José Manuel Espiga Pinto, Bailado espirais, 1977 (Gulbenkian) |
sexta-feira, 31 de maio de 2024
Nocturnos 119
segunda-feira, 27 de maio de 2024
Ensaio sobre a luz (118)
Luís Noronha da Costa, sem título, 1973 (Gulbenkian) |
sábado, 25 de maio de 2024
Poemas fluviais 3
e
nos cabelos das mulheres
suspendem-se
as folhas
gastas
pelo o Outono,
o
pântano de cinza ao entardecer.
O
rio era mundo exíguo,
preso
entre quintais,
a
roupa pendurada no vento,
a
voz arrastada pelas pedras.
Nas
tardes de sábado,
era
um tanque,
a
água pelas coxas,
as
mulheres abertas
na
leveza da corrente.
Na
placenta aquática,
gerava-se
um mundo de rosas
tecidas
no azedume do barro,
uivos
desfolhados
na
negra nave da noite.
Quando
era o tempo dos barcos,
a
água crescia, um cristal
ondulado
pelo sopro do vidreiro.
As
gerações sucediam-se,
cantando
canções
à
luz do dia,
presas
na sombra
dos
anos que passam.
Sobre
a voragem do rio,
um
véu de abandono.
A
água cobriu-se de espasmos
e
o azul do céu é um fogo
ateado
no umbral
de
onde escorre, severo,
o
segredo da escuridão.
Junho de 1993
[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela
quinta-feira, 23 de maio de 2024
Beatitudes (69) Apanha da azeitona
Júlio Resende, Apanha da azeitona, 1951 (Gulbenkian) |
terça-feira, 21 de maio de 2024
Cadernos do esquecimento 54 Árvores
Jorge Guerra, Les Arbres, 1982 (Gulbenkian) |
domingo, 19 de maio de 2024
Friedrich de la Motte Fouqué, Ondina
A publicação de Ondina data de 1811. Trata-se de um romance do escritor alemão Friedrich de la Motte Fouqué (1777-1843). Na verdade, é uma espécie de conto de fadas, cuja heroína é um espírito elementar das águas, uma ninfa. É também a história de um triângulo amoroso, passada num tempo indeterminado, mas cujos indícios narrativos parecem apontar para a Idade Média, esse tempo em que havia cavaleiros que disputavam torneios, como Huldbrand, outra das personagens principais da história, e poderosos duques que detinham o poder em certas áreas. O autor insere-se no romantismo e este conto de fadas tem, claramente, motivações românticas. A obra teve múltiplas adaptações para ópera, de onde se podem destacar as de E. T. A. Hofmann, Piotr Tchaikovsky, Antonín Dvořák e Sergei Prokifiev. Contudo, a influência desta obra de La Motte Fouqué não se fica pela ópera. Música erudita, bailado, cinema, literatura, pintura e escultura são outras áreas em que diferentes artistas trabalharam sobre a história de Ondina.
<O primeiro grande tema da obra é a conquista da alma. A inspiração provém, talvez indirectamente, do ocultista Paracelso. Este afirmara, no Livros sobre as ninfas, que as ondinas poderiam ganhar uma alma imortal se se casassem com um ser humano. A questão, porém, pode ser mais do que uma história maravilhosa, onde se cruzam seres de mundos diferentes, como é o caso. É possível fazer uma leitura do romance como uma ilustração de um processo tipicamente humano. No homem, mais do que dada, a alma deveria ser conquistada e conquistada através do amor. Não é o cavaleiro Huldbrand, com quem Ondina casa, nem a rival e amiga de Ondina, Bertalda, que são os arquétipos humanos, mas a ninfa, o espírito das águas. Como ela, todos os seres humanos provêm desse mundo elementar das águas e, ao nascer, abandonam a existência intra-uterina e são lançados no mundo para conquistarem uma alma imortal. Esta leitura do romance, permite contrastar a visão pagã da alma e a visão cristã, na qual a alma imortal é dada, mas precisa de ser salva. De um lado, há uma alma que pode alcançar ou a beatitude ou o castigo, ambos eternos. No outro, a imortalidade da alma é uma conquista a realizar. É plausível pensar que os antigos romances de cavalaria tratavam, através de aventuras alegóricas, essa conquista interior de uma alma que disporia o indivíduo para a imortalidade.
