domingo, 28 de julho de 2019

Manuel de Seabra, Os Exércitos de Paluzie


Publicado em 1982, primeiro em catalão e logo em português, o romance Os Exércitos de Paluzie, de Manuel de Seabra, é um testemunho da dupla filiação linguístico-literária do seu autor. Numa narrativa que se desenrola toda ela na Catalunha, não deixamos de encontrar nela marcas culturais tipicamente portuguesas, nomeadamente, no recurso a expressões populares que são reconhecidamente pertença do lado ocidental da península. Duas metáforas organizam a narrativa. A dos exércitos de Paluzie a partir dos quais se pensa a vida. A da linhagem, no caso a dos Roureda, quatro gerações em que os primogénitos se chamam todos Edmond, onde se questiona a identidade. A luta por uma identidade não deixa de ser um conjunto de manobras organizadas segundo uma estratégia tipicamente militar.

Para usar um expressão proveniente da teoria da narrativa, estamos perante uma obra autodiegética, onde o mais novo dos Edmond narra a sua própria história, para justificar as suas pretensões à Casa Velha, a moradia da família, desde o tempo do seu avô Edmond, e à afirmação da sua identidade não apenas de Edmond como de Roureda. Como o leitor perceberá ao longo da narrativa, nem as pretensões originais dos Roureda a serem o que pretendem, uma espécie de aristocratas, nem a própria pertença do último dos Edmond a esses Roureda são coisas claras e consolidadas. Uma sombra paira sobre o protagonista. A história que ele conta, a da família, ultrapassa em muito, o período da sua existência. Começa em 1893, quando o avô Edmond decide casar com Eduvigis, uma criada de servir, sopeira no dizer da irmã, que encontra por acaso na rua. As pretensões do jovem burguês são mal acolhidas por Edmond pai – bisavô do narrador –, que o deserda e corta o contacto tanto com o filho primogénito como com a sua descendência, dando-lhe apenas a Casa Velha e o pequena quantia de dinheiro como ajuda inicial. A generalidade da história da família chega ao último Edmond pela avó Eduvigis e pela mãe, nenhuma delas Roureda.

O gesto impulsivo do avô Edmond prenuncia uma família desequilibrada – teve dez filhos – e uma forma de gerir a vida não menos desequilibrada. As características do avô Edmond projectam-se no seu filho Edmond. É neste cenário decadente, inscrito na vida agitada da Catalunha desde os finais do século XIX, que no início dos anos 30 do século XX nasce o narrador e protagonista. Desde cedo começa a coleccionar e a brincar com soldados de cartolina produzidos pela casa Paluzie, os exércitos de Paluzie. É com eles que descobre a fragilidade dos homens, são soldados de papel em peanhas de papel, mas também descobre o pensamento estratégico dos grandes generais, cujas batalhas tenta emular no quarto azul que é o seu. É este treino militar que lhe permite sobreviver não apenas na escola, um lugar duro frequentados pelos filhos das classes populares, mas também na família, quando tudo aquilo que o suportava se desmorona e se vê em perigo pelas manobras de um tio. A vida é, deste modo, entendida como uma batalha, para a qual é necessário elaborar planos estratégicos que permitam assegurar a vitória sobre os inimigos.

Se esta afirmação de uma identidade que se preserva e persiste graças a uma estratégia modelada nos confrontos militares é o centro da narrativa, esta não deixa de suscitar outras abordagens. Os conflitos que atingem Espanha no tempo coberto pelo romance, nomeadamente, a Semana Trágica na Catalunha (1909) e a Guerra Civil espanhola de 1936-39, estão presentes, fornecendo um enquadramento histórico e, por vezes, motivações a algumas personagens secundárias. No entanto, não se está, nem de perto nem de longe, perante um romance comprometido politicamente. A História é vista como o pano de fundo onde a vida decorre, na sua banalidade quotidiana indiciada pela necessidade, pelo desejo e pela frustração. Por outro lado, toda a narrativa é marcada pela indistinção entre realidade e aparência, as quais, o autor, manipula para criar um ambiente de incerteza, como se a vida fosse uma mistura de verdade e mentira, não sendo nenhuma delas, contudo, sinais de uma valorização ou desvalorização morais. Ali não há bons e maus em sentido absoluto. Há pessoas que tentam sobreviver e adoptam as estratégias que melhor possam servir esse instinto de sobrevivência, mesmo que essas estratégias confundam realidade e aparência. No fundo, somos todos tão frágeis quanto os soldados de cartolina que formavam os exércitos vendidos pela casa Paluzie, e é com essa fragilidade que temos sobreviver e afirmar o quem e quem somos.

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