quarta-feira, 10 de julho de 2019

A questão das quotas na entrada na Universidade

Narcisse-Virgile Díaz de la Peña, Gypsies in a Forest, 1851

O artigo de Maria de Fátima Bonifácio teve o condão de ocultar dois debates que o problema das quotas étnicas na entrada na universidade, digamos assim, colocam. Não que a autora do artigo não tenha uma posição, mas a fundamentação apresentada raia o preconceito racista e desencadeou um tremendo debate sobre o racismo presente na sociedade portuguesa, escondendo, inclusive, a posição da própria autora sobre o problema das quotas, secundarizando-o perante o debate racial.

Aceitando o campo em que Fátima Bonifácio se coloca para defender a sua posição, o da revolução francesa, o primeiro debate é o que se prende com a igualdade – que compõe com a liberdade e a fraternidade a tríade de valores republicanos nascidos em 1789. Esta igualdade tem sido interpretada pelo menos de três modos diferentes. A igualdade aritmética, aquilo a que se poderia chamar um igualitarismo. A igualdade formal perante a lei. A igualdade de oportunidades. Como, numa interpretação caridosa da argumentação dos defensores das quotas, estas são vistas não para assegurar o igualitarismo (embora seja essa interpretação feita por Fátima Bonifácio, num aparente recurso à falácia do espantalho) mas para desencadear a igualdade de oportunidades, o debate a fazer é entre as duas últimas concepções de igualdade.

O problema das cotas inscreve-se neste debate entre uma concepção meramente formal da igualdade perante a lei, excluindo a ideia de igualdade de oportunidades, e uma concepção que reconhece a existência de um lastro histórico e social de dominação que perverte a igualdade republicana. Segundo esta perspectiva, a igualdade perante a lei, para ser efectiva, precisaria de ser compensada através da igualdade de oportunidades, com o uso da discriminação positiva. Não é que não se possa discutir a tríade de valores republicanos e, em primeiro lugar, o da igualdade, inclusive perante a lei. Ao aceitar-se, porém, a revolução francesa, assim como os valores liberais do Iluminismo, o debate deverá centrar-se sobre estas duas formas de entender a igualdade republicana, não esquecendo, no entanto, que esta está conectada com a fraternidade. Este é um debate filosófico.

O segundo debate coloca-se apenas no caso de se aceitar uma interpretação da igualdade que inclui a igualdade de oportunidades, o que significa que se reconhece que a história produziu um conjunto de discriminações negativas a que urge contrapor certas formas de discriminação positiva. Este debate relaciona-se com dois problemas. O primeiro é o da eficácia das quotas para realizar o desiderato da igualdade de oportunidades. Esta discussão já não terá uma natureza principial e filosófica, mas empírica. Ela deve centrar-se na mobilização dos estudos empíricos sobre a aplicação de quotas, bem como na elaboração de modelos sociais que permitam fazer previsões controladas sobre o impacto das quotas na promoção da igualdade de oportunidades.

O segundo problema relativo à igualdade de oportunidades colocado pela proposta de quotas para negros e ciganos é o da restrição étnica. Haverá razões para pensar que o lastro histórico de dominação e de exclusão não se relaciona apenas com portugueses com estas origens étnicas, mas também com outros portugueses de origem europeia – digamos assim – que pertencem a linhagens familiares que há muito fazem parte dos escalões mais baixos da sociedade, que são, por motivos sociais, há muito excluídas, que não têm conseguido beneficiar das medidas existentes de promoção da igualdade de oportunidades. Este é um debate sobre a justiça e tem uma clara natureza política. A introdução deste problema complexifica a questão das quotas. No entanto, a sua elisão pode ter consequências políticas desastrosas.

O que todos ganharíamos é que o debate sobre estes problemas – pelo menos aquele que é feito por políticos e intelectuais, mesmo orgânicos – fosse sereno e fundamentado, que se recorresse a argumentações sólidas, que se evitassem argumentos falaciosos com o objectivo de incendiar os ânimos. Será bom que este problema não sirva para uma espécie de guerra civil, para um intensificar de pulsões que quebre o vínculo social e sirva para uma parte lançar uma fronda que ponha em causa o funcionamento das instituições democráticas, até porque, em democracia, os Mazarinos têm de se submeter, nos prazos previstos, ao veredicto popular.

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