Publicada em 1940, O
Deserto dos Tártaros é a obra mais conhecido do escritor italiano Dino
Buzzati. O romance é uma reflexão sobre os equívocos presentes nas categorias
com que damos sentido e avaliamos a existência que nos cabe viver. Aquilo que
nos parece central e fruto do livre-arbítrio, isto é, das escolhas que cada um faz,
pode não ser mais que o resultado do acaso, de forças que nem de longe nem de
perto os indivíduos controlam, apesar de acalentarem essa ilusão. Uma leitura
concomitante poderá ser a de ver o romance de Buzzati como uma ilustração
literal da acção arbitrária da Fortuna, a deusa romana da sorte, mas também do
acaso, do destino e da esperança.
Giovanni Drogo é um jovem oficial colocado num recôndito
posto militar, o velho Forte Bastiani, numa zona de fronteira, aliás uma fronteira
mal definida. Para além dela estende-se o território inimigo, de onde poderia
vir um ataque à soberania. O Forte seria assim o posto avançado de defesa da
independência. A verdade, porém, é que à rude dureza da paisagem corresponde
uma efectiva ausência de ameaças. O inimigo não passa de uma miragem e a vida
ritualizada dos militares da velha e quase esquecida instituição militar não deixa
de ser uma encenação que se justifica apenas por si mesma. Drogo ao chegar
pensou que apenas ali estaria quatro meses, depois voltaria para a cidade, para
lugares mais prometedores para a sua carreira. No entanto, como outros, na
altura em que poderia partir, levado por uma inexplicável vontade, decidiu
permanecer no Forte. Tinha sido seduzido pelo lugar agreste e pela expectativa
que, contra toda a racionalidade, alimentava os que ali ficavam.
A vocação militar tem por finalidade a busca da glória. Essa
é a verdadeira causa que orienta os que abraçam a carreira das armas. A glória,
porém, só pode ser alcançada no campo de batalha. Para tal é necessário um
inimigo. A inexistência deste transforma a carreira militar num exercício
burocrático. As paradas, o render da guarda ou o respeito estrito pelas normas
de segurança, no Forte Bastiani, sem um inimigo no horizonte, não passam de
rituais cuja racionalidade militar contrasta com a sua aparente irracionalidade
social. Nem existe um inimigo que justifique a manutenção do forte, o qual é
mantido apenas pela inércia político-militar, nem os militares encontram ali a
possibilidade de realizarem o desiderato que os conduziu à vida castrense. A
deusa Fortuna não derramou os seus bens sobre o destino daqueles homens.
A vida de Drogo, como a dos outros oficiais que se rendem àquele
espaço, não passa de um exercício contínuo da esperança. A esperança que o
grande momento chegue e que, no campo de Marte, eles possam mostrar o seu valor
e dar assim sentido à existência. O que o romance torna manifesto, porém, é uma
visão que contrasta decisivamente com a do mundo burguês-liberal, onde a
iniciativa dos indivíduos é condição necessária para a sua auto-realização. A
riqueza depende, pelo menos em parte, da capacidade do indivíduo gerir a sua
existência e a da tenacidade com que enfrenta os obstáculos. A glória militar,
pode depender da coragem individual, mas muito raramente da iniciativa pessoal.
Nenhum indivíduo, por si, declara uma guerra ou inventa um inimigo para
combater. A iniciativa individual é essencial na casta empresarial, mas, no
caso militar, é apenas uma virtude que se deve subordinar a outras, como a rígida
disciplina, a capacidade de obediência e até a alienação da sua opinião para
cumprir os desígnios dos que lhe são superiores na cadeia hierárquica.
Neste caso, por maior que seja o desejo da glória e mais tenaz
a vontade do indivíduo para a atingir, ela depende de circunstâncias que ele
não pode controlar. A vida pode tornar-se então uma longa espera, o exercício
de uma expectativa que nunca se realiza, pois a deusa, na sua cegueira, não a
destinou. O sentido da vida não está então naquilo que haveria a realizar e que
resgataria o indivíduo da banalidade da vida quotidiana, mas nessa mesma
banalidade, vivida de forma ritual e burocrática, cumprindo uma função que em
momento algum mostrou ter um qualquer interesse social que conduzisse ao
reconhecimento por parte dos outros. Uma vida incógnita, a que não caberá já
não digo o tributo de uma Odisseia mas a de uma simples notícia de jornal.
Porquê? Porque não chegou a hora, porque a Fortuna foi avara, porque a realidade
não depende da vontade do indivíduo. O
Deserto dos Tártaros não deixa de ser, num mundo onde a virtude burguesa se
tornou central, um tributo aos que, ao arrepio das suas ambições, sustentam
disciplinadamente as instituições da comunidade, mesmo quando a Fortuna lhes
volta costas.
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