terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Michel de Montaigne, Deixe-se para amanhã

 

Podemos imaginar, com a ajuda de Kant, a razão como uma ilha rodeada por um mar encapelado onde são outras as regras que imperam. Regras sem regra, pode-se acrescentar. Esse mundo líquido é regido por uma deusa, a que os antigos deram o nome de Fortuna. Montaigne termina o ensaio Deixe-se para amanhã com um discreto louvor à divindade: “Mas, no fim de contas, é difícil no domínio das acções humanas estabelecer por meio da razão uma regra tão justa que exclua a Fortuna dos seus direitos sobre a matéria.”

O ensaio, contudo, não trata tanto desses direitos que a sorte dispõe sobre as nossas acções, mas do equilíbrio que deve existir entre a curiosidade excessiva e a procrastinação sem limites. A sua proposta veicula o meio-termo aristotélico. A curiosidade em excesso conduz à desmedida da impaciência; a preguiça extrema, ao desleixo de assuntos importantes.

A reflexão é desencadeada por uma meditação sobre as regras de etiqueta. Parte do exemplo, referido por Plutarco, de Rústico que, estando a escutar uma conferência do mesmo Plutarco, recebeu uma missiva do imperador, mas que não a abriu enquanto decorria a palestra. Montaigne sublinha que é de louvar a civilidade e a cortesia de Rústico. No entanto, contrapôs a essas virtudes uma eventual falta de sabedoria. Não poderia o adiamento da leitura da missiva imperial causar grandes danos?

O que Montaigne sublinha é um conflito na razão prática entre as regras de etiqueta e os imperativos políticos. Contudo, não esboça uma hierarquia entre eles. Perante a recepção de missivas, o que determina a sua imediata abertura ou o adiamento é a razão pelo qual se faz a opção. É aceitável que por um interesse de terceiros se adie a leitura da missiva, tal como o fez Rústico, mas já não o será se for por interesse próprio, como o são os casos do senhor Boutières, comandante de Turim, e de Árquias, tirano de Tebas.

Ora, Montaigne tem necessidade de fazer intervir a Fortuna porque acaba por não estabelecer uma clara e imperativa hierarquia entre os deveres políticos, regras de etiqueta e, mesmo, os prazeres pessoais, pois a primazia destes, antes criticada, acaba por ser absolvida pela introdução da Fortuna. É uma questão de sorte. Ora, se essa hierarquia fosse clara, seria possível estabelecer por meio da razão uma regra tão justa que excluísse a Fortuna dos seus direitos sobre uma parte, ainda que pequena, das acções humanas.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Rosalino como símbolo


A questão mais importante no estranho caso da nomeação de Hélder Rosalino para o novo cargo de Secretário-Geral do governo não é a do seu vencimento - embora, seja absurdo que um quadro tenha um vencimento superior ao do Primeiro-Ministro ou ao do Presidente da República - nem a estranha jigajoga da troca entre o Banco de Portugal e o governo, apimentada com o drama de saber quem paga o salário ao secretário-geral. 

O importante é o sinal que o governo dá ao escolher a figura de Hélder Rosalino, um destacado secretário de Estado do tempo de Passos Coelho, um dos homens mais zelosos na aplicação do programa não apenas da troika, mas daquilo que ia para além da troika. O malabarismo realizado por Montenegro para assegurar Hélder Rosalino torna claro que o actual governo só não faz o que fez o de Passos Coelho e de Paulo Portas porque não tem maioria.