<O segundo grande tema da obra está relacionado com a natureza do compromisso amoroso. O casamento de Huldbrand com Ondina não era apenas uma modalidade de compromisso que fornecia a esta a possibilidade de conquistar uma alma imortal. Trazia para o cavaleiro um perigo mortal. A fidelidade está ligada a um pacto que não poderia ser dissolvido. A trama romanesca vai girar em torno de um triângulo amoroso. Huldbrand é impelido para o lugar onde encontra Ondina pelos desejos de uma bela dama, filha adoptiva de uns duques, Bertalda. Ao deparar com a ninfa, apaixona-se por esta e casa com ela. Quando retorna casado, a figura de Bertalda não desaparece. Pelo contrário, acompanha o casal, tornando-se amiga da rival. Ondina tenta evitar que o mundo elementar interfira na sua vida e na do marido, que se vai deixando reconquistar por Bertalda. É um difícil equilíbrio entre as paixões amorosas e os deveres de fidelidade, tudo isso mediado pela presença do mundo elementar e de um dos seus representantes, um espírito das águas, tio de Ondina, que não vê com bons olhos a atracção entre Huldbrand e Bertalda, estando sempre disposto a vingar a sobrinha. Quando Huldbrand, conhecedor já de que Ondina não seria humana, a repudia, ela volta para o seu mundo, mas a partir daí o cavaleiro corre um grande e decisivo risco, se casar com Bertalda, sem que Ondina tenha morrido.
Este conto maravilhoso é uma exploração romanesca da condição humana, uma viagem à sua constituição, aos elementos que fazem de um ser vindo do mundo líquido intra-uterino um ser humano, com uma alma imortal, isto é, com um horizonte existencial que está para além da mortalidade do animal humano. Esta exploração simbólica da ontologia humana está intimamente relacionada com a questionação do amor, com a análise poética dos laços fundamentais que ligam dois seres, os quais, ao casarem, não estabelecem apenas um pacto civil, um contrato para partilha da vida e dos prazeres eróticos, que, reciprocamente, marido e mulher permitirão ao cônjuge. O casamento é uma alteração ontológica daqueles que se casam, os quais, na verdade, se devem fundir e ser apenas um. A infidelidade não é uma mera quebra de um contrato, mas uma dissolução existencial do ser que tinha emergido do casamento. E aqui, a obra de La Motte Fouqué desagua na torrente romanesca ocidental em que o amor e a morte surgem intimamente ligados.
sexta-feira, 17 de maio de 2024
O desafio à ordem liberal
Assistimos, nos dias de hoje, ao maior desafio que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, foi colocado à cosmovisão liberal. Esta visão do mundo não diz respeito apenas à economia. Ela é, fundamentalmente, uma perspectiva assente nos direitos individuais e em regimes pluralistas. A ordem liberal é aquela em que a liberdade individual é o fundamento da vida em sociedade. Esta visão é uma coisa recente na história da humanidade. Foi-se estruturando, lentamente, na Europa e na América, a partir dos séculos XVII e XVIII. Enfrentou, no século XX, grandes desafios, entre eles as ideologias antiliberais do fascismo, do nazismo e do comunismo. A ordem liberal venceu as primeiras duas em 1945 (fim da Segunda Guerra Mundial) e a terceira em 1989 (queda do Muro de Berlim).
Como é que uma ordem internacional e uma visão do mundo triunfantes parecem decair de modo tão rápido? A Europa e a América liberais terão interiorizado a ideia de fim da história e pensado que o destino dos povos não livres seria o de acederem, com o tempo, a regimes assentes nos direitos indivíduos, na economia de mercado e em democracias representativas. Em 1979, a revolução iraniana fora um aviso que não foi lido no que tinha de anunciador. Foram precisos vinte anos e o ataque às Torres Gémeas para se começar a vislumbrar que a cosmovisão liberal estava sob ataque. A partir daí, foi nascendo uma coligação de potências pouco interessadas nos direitos individuais e na democracia representativa. Com uma novidade. A principal potência despótica não é a de uma economia atrasada, apenas preocupada com a dimensão militar. A China é uma grande potência económica e tecnológica, capaz de fazer frente ao mundo ocidental a todos os níveis.
