O romance Filhos da
Época, de Knut Hamsun, pode considerar-se como o segundo momento de uma
trilogia romanesca, cujo desígnio é a crítica da modernidade ou, melhor, dos
processos de modernização. O primeiro romance dessa trilogia informal é Os
Frutos da Terra e o terceiro, Segelfoss,
de que não há tradução portuguesa, mas que foi traduzido em França como La Ville de Segelfoss. A versão
portuguesa de Filhos da Época data de
1949, da responsabilidade da Editorial Minerva. Não é claro que esta versão
seja uma tradução directa do norueguês. Provavelmente, será uma versão feita a
partir da tradução francesa de 1944, mas isso não está especificado no livro.
Seja como for, quem conhece o universo romanesco de Hamsun não ficará decepcionado
com esta versão.
O conflito de Hamsun com os tempos modernos, neste romance,
desenrola-se em torno do domínio de Segelfoss, uma grande propriedade nas
terras do norte da Noruega, na Nortelândia. Duas personagens, em aparente
cordialidade, são o centro dessa disputa entre o mundo que vem do passado e
aquele que se projecta para o futuro. De um lado, o senhor do domínio, o tenente
Willatz Holmsen, o terceiro proprietário do domínio, que possui o mesmo nome
que o pai e o avô, o fundador da linhagem. Do outro, Tobias Holmengraa, um
homem de negócios que percorreu o mundo e que se instala em Segelfoss. O
primeiro representa uma tradição instalada. O segundo, é o representante dos
novos tempos, daqueles que estão abertos ao futuro, o futuro trazido pela
técnica.
O curioso é que a origem dos Holmsen não terá sido muito
diferente da de Holmengraa. Como somos informados logo no início da obra, o
proprietário original e criador do domínio era “um sujeito gordo e avarento,
que fora criado de servir. Comprara fazenda após fazenda, na freguesia, e
acabara por formar o «bem». Por fim, constituíra também uma grande empresa de
comércio e cabotagem; montara a fábrica de telha, a azenha e a serração”. O
espírito de iniciativa é o motor de arranque desta família que, à terceira
geração, tinha já uma clara virtude aristocrática, uma visão do mundo e dos
negócios que se afastara drasticamente da do avô. O tenente Holmsen era um
grande senhor, generoso e, obviamente, a caminho da ruína total.
Tobias Holmengraa, por seu lado, é um homem polido pelo
contacto com o mundo, nunca hostiliza os senhores de Segelfoss, demonstrando,
em todas as ocasiões, o respeito do parvenu
perante uma linhagem antiga. Tem uma forte inclinação amorosa por Adelheid,
a mulher alemã do tenente, a que ela se terá de alguma forma furtado. Contrariamente
ao avô Holmsen, mostra-se muito pouco avarento. A sua forma de agir centra-se
na sedução e no cortejo da grandeza que são a marca dos senhores do domínio,
bem como na generosidade com que usa o dinheiro. Lentamente, vai comprando
partes significativas da propriedade e, quando a vida do tenente declina, o
domínio está todo ele empenhado a Holmengraa. Desde o início do romance, percebe-se
que o espaço é o elemento central desta disputa surda, como se todo o poder
devesse estar radicado na terra.
A compreensão do conflito, porém, não resulta de uma
oposição entre uma velha aristocracia e uma nova burguesia ascendente. Os
traços senhoriais dos Holmsen são recentes. A iniciativa é tão característica
do primeiro Holmsen quanto de Holmengraa. O que os distingue será
fundamentalmente a questão da técnica. A iniciativa do primeiro senhor do
domínio de Segelfoss leva-o a um conjunto de empreendimentos onde a técnica
usada não representa um corte com o mistério da natureza. Estamos perante
tecnologias que se poderiam dizer pré-científicas, fruto de longas tradições
feitas de experiência artesanal. O mistério da natureza é o lugar onde o homem
se abriga e desenrola a sua vida em comunhão com a Terra. Holmengraa pertence
já a outro mundo. A sua iniciativa não é inócua para os homens. As tecnologias –
onde se inclui a tecnologia de gestão – a que vai recorrer acabarão por fazer
desabar o velho mundo social que se organizara em torno do domínio dos Holmsen.
Aparentemente, Holmengraa perde, pois o tenente, no momento final da vida,
consegue resgatar o domínio. No entanto, Hamsun não tem ilusões. Na economia da
narrativa, isso só é possível pelo recurso a um estratagema que vem da tragédia
de Eurípides, o recurso a uma espécie de Deus
ex machina, o qual é anunciado sub-repticiamente no início da obra e que,
no fim, permite desatar o nó em que o tenente Holmsen enredara a vida e o
domínio de Segelfoss.
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