Montenegro pensará: Quem quer saber  o passado do novo secretário-geral? Está convencido de que ninguém. Se a AD, nas próximas eleições, chegar a uma maioria absoluta, a velha política de Passos Coelho voltará em força, reforçada, caso seja necessário, pelo amparo ideológico da Iniciativa Liberal. Os símbolos são coisas que se devem levar a sério e a contratação de Rosalino é simbólica.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Ensaio sobre a luz (125)

Lucien Coutaud, Bientôt le crépuscule, 1964

Deixemos ainda a luz pairar uns instantes sobre o mundo, adiemos a vinda do crepúsculo e a fria descida da noite. Nesse interregno, breve como todos os interregnos, obriguemos os olhos a vaguear pelo arquipélago do dia, para recolher vivas as impressões que nos iluminarão nas trevas nocturnas.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Nocturnos 125

Frits Thaulow, Noite

A noite que encerra todas as noites é a que abre cada uma à grande viagem no navio do silêncio. Suspensa sob o mundo, é uma rosa a florescer no coração da Terra. Presa no cume da montanha, é um pássaro a voar sobre os frutos de Dezembro. Rasgada na linha do horizonte, é a promessa inscrita na música das esferas celestes.

domingo, 22 de dezembro de 2024

Invocação ao Sol (3)

Vincent Van Gogh, Trigal com ceifeiro ao amanhecer, 1889

O Sol, travo

de amargura

na fertilidade

da planície,

exercício

de campânulas

em mãos de mulher,

a demora

na curvatura

lívida da luz.

 

(1993)

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]

sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Um grande acontecimento


Que acontecimento de 2024 pode simbolizar a direcção que a humanidade ocidental parece seguir? O momento simbólico de 2024 é a eleição de Donald Trump. É esse evento, ocorrido na maior potência mundial, que nos pode orientar na compreensão das transformações do mundo. A importância não reside no facto de um republicano ganhar a Casa Branca, nem de se estar perante uma reeleição antecedida por um interregno. O simbolismo desta eleição situa-se noutro lado: os EUA são um país cuja fundação está ligada aos valores do Iluminismo, como se pode ver na Declaração de Independência ou na Constituição, e que elegeu um presidente assente numa coligação anti-iluminista.

Quais os valores centrais do Iluminismo? Em primeiro lugar, a ideia de que a razão humana é o motor do progresso. Só ela permite compreender o mundo e transformá-lo. Em segundo lugar, a ciência e a técnica, frutos dessa razão, como motores das transformações sociais que permitem aos homens viver uma vida cada vez melhor. Em terceiro lugar, a ideia de que a sociedade e as instituições políticas podem ser reformadas e melhoradas, tornando-se cada vez mais democráticas. A eleição do futuro presidente dos EUA assentou, em parte, em grupos que negam a ideia de progresso e não aceitam a razão como guia da acção humana. Também a ciência é questionada por muitos apoiantes de Trump, simbolizados, por exemplo, pelo futuro Secretário para a Saúde e Serviços Humanos, Robert F. Kennedy, um céptico em relação às vacinas. Por fim, o ideal de contínua democratização da sociedade sofreu uma derrota significativa, com a eleição de um presidente pouco preocupado com os direitos das mulheres e das minorias.

Este ataque aos ideais iluministas é o acontecimento simbólico do ano. Mostra que uma parte importante da humanidade – aquela que tinha adoptado esses ideais como a sua bússola existencial – os está a rejeitar, trocando a razão pela fantasia e o mito, a ciência pela opinião sem fundamento e a reforma democratizante da sociedade e das instituições pelo desejo de instituições mais opacas, fundadas na discriminação e sem pendor democrático. Estamos a assistir a um poderoso desafio aos grandes ideais que nortearam o mundo ocidental após as revoluções americana e francesa. Esse desafio não começou com Trump e não existe apenas nos EUA, como se pode ver na ascensão dos populismos europeus. É, contudo, um grande acontecimento, independentemente das suas consequências. Nos próximos anos, os valores iluministas vão estar sob grande pressão. Resta saber se têm poder de atracção suficiente para mobilizar os cidadãos em sua defesa.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Espíritos de Natal


Crentes e descrentes, ou nem uma coisa nem outra, quase todos, no Ocidente, dão importância ao Natal, muitas vezes sob a capa de festa de família, momento de reunião daqueles que os afazeres da vida ou as disposições do ânimo mantêm afastados durante o ano. A democratização do espírito mercantil da época tem um efeito de ocultação de algumas ideias fundamentais que subjazem ao Natal. A mercantilização da quadra é o dispositivo pelo qual o espírito mundano esconde o que parece ser o essencial do período natalício – um essencial que se dirige a todos os homens, mas que estes têm dificuldade em acomodar.