Ao mesmo tempo que a coligação dos
regimes despóticos enfrenta os regimes liberais na arena internacional, no
interior das democracias, explorando a liberdade que aí reina, afirmam-se
movimentos que, ideologicamente, estão muito mais próximas das potências
despóticas do que da cosmovisão liberal. Esta está a ser desafiada não apenas
na dimensão geopolítica, onde perde continuamente influência, mas também no
interior dos países democráticos pelos partidos e movimentos populistas. A
confusão em que parece que vivemos não é outra coisa senão a guerra de uma
muito ampla coligação de potências e movimentos contra as liberdades
individuais e a visão liberal do mundo e das relações sociais. O que está em
jogo é a substituição de um modo de vida, o nosso, onde a liberdade é o bem
supremo, por outro onde a liberdade de cada um tem escasso ou nulo valor.
quarta-feira, 15 de maio de 2024
Poemas fluviais 2
Georgia O'keeffe, East river from The Shelton, 1928 |
No furúnculo
da luz, na leve sede da melancolia,
existe
um rio esquivo, peixes perdidos
no
lodo, a coincidência da terra e da água,
mundos
de erva erguidos no patíbulo do esquecimento.
Barcos
navegam sob a sombra das ramagens,
cavaleiros
sem nome, presos à caruma das horas,
ao
aroma de cinza de um Verão de palmeiras.
Quando
um rio é navegável, a cabeça dos homens
floresce
entre o pano, o linho suado,
o
triunfo da ardósia solta pelo fervor da ramagem.
Um
rio negro, a chama atiçada na alma,
estende
os dedos sobre os varais do carro,
devora
os canaviais, a vida posta sobre a morte.
Rãs
soltam-se, erguem castelos na água.
Um
peixe voraz assola a cortina da face,
o
vestido vermelho das raparigas de domingo.
Na
cave deste rio existem pontes,
uma
margem estreita sulcada pelas conchas
daquelas
mãos soltas e desertas,
presas
ao vazio de palavras despovoadas de som.
O
rio sobe pela cicatriz orgânica, toca-o a lava
rasgada
no rosto, ergue-o um sabor de cianeto
enrolado
na ambrósia do tempo. Em inúmeras vozes,
abre-se
o rio à palavra, ao labirinto de sangue e sílabas,
corroendo
as veias, as artérias caiadas no barro,
a
poeira fundeada na inóspita caverna da Primavera.
Maio de 1993
[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]
segunda-feira, 13 de maio de 2024
Fritz von Unruh, O Caminho do Sacrifício
Fritz von Unruh (1895-1970) pertencia a uma família da alta nobreza prussiana, ligada ao mundo militar. Filho de um general, também ele enveredou pela carreira das armas, que abandonou em 1911, para se dedicar à literatura, mas à qual regressou em 1914 com o desencadear da primeira grande guerra. O romance O Caminho do Sacrifício começa por ser uma obra encomendada pela hierarquia militar alemã, para exaltar o espírito heróico alemão numa crónica da batalha de Verdun, onde o autor participa. O romance tem duas versões, uma primeira, ainda no espírito da exaltação patriótica, e uma segunda, a definitiva publicada em 1919, portanto, já depois da guerra acabar. Esta versão é o resultado da evolução do autor, a partir de 1916, em direcção ao pacifismo, influenciado pelo espectáculo de uma guerra onde o combatente perde a sua individualidade e se funde na massa que se afoga no sangue provocado pelo desencontro entre o poder técnico das novas armas e as concepções estratégicas tradicionais. Em vez da exaltação patriótica das virtudes militares, está-se perante uma viagem para o calvário, para o lugar do sacrifício, embora sem que se percebe para que fins salvíficos servirá a expiação daqueles homens.
