sábado, 5 de abril de 2014

Um facto decisivo

Alfredo Cunha - Salgueiro Maia no 25 de Abril de 1974

Um estudo do Instituto de Ciências Sociais, segundo o Expresso, revela que, passados 40 anos, existe uma unânime rejeição do Estado Novo. Uma maioria de Portugueses (59%) considera mesmo o 25 de Abril de 1974 como o dia mais importante da nossa história. O 25 de Abril fazia parte de um painel de datas históricas que incluíam a Batalha de Aljubarrota, a chegada de Vasco da Gama à Índia, a Restauração de 1640, a adesão de Portugal à CEE e a implantação da República. Talvez faltem, no elenco, duas datas determinantes. A data do Tratado de Zamora (5 de Outubro de 1143) onde se reconhece a passagem do Condado Portucalense a Reino e Afonso Henriques como Rei. A outra seria a do Terramoto de 1755. É difícil determinar, numa história com quase 900 anos, qual o dia mais importante. Todos os indicados são fundamentais. O problema que quero colocar é outro e está ligado à desvalorização histórica da data por alguns sectores (que parecem ser, agora, bastante diminutos). Por que razão foi o 25 de Abril de 1974 uma importante data da história de Portugal e, também, da história universal? 

Há três grandes motivos para sublinhar a importância histórica da data para a comunidade nacional. Em primeiro lugar, ela representa o fim de um processo iniciado na segunda dinastia, talvez com Afonso V. Esse processo tem no seu cerne uma orientação extra-europeia de Portugal. Em primeiro lugar, com a expansão no norte de África e depois com os denominados Descobrimentos. A partir dessa altura, o ultramar, no sentido etimológico da palavra, passa a ter um papel central no desenho da política nacional. Esse processo, que durou cinco séculos, terminou em consequência do 25 de Abril, que pôs fim à guerra colonial, abriu o processo de independência das colónias portuguesas e provocou o retorno de centenas de milhares de portugueses à metrópole, como se dizia na época. 

Em segundo lugar, a data é fundamental para os portugueses porque, pela primeira vez, Portugal é dotado de um regime plenamente constitucional e democrático. É verdade que, na sequência da Revolução Francesa e das invasões napoleónicas, Portugal vai reorientar, não sem uma grande instabilidade e uma guerra civil, o regime monárquico da variante absolutista para a constitucional. A própria dinâmica constitucional é alvo de várias peripécias - tentando acordar a perspectiva liberal e a absolutista - e a democracia que daí resultou esteve longe de ser uma democracia tal como a reconhecemos hoje em dia. Mesmo a mudança de Regime, em 1910, não nos trouxe uma democracia no pleno sentido que ela tem hoje. A Revolução do 28 de Maio e o Estado Novo aboliram, por completo, a frágil democracia e as liberdade que existiram na Monarquia constitucional e na República. Só com o 25 de Abril de 1974 é que se reconhece a todos os cidadãos o seu estatuto de maioridade cívica e política. Esta transição de um povo da menoridade para a maioridade política e cívica é um acontecimento decisivo na história de qualquer nação.

Em terceiro lugar, foi o 25 de Abril de 1974, com o fim da guerra e a democratização, que permitiu - e, de certa forma, obrigou - a um terceiro acontecimento fundamental na nossa história, a adesão à CEE. A importância desse passo não está apenas em Portugal ter entrado num comunidade económica, num grande mercado. As consequências políticas são fundamentais e afectam - como estamos a descobrir hoje em dia - a soberania da própria nação. Com os sucessivos tratados, Portugal partilhou - em muitos casos abdicou - de parte substancial da sua soberania. É verdade que, do ponto de vista lógico, não há uma relação necessária entre o 25 de Abril e a adesão à CEE. No entanto, o fim da política ultramarina, a situação geográfica do país e a necessidade de pertencer a um espaço político amplo, numa fase já avançada da globalização mundial, não deixavam outra alternativa ao regime saído do 25 de Abril.

Do ponto de vista internacional, o 25 de Abril tem um duplo impacto. Com a abertura do processo de descolonização, o 25 de Abril de 1974 deu lugar a novos palcos de confronto entre as super-potências da época. URSS e EUA (com a China em atenta expectativa) sustentaram prolongados conflitos internos em Angola e Moçambique. As guerras civis que grassaram nesses dois novos países são uma consequência do fim da guerra colonial e das independências das novas nações, isto é, do 25 de Abril de 1974, bem como da intromissão dos grandes interesses políticos e económicos internacionais. Hoje isto parece irreconhecível devido à implosão da URSS e aos realinhamentos dos poderes instalados em Angola e Moçambique, mas durante muitos anos o confronto entre as super-potências teve, nesses países, um importante palco.

Por fim, o 25 de Abril de 1974, com a transição à democracia, abre a denominada terceira vaga de democratizações, como lhe chamou o cientista político conservador Samuel Huttington. No processo de democratização global, a primeira vaga de democracias inicia-se no século XIX, a segunda com a vitória dos aliados em 1945. A terceira vaga, talvez a que tenha tido maior impacto espacial, começa com a revolução portuguesa, que abre caminho à democratização em Espanha, na Grécia, na América Latina, nos países da Ásia-Pacífico e, após o colapso da URSS, aos países do leste da Europa. A revolução do 25 de Abril de 1974 é, desse modo, a fonte de um processo de democratização que ultrapassa em muito as limitadas fronteiras europeias, tornando-se, também por isso, num acontecimento decisivo da história mundial.

Independentemente da consideração positiva ou negativa destes factos, a verdade é que o 25 de Abril de 1974 é uma data central na nossa história, um daqueles pontos incontornáveis em que o fluir da vida de uma comunidade  muda de rumo e obriga as pessoas a mudar de vida. Se me pedissem para designar as quatro datas decisivas da nossa história, o 25 de Abril de 1974 estaria entre elas, ao lado das datas do Tratado de Zamora, da Batalha de Aljubarrota e do 1.º de Dezembro de 1640. Em todas elas se jogou alguma coisa de absolutamente decisivo para a nossa comunidade

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Novos tempos


Os resultados das eleições em França vieram mostrar que se está a desenhar na Europa um novo eixo do fenómeno político. Durante muito tempo, os pólos estruturantes da política foram a esquerda e a direita. Estas duas visões da realidade social criavam o cenário onde as classes sociais geriam conflitos e negociavam consensos. Estes pólos não deixaram de existir. Continua a haver conflitos de classe e posições políticas de esquerda e de direita.

O pano de fundo, porém, passou, segundo alguns autores, a ser outro. O conflito central, já reconhecido há muito nos EUA, será agora entre liberais e comunitaristas, havendo liberais de direita e de esquerda, assim como comunitaristas. O que distingue os campos? Os liberais centram a actividade política nos interesses do indivíduo e, nos casos mais radicais, como era o da senhora Thatcher, negam a existência da sociedade. Os comunitaristas, pelo contrário, sublinham importância das comunidades, do