Antes de tudo, surge a decepção das expectativas humanas. No nosso quadro mental, um Salvador aparece como uma figura de poder e de riqueza. Contudo, aquilo que o Cristianismo sublinha é o contrário: a figura central apresenta-se despida de todos os poderes e de todas as riquezas deste mundo. Ora, se Ele é a figura arquetípica dos cristãos – melhor, de toda a humanidade –, então estes devem conformar-se com esta renúncia àquilo que, em geral, mais estimam e pelo qual estão dispostos às maiores atrocidades. É uma decepção que o actual espírito natalício faz por esquecer.

Concomitante a esta decepção está o quadro ético proposto pelo nascimento simples e humilde do redentor da humanidade. Gostamos de cultivar a complexidade, que imaginamos ser símbolo da nossa riqueza material ou espiritual, e a afirmação de nós próprios, uma forma benévola de descrever a nossa arrogância. O espírito natalício, se fiel ao acontecimento do presépio de Belém, é também uma ferida narcísica aberta na imagem que cultivamos de nós mesmos.

Uma característica da mensagem presente no nascimento de Cristo parece alinhar-se com os nossos desejos: a esperança. Contudo, também aqui nos confrontamos com um motivo de desencanto, pelo esforço e pela coragem que exige. O Natal significa, na economia da religião cristã, esperança, mas o objecto dessa esperança, ao contrariar as nossas inclinações naturais e ao exigir de nós a capacidade de sacrifício, tende a conduzir-nos ao desespero ou, mais frequentemente, à indiferença.

As exigências colocadas pelo Cristianismo e os imperativos que, subliminarmente, o espírito de Belém traz consigo são de tal modo incomensuráveis à natureza humana que homens e mulheres sentem, ao mesmo tempo, atracção e repulsa. A atracção reside no facto de não terem apagado o acontecimento da memória e de o continuarem a comemorar. A repulsa manifesta-se na forma como o fazem: numa inversão radical do espírito que se revelou no presépio de Belém. Somos humanos, demasiado humanos. Um bom Natal.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Comentários (25)

Rembrandt, Léon descansando, 1650-52

Quando Rolando percebe que vai haver batalha,
Torna-se mais orgulhoso que um leão ou um leopardo.
Canção de Rolando

Facilmente, os homens se imaginam leões ou leopardos. Não precisam de um campo de batalha. Qualquer escaramuça por um motivo fútil os leva a fantasiarem-se como verdadeiras feras. O orgulho não é, porém, uma manifestação de coragem, mas de uma fraqueza fundada na leitura quimérica que se faz de si e das suas forças. Esta fraqueza pode degenerar em cobardia, mas também em temeridade que conduz à falta de prudência e à irrazoabilidade. O homem corajoso venceu o orgulho e enfrenta o perigo por uma razão sensata. Num homem, o orgulho do leão ou do leopardo não passa de uma bravata, cujas consequências raramente são felizes.

sábado, 14 de dezembro de 2024

O PCP e os novos tempos



Jerónimo de Sousa, ex-secretário-geral do Partido Comunista Português, manifestou o desejo de deixar o comité central do Partido, para, como afirma o próprio, dar lugar a membros mais jovens. Segundo o Público, a média etária do futuro comité central será de 48 anos. O problema do Partido Comunista Português não é, como se pode ver, o da falta de juventude do seu comité central, nem, talvez, dos seus militantes. O problema é, antes de tudo, o seu eleitorado, que está ao mesmo tempo em regressão e em envelhecimento. Contudo, o pior é a idade da visão ideológica do partido.

