segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Admirável mundo novo


Caminho apressadamente para os 70 anos. Uma pergunta, após a eleição de Donald Trump, não deixa de me obsidiar: os meus netos – os netos das pessoas da minha geração – ainda viverão a sua vida em democracia? Nos Estados Unidos, o eleitorado abriu o caminho para destruição de uma das mais velhas democracias do mundo. Trump, o Partido Republicano e uma mão cheia de multimilionários têm meios para subverter o regime democrático. É preciso nunca esquecer que uma democracia, tal como o Ocidente a compreendeu e a realizou, não é apenas uma forma de escolher quem governa. Ela é também o respeito pelos que perdem, o respeito pelo Estado de Direito, o respeito por certas regras que impedem a perversão do regime democrático. Neste momento, nada disto está assegurado nos EUA.

O poder de contaminação da primeira potência mundial é tal que todos devemos temer pelos regimes democráticos europeus. A equipa que vai chegar em 2025 à Casa Branca não é a mesma que Donald Trump levou em 2016 e ele também não é o mesmo. Ele e os que o rodeiam não vão apenas querer exportar mercadorias, mas também ideologia. Vão querer influenciar os países europeus e se possível livrarem-se das elites políticas democráticas. O que aconteceu nos EUA é um poderoso propulsor para a extrema-direita europeia, a qual governa já a Itália, a Hungria, integra o governo dos Países Baixos e, apesar de estar fora do governo, o FPO, partido austríaco de extrema-direita, foi, nas últimas eleições, o partido mais votado. Os principais partidos de extrema-direita em França e na Alemanha estão consolidados e poderão em breve tornar-se decisivos.

Qual é o principal bem que uma democracia fornece a cada cidadão? O principal bem é a sua individualidade, o respeito pela pessoa, pelo seu direito a ter opinião, seguir os seus projectos pessoais, deslocar-se por onde entender. A democracia dá-lhe o maior dos bens: o direito à singularidade. Exige-lhe, em contrapartida, que respeite igual bem de todos os outros. Ora, o que os regimes tirânicos, sejam eles mais ou menos ferozes, roubam, em primeiro lugar, a cada um é essa singularidade. A destruição do indivíduo é o seu objectivo. Tornar a pessoa numa mera célula de um tecido social manipulado e orquestrado por aqueles que têm o poder. Querem dizer-nos como devemos pensar, o que devemos dizer e o que temos de calar, o que devemos fazer e como devemos agir. Ora, com a evolução tecnológica a que assistimos, um poder tirânico facilmente controlará cada passo da nossa vida e terá capacidade ilimitada para nos destruir enquanto indivíduos. Temo pelos meus netos nesse admirável mundo novo.