Traduzido a partir do norueguês, para a Cavalo de Ferro, por João Reis, Garman
& Worse - Um Romance Norueguês (1880) foi a obra de estreia de
Alexander Kielland (1849-1806). Considerado hoje em dia uma obra-prima do naturalismo
europeu, o romance de Kielland foi uma fonte de inspiração de uma outra
obra-prima da literatura europeia, Os
Buddenbrook, de Thomas Mann. A narrativa gira em torno da família Garman,
proprietária da Garman & Worse, uma empresa da marinha mercante. O autor
utiliza a família – neste caso uma família da alta burguesia norueguesa – para
perscrutar as metamorfoses do tempo que estão na base do conflito entre
tradição e modernidade.
Do ponto de vista empresarial, o conflito entre tradição e
modernidade centra-se na opção do cônsul Christian Frederick Garman construir
um novo e grande navio da marinha mercante ainda como um veleiro, ao contrário
do pretendido pelo filho mais velho, que achava a opção desadequada num momento
em que os navios a vapor seriam a solução aberta ao futuro. O conflito, que
nunca é intenso devido à autoridade paternal, é marcado por duas orientações
temporais. A do cônsul voltada para o passado. Com o novo veleiro pretende
homenagear o pai, o criador do império dos Garman, cujo nome será dado ao novo
barco. O filho, porém, é movido pelo futuro, pela atracção pelo desenvolvimento
tecnológico que, na época, era visto como uma modalidade do progresso que
deveria conduzir a humanidade à sua redenção.
Esta diferença entre filho e pai não é a única linha
importante na narrativa. Kielland, num romance relativamente breve (pouco mais
de 220 páginas na tradução portuguesa), consegue estruturar um conjunto
diversificado de histórias, tendo sempre como elemento central a família
Garman. Conta-nos a vida do Richard, irmão de Christian Frederick, e da sua
filha Madeleine, a dos três filhos do cônsul, bem como dos elementos da família
Worse que, em tempos estiveram ligados aos Garman na empresa, mas que, ainda no
tempo do fundador, venderam a sua parte, criando um novo negócio. Uma parte da obra
é dedicada ao jovem Worse e à sua mãe viúva, que no momento da viuvez descobriu
que a família estava falida.
Através destas personagens é-se levado a uma visão da
sociedade norueguesa da época, ao peso que a Igreja reformada nela tinha, às
relações sociais entre uma alta-burguesia paternalista e aqueles que para ela
trabalhavam. É manifestada a evidente equivocidade dessas relações, marcadas
por dependência, fidelidade, gratidão mas também pelo ressentimento e pelo
conflito. Não um conflito de classe como nos épicos do realismo socialista, mas
de temperamentos. Por outro lado, a perspectiva sócio-económica não é a única a
iluminar a obra. Os costumes, as relações amorosas, os laços familiares são,
todos eles, elementos fundamentais no romance de Kielland. Algumas personagens
têm tratamentos psicológicos densos, onde se percebe que o naturalismo do autor
está para além das características que tipificam o naturalismo literário, marcado
pelo positivismo filosófico e as suas correspondências literárias.
Mais que o retrato de patologias e degenerescências
dissecadas à maneira do método científico, prática literária à qual se associa
muitas vezes o naturalismo, encontramos tendências sociais em metamorfose, como
a emancipação da mulher, a qual, na personagem de Rachel Garman, filha do
cônsul, deixa o lugar tradicional no lar para entrar, contra a vontade do
próprio pai mas com o apoio do futuro marido, no mundo dos negócios. Estas
transformações sociais estão ligadas não a uma reprodução mecânica do meio e da
própria hereditariedade, mas a características psicológicas próprias que conferem
identidade e diferenciação às personagens. É na afirmação de identidades
diferenciadas, e não apenas na dimensão social, que a tensão entre tradição e
modernidade ganha corpo e se afirma, como se a diferença entre conservadores e
liberais fosse uma questão de carácter.
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