O Partido Comunista Português conseguiu resistir às desilusões trazidos pelas intervenções soviéticas na Hungria, em 1956, e na Checoslováquia, em 1968. O 25 de Abril deu-lhe um ânimo suplementar. Contudo, a Queda do Muro de Berlim e o desmoronamento do chamado socialismo real nos países do antigo bloco de leste, incluindo a União Soviética, liquidou a capacidade de atracção dos eleitores que ainda restava ao PCP. A degradação do poder de mobilização social e eleitoral foi crescendo e é possível que tenha recebido um golpe fatal com a posição perante a invasão russa da Ucrânia.

A isto junta-se o espírito do tempo. O que atrai, nos dias de hoje, os jovens está muito longe daquilo que propõem os comunistas. Por um lado, temos uma atracção centrada numa visão liberal do mundo, no sucesso individual, na afirmação do mérito. Por outro, as perspectivas comunitaristas mais mobilizadoras para a juventude, nos dias de hoje, vêm da direita-radical e da extrema-direita. A afirmação de identidades nacionais, a afirmação da diferença em relação ao outro e, até, a afirmação da masculinidade, num contexto onde muitos jovens do sexo masculino fantasiam que os valores da virilidade estão em decadência e se tornam motivo de militância. Poucos são os jovens - e os menos jovens - que se interessam pela luta de classes, pelo espírito de classe, pela união dos trabalhadores contra o capital. Para eles, esta visão ideológica do mundo não faz sentido, a não ser como prova de um fracasso pessoal. E isto é um problema para os partidos comunistas que ainda existem na Europa, onde se inclui o português.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Os resultados portugueses nos estudos internacionais sobre educação

Mark Wallinger, School Classroom, 1990 (Gulbenkian)

Os comentadores da área educativa andam um pouco abespinhados (ver, por exemplo, aqui ou aqui). A pátria, pobre dela, desceu nos rankings internacionais da educação. Os alunos portugueses, nas provas internacionais, tiveram piores resultados do que seria expectável, tendo em conta o que já tinham alcançados em edições anteriores. Há vários factores que levam a que os nossos alunos, mas também a muitos alunos dos países ocidentais, tenham, nessas provas, desempenhos medíocres. Concentremo-nos apenas em três aspectos culturais. 

Continua a haver, em parte significativa do país, uma cultura que conflitua com as aprendizagens e a disciplina que elas exigem. Isto nunca é reconhecido pelos agentes políticos incumbentes nas diversas governações. O facto de se ignorar essa cultura anti-escolar não significa que ela não tenha repercussões significativas. Tem e não são poucas. Os alunos chegam à escola e reflectem essa cultura. Ao pouco interesse que a escola lhes desperta associam, a partir de certa altura, atitudes de indisciplina, as quais, apesar da retórica de alguns ministros, estão mais que escudadas na trama ideológica e legal que envolve a escola pública. 

Em segundo lugar, a sociedade portuguesa, mesmo onde a escolarização é vista como importante, é genericamente pouco culta. Os interesses maiores são o dinheiro, o status social, os objectos que provam esse status. Ler livros é uma chatice. Como escreveu Fernando Pessoa: Livros são papéis pintados com tinta. / Estudar é uma coisa em que está indistinta / A distinção entre nada e coisa nenhuma. A ironia pessoana, com efeito, é o reflexo de uma cultura que pensa isso mesmo da leitura e dos livros. É provável que por toda a Europa os níveis culturais - tomando por cultura, a alta cultura - estejam em regressão. O problema português é que esse níveis nunca estiveram em alta. A escolarização (onde se inclui a universidade com a sua panóplia de graus) não representou, ao democratizar-se, uma ruptura, por parte dos novos escolarizados, com a baixa cultura, mas antes a invasão das instituições de ensino por essa baixa cultura.

