georges Malkine - Aniska (1955)
O Observador é um manancial ilimitado de actos falhados ou de dissonâncias cognitivas. Veja-se, por exemplo, o artigo do psiquiatra Pedro Afonso sobre a iniciativa legislativa do Bloco de Esquerda, mas também do governo (este mais moderado), sobre a possibilidade de permitir a mudança de sexo aos 16 anos. Quando se desloca o assunto da área política para a psiquiatria - eventualmente, para a ciência - falha-se de imediato a compreensão do que está em causa. Diz o articulista: Esta teoria (a ideologia de género) assenta na ideia radical de que os sexos masculinos e femininos não passam de uma construção mental, cabendo à pessoa escolher a sua própria identidade de género.
O que o pensamento conservador não compreende é que este tipo de posição deriva directamente do projecto que marca o Ocidente desde o Renascimento. É um projecto que começa por colocar o Homem no lugar de Deus e que evolui para a consideração desse Homem na sua singularidade e no poder da sua livre iniciativa. Tudo o que era visto como um dado de facto, o resultado da criação divina, passou a ser objecto sistemático de reforma e reconstrução por parte do Homem ou dos homens através da iniciativa dos indivíduos. As relações sociais deixaram de ser percebidas como imutáveis, mas objecto de continua reconstrução humana. A natureza é, desde há muito, uma construção, nem sempre domesticada, segundo projectos humanos.
É nesta lógica que se inscreve a reconstrução da identidade de género. O problema não tem nada a ver com a psiquiatria mas com o direito absoluto de cada um dispor da sua própria pessoa, desde que isso não interfira com terceiros. A ideologia que sustenta estas pretensões é o liberalismo e não outra. O Bloco de Esquerda, com a sua agenda ligada aos costumes, inscreve-se nessa tradição liberal, tendo sido em Portugal um destacado agente da liberalização da sociedade, de cumprimento do projecto da modernidade e do Iluminismo. A fluidificação da identidade sexual, para usar uma metáfora de Zygmunt Bauman, está de acordo com a natureza fluida do capitalismo actual. No fundo, o BE não faz mais do que pôr em prática o slogan de Milton Friedman: Liberdade para escolher. O mais curioso de tudo isto é que os nossos hiper-liberais temem os efeitos da autonomia dos indivíduos e os nossos iliberais tornam-se agentes contumazes da liberalização. Uma comédia de enganos.
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