A orientação expressionista do romance afasta-o das visões realistas de muitos romances focados na primeira grande guerra. O pathos linguístico é uma estratégia – não poucas vezes lírica – para tornar manifesto o absurdo em que aqueles homens vivem. A obra está dividida em quatro partes: (1) A aproximação; (2) As trincheiras; (3) O assalto; (4) O sacrifício. Esta composição sugere uma tragédia em quatro actos, nos quais se assiste não apenas à aproximação e chegada ao centro do combate, mas também à metamorfoses da consciência dos combatentes. O romance desenha um caminho que vai desde o fervor patriótico que conduz os homens para a guerra até ao confronto com a morte e a ausência de significado dessa morte. É plausível pensar que essa metamorfose das consciências seja a do próprio autor, o seu caminho de militar patriótico que retorna ao serviço para ir combater, isto é, servir os desígnios da nação, até ao pacifista em que se torna, perante a experiência absurda da batalha de Verdun.
Na primeira parte, A aproximação, é possível ler o discurso de um capitão para um voluntário: À saúde de todos os voluntários! Tive sob o meu comando uma companhia de estudantes. A flor da juventude foi arrastada pela gloriosa tempestade do povo, como uma explosão de júbilo primaveril. Quando o nosso canto se extinguiu, os campos resplendiam de brancura e claridade. Enterrámos belos corpos. Mas sentíamos: o fruto maduro há-de vir um dia. Será grande a colheita! A poeticidade com que a morte é descrita, apesar da ironia que nela já se faz sentir, culmina com a expectativa de uma grande colheita, como se os mortos fossem sementes que, ao morrer, se multiplicariam sem fim. Ou quando um dos militares escreve para a mulher: Sabes o que este mar significa para o combatente? A ofensiva, pressentimo-la; mas e para lá da procela? Minha querida, adivinhas o que me atrai lá longe sob o sol benfazejo? Tu sabes. Oh, pudesse eu antes beijar a penugem dourada do meu bebé! A liberdade por que lutamos, há-de ele respirá-la. Deus abençoe o teu corpo; se for rapaz, cria-o livre e justo. Também aqui se desenha um princípio de esperança, a crença que haverá um além da guerra e uma a justiça que esta, supostamente, trará consigo.
A obra conta a história de um grupo de militares que são figuras arquetípicas de todos aqueles que fazem o caminho da retaguarda para a frente. A esperança move-os. O decorrer da acção, a chegada ao lugar de combate vai desligar a conexão ideológica entre esperança e guerra. A esperança inicial torna-se, na parte final, a constatação de que toda a guerra é um exercício niilista e não o lugar onde se manifesta o valor supremo da heroicidade: Quando a manhã pôs a nu o horror do campo de batalha, Fips ergueu-se do seu buraco de granada e mediu com o olhar a imensidade da mutilação: «Salvo o devido respeito pelos nossos veneráveis ideais, pergunto: porquê? Primeiro a aproximação furtiva, depois um alarido extraordinário e - passado tudo isso - que ficou? Praticamente nada, além de uma assembleia muda onde já ninguém tem voz. Porque tombastes? Por Verdun? Permiti-me então que vos faça uma declaração póstuma: teria preferido que Verdun caísse e não vós!» A ironia é agora tenebrosa, nela não existe qualquer esperança, nem se vê naqueles mortos a semente de uma grande colheita, nem são pintados como paladinos da liberdade. São apenas mortos que perderam a voz numa assembleia muda.
Fritz von Unruh rompe, no
seu romance, com o elo entre o sacrifício e a salvação. Fá-lo recorrendo a
estratégias narrativas diversas, pondo na boca das personagens discursos que
vão do lirismo poético à reflexão filosofante, por vezes, raiando a mística.