Por fim, as escolas portuguesas estão atafulhadas num delírio de projectos, planos, avaliações, monitorizações, auto-avaliações e tudo aquilo que nem ao diabo lembra, mas lembra a quem toma decisões na educação. Isto gera nas instituições de ensino uma incapacidade para definir os seus objectivos e deixa os profissionais à beira de um ataque de loucura. A função docente, nos dias que correm, é uma amálgama de coisas inventadas pelo burocracia nacional e europeia que vampiriza a energia dos professores e os desvia das questões fundamentais. Há uma insanidade desmedida nas tutelas educativas que leva tantos as direcções escolares como os professores a viverem num estado de verdadeiro estupor, transformando-os em verdadeiros zombies.

Haverá outras razões, mas estas, por que são de índole cultural, são as centrais. Parte dos alunos vêm de mundos adversos ao ethos escolar. Um país culturalmente medíocre. Uma cultura política educacional marcada por um delírio burocrático e uma insanidade organizacional. Enquanto isto se mantiver, os resultados - ora melhores, ora piores - serão medíocres. Por que razão haveriam de ser excepcionais?

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Invocação ao Sol (2)

Elmer Bischoff, #88, 1985

As pastagens dizimadas,

a luz no ferro incandescente.

Nas vinhas, cabras mansas,

a mão no vigor do fogo solar.

No ocaso, o sol era uma ferida

chamando as trevas

e na fronteira friável da terra

as mulheres dançavam

na transparência da carne.

 

Homens vindos do meio-dia,

joelhos na lama.

Na boca, floresciam-lhes preces,

a dádiva de uma luz suave

sob o despotismo do Estio.

A súplica íngreme,

dor ao dobrar-se em genuflexão,

Os tentáculos do astro embutidos

no peito cravejado de nódoas.

O tempo incendiava-se

nas uvas de Setembro.

Névoa de luz na noite sem nome. 


(1993)

[Conjunto de cinco poemas pertencentes à série Cânticos da Terra Amarela]


domingo, 8 de dezembro de 2024

Beatitudes (75) O caminho solitário

Hans Winkelmann, Einsame Strasse, 1903

As paisagens despidas do Inverno, cenários vindos de um passado remoto, onde os caminhos solitários se abrem aos viandantes mais ousados, são fonte de uma inquietante felicidade. O alma treme perante os perigos do desconhecido, mas o corpo rejubila na solidão. Entre temor e júbilo, o espírito do caminhante, preso na sua singularidade, descobre a via que o leva de si a si mesmo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Um militar, outra vez?


Tudo indica que o Almirante Gouveia e Melo se candidatará à Presidência da República. O que poderá motivar um chefe militar, ainda no activo, a ambicionar tal cargo? Esta pergunta atormenta-me. Antes de voltar a ela, duas observações. Em primeiro lugar, o grande desempenho de Gouveia e Melo, que teve impacto no eleitorado, foi a coordenação do plano de vacinação contra a COVID 19. Isto dar-lhe-á um excelente currículo como coordenador de logística, mas nada nos diz sobre a sua capacidade para gerir um regime político com os seus rituais e jogos de equilíbrio entre as partes. Por outro lado, o facto de ser militar – habituado a uma vida em que o conflito interno é eliminado e a obediência se baseia na hierarquia – deveria levar qualquer cidadão a desconfiar da sua eventual candidatura ao mais alto cargo de um regime fundado no conflito, onde a única obediência aceitável é à lei.

A segunda observação prende-se com o actual regime político. A transição à democracia, em Abril de 1974, deve-se a parte das forças armadas, mas o regime só se tornou plenamente democrático quando os militares recolheram aos quartéis e o Conselho da Revolução foi extinto, pondo-se fim a uma tutela inaceitável sobre as instituições políticas. O primeiro Presidente eleito ainda foi um militar, mas a sua eleição está ligada aos acontecimentos da época e não deixou de ser problemática. Normalizada a vida em democracia, nunca mais um militar desempenhou um cargo de relevo na vida política. Uma eventual eleição de Gouveia e Melo – e, tendo em conta o país que somos, tem francas possibilidades de vencer – representará um retrocesso de quase 50 anos.

O que me atormenta pode-se traduzir nas seguintes questões: Que pretende um homem de acção, sem experiência política, ao aspirar a um cargo onde as questões fundamentais estão fora do seu alcance? Que pretende um homem habituado a comandar e a ser obedecido ao assumir um cargo onde o seu poder de imposição se limita ao que a lei prescreve? Como não será de crer que o Almirante pense fazer da Presidência da República o lugar para gozar a reforma de militar, estas questões são cruciais. Corremos o risco de instalar em Belém um factor de perturbação das instituições democráticas. É preciso recordar que o General Ramalho Eanes, com um projecto de poder pessoal, foi, a partir de certa altura, causa de grande perturbação político-institucional. De tal maneira que tanto Mário Soares como Sá Carneiro e Freitas do Amaral retiraram-lhe o apoio. Ora se Gouveia e Melo não tem um projecto de poder pessoal, por que razão se candidatará?

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Simulacros e simulações (69)

Fernando Calhau, sem título #630, 1980 (Gulbenkian)

Onde se simulam, por devaneio destituído de razão ou por fantasia obscura, obstáculos e barreiros, aí mesmo nascem limites inultrapassáveis, fronteiras jamais transpostas. Sempre que se gera um simulacro, corre-se o risco de transformar a aparência em realidade.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Admirável mundo novo


Caminho apressadamente para os 70 anos. Uma pergunta, após a eleição de Donald Trump, não deixa de me obsidiar: os meus netos – os netos das pessoas da minha geração – ainda viverão a sua vida em democracia? Nos Estados Unidos, o eleitorado abriu o caminho para destruição de uma das mais velhas democracias do mundo. Trump, o Partido Republicano e uma mão cheia de multimilionários têm meios para subverter o regime democrático. É preciso nunca esquecer que uma democracia, tal como o Ocidente a compreendeu e a realizou, não é apenas uma forma de escolher quem governa. Ela é também o respeito pelos que perdem, o respeito pelo Estado de Direito, o respeito por certas regras que impedem a perversão do regime democrático. Neste momento, nada disto está assegurado nos EUA.

O poder de contaminação da primeira potência mundial é tal que todos devemos temer pelos regimes democráticos europeus. A equipa que vai chegar em 2025 à Casa Branca não é a mesma que Donald Trump levou em 2016 e ele também não é o mesmo. Ele e os que o rodeiam não vão apenas querer exportar mercadorias, mas também ideologia. Vão querer influenciar os países europeus e se possível livrarem-se das elites políticas democráticas. O que aconteceu nos EUA é um poderoso propulsor para a extrema-direita europeia, a qual governa já a Itália, a Hungria, integra o governo dos Países Baixos e, apesar de estar fora do governo, o FPO, partido austríaco de extrema-direita, foi, nas últimas eleições, o partido mais votado. Os principais partidos de extrema-direita em França e na Alemanha estão consolidados e poderão em breve tornar-se decisivos.

Qual é o principal bem que uma democracia fornece a cada cidadão? O principal bem é a sua individualidade, o respeito pela pessoa, pelo seu direito a ter opinião, seguir os seus projectos pessoais, deslocar-se por onde entender. A democracia dá-lhe o maior dos bens: o direito à singularidade. Exige-lhe, em contrapartida, que respeite igual bem de todos os outros. Ora, o que os regimes tirânicos, sejam eles mais ou menos ferozes, roubam, em primeiro lugar, a cada um é essa singularidade. A destruição do indivíduo é o seu objectivo. Tornar a pessoa numa mera célula de um tecido social manipulado e orquestrado por aqueles que têm o poder. Querem dizer-nos como devemos pensar, o que devemos dizer e o que temos de calar, o que devemos fazer e como devemos agir. Ora, com a evolução tecnológica a que assistimos, um poder tirânico facilmente controlará cada passo da nossa vida e terá capacidade ilimitada para nos destruir enquanto indivíduos. Temo pelos meus netos nesse admirável mundo novo.