Esta combinação discursiva de poesia, filosofia e mística é o operador que permite
dar a ver a guerra na sua crueza, que a mostra não como uma grande cerimónia
religiosa de superação de si e de salvação, mas o exercício de potências
maléficas que se manifestam na ausência de sentido daqueles actos que levam a
morte a inimigos que, na verdade, nunca fizeram mal a quem os combate. O
horizonte do sacrifício na guerra, naquela guerra em particular, é a expiação
de um mal de que se desconhece a real origem, pura perdição do corpo entrega à
morte e da alma que perdeu a capacidade de encontrar sentido entre aquilo que
não o tinha.
sábado, 11 de maio de 2024
Nocturnos 118
Jonas Umbach, Nächtliche Szene in zwei Grotten mit antiken Sarkophagen |
quinta-feira, 9 de maio de 2024
O progresso moral da humanidade (17)
Max Beckmann, The Martyrdom, 1919 |
terça-feira, 7 de maio de 2024
Ensaio sobre a luz (117)
Edward Hopper, Squam Light, 1912 |
domingo, 5 de maio de 2024
Poemas fluviais 1
Domenico Quaglio, The Younger, View of Frankfurt/Main, 1831 |
Na
cidade, um rio de náuseas,
orquestra
de rãs, flores aquáticas,
jardim
de sombra na luz do coração.
Pulula
nas águas
uma
geração fortuita e sem dinastia,
uma
geração de água colorida,
presa
na sede de um vinho fatal.
Era
um mundo de barcos e âncoras,
uma
saraivada de remos
rompia
a superfície das águas.
Navegavam
homens inexoráveis,
roídos
pelo despeito,
a
dor da vida exígua,
o
enjoo célere da idade.
Pende
o rio sob o coração aprazado,
a
ânsia do astro,
aberto
e cru, ferido no peito.
Um
esgoto ébrio, a céu aberto,
inunda
as casas na brancura do dia,
a
memória dessas casas,
as
janelas pardas de cinza e poeira.
Nos
dias do equinócio,
vinha
o curso tenso do rio
desempatar
o dia e a noite,
abrir
a clareira do mundo,
eterna
revolução de luz e trevas.
É
um rio equinocial,
preso
na órbita elíptica da terra.
Perante
o suor do homem,
arvora
a água escura,
peixes
com travo químico,
o
olhar de hidrogénio adormecido,
promessas
de mercúrio
erguidas
na novidade mortal.
Rio
de letras, sílabas desaguadas
ferem
o coração da mão que escreve.
Rio
desamparado,
caído
do braço armado do livro.
Rio
sem margens,
suspenso
do voo do corvo,
sem
choupos, sem salgueiros,
sem
o verde dos campos no horizonte.
Rio
animal que se prende
à
luz desta língua e sobrevive,
abre-se
à voragem
da
noite suspensa sobre a cabeça.
É
um cutelo abrindo a paisagem,
desbrava
a cal e a pedra.
Adormece
na seda do estuário.
Abril de 1993
sexta-feira, 3 de maio de 2024
25 de Abril e 25 de Novembro
Por que razão a França só comemora o 14 de Julho, o início da Revolução Francesa, e não o 27 ou 28 de Julho? O que aconteceu a 27 ou 28 de Julho de tão importante? A 27 de Julho de 1794, Maximilien Robespierre foi preso e a 28, sem julgamento, foi executado. A França libertava-se do regime do Terror, um regime sangrento, onde muitos milhares de franceses (talvez entre 16 mil e 40 mil) foram guilhotinados. Os franceses, porém, não vêem a libertação no fim da deriva extremista da Revolução Francesa, mas no seu dia inaugural. Ora, em Portugal, sítio onde nada de semelhante se viveu, parece que uma parte das elites políticas de direita precisa do aconchego do 25 de Novembro para engolir a pílula amarga do 25 de Abril. Por que será?
Em França, tanto os jacobinos de Robespierre (os radicais) como os girondinos (os moderados) estiveram do lado da Revolução. Ambos se reconheciam no 14 de Julho. Em Portugal, em 1974, as coisas não foram assim. Com honrosas excepções, como as de Nuno Rodrigues dos Santos, Francisco Sá Carneiro, Francisco Pinto Balsemão e mais uns quantos velhos republicanos e ex-deputados da ala liberal da Assembleia Nacional ou, mais atrás, figuras como Cunha Leal, Jaime Cortesão, Azevedo Gomes e, por certo, Norton de Matos e Humberto Delgado, toda a direita estava com o regime caído a 25 de Abril. Não houve uma tradição consistente da direita democrática em oposição à ditadura. Quando se dá o 25 de Abril, a oposição era quase toda (mas não toda) de esquerda (com vários matizes), não havendo uma direita democrática organizada.
Parte da direita não se
reconhece no 25 de Abril, não por causa da deriva revolucionária e do
gonçalvismo, mas por aquilo que a data representa: o fim da ditadura e a
abertura do caminho para uma autêntica democracia representativa. O 25 de
Novembro é usado para tapar a grande decepção que foi o fim do regime do Estado
Novo. O mais estranho é que mesmo o 25 de Novembro foi arquitectado e dirigido
por militares e políticos de esquerda, a começar por Mário Soares e a acabar no
General Costa Gomes, para não falar em Vasco Lourenço ou Melo Antunes. O 25 de
Novembro teve dois derrotados. A extrema-esquerda militar e civil, mas também a
extrema-direita que queria aproveitar o momento para ilegalizar o PCP e outros
partidos à esquerda do PCP. O 25 de Novembro não pôs fim a nenhum regime de
Terror nem a nenhuma ditadura, que não existiam. Serviu para baixar a elevada
tensão política no país, eliminar a influência esquerdista nos militares e pôr
ordem nos quartéis. Foi uma correcção e um ajustamento, não uma libertação. Dia
da libertação só há um, o 25 de Abril e mais nenhum.
quarta-feira, 1 de maio de 2024
A clivagem política de hoje
Durante muito tempo a clivagem política nas democracias opunha a direita e a esquerda, em que a primeira combinava o conservadorismo nos costumes e o liberalismo na economia, enquanto a segunda era mais liberal nos costumes e mais interventora no domínio económico. Emergiu na Europa – e agora em Portugal – outra clivagem, a qual está a apagar a anterior. Não porque as diferenças entre direita e esquerda tenham desaparecido, mas porque estão a ser ultrapassadas por uma dicotomia muito mais dramática entre aqueles que defendem a democracia e os que a pretendem destruir como caminho para a instauração de um regime autoritário ou, pelo menos, de uma democracia iliberal, isto é, um regime que tem a aparência democrática, mas que subverte as regras da democracia.
A democracia liberal – ou democracia representativa – sempre teve inimigos, tanto à direita como à esquerda. As duas formas mais radicais de contestação da democracia – tanto à direita como à esquerda – coincidiam na negação das liberdades individuais, tanto políticas como civis. Vive-se, nos dias de hoje, um momento de ocaso das esquerdas iliberais e mesmo das esquerdas que, não rejeitando a democracia liberal, gostariam de a superar. A grande ameaça vem, actualmente, das direitas radicais e populistas. Estas, na sua retórica quotidiana, parecem – como é o caso português – estar em guerra com as esquerdas, mas isso é apenas uma máscara. Sabem perfeitamente que as esquerda não têm peso político substancial para ser alternativa de governo. Poderão ser um apoio a governos timidamente socialistas, mas não têm qualquer capacidade para impor uma agenda política que entre em conflito com a democracia liberal.
A retórica anticomunista e anti-socialista da direita radical e populista tem outros objectivos. Visa extremar a sociedade, dividindo-a em dois blocos inimigos, como passo decisivo para a atingir a sua meta, a destruição do regime democrático. O alvo é a democracia liberal e a cultura liberal. A grande divisão política, nos dias de hoje, é entre os que, à esquerda e à direita, defendem uma visão liberal e tolerante da política e da vida social, e aqueles que pretendem destruir essa visão, substituindo-a pelo autoritarismo político e por um feroz controlo social das vidas particulares. Em palavras mais simples, o jogo político trava-se entre os que defendem o regime democrático e aqueles que, aproveitando-se dele, trabalham a cada instante, através de uma falsificação continuada da realidade, para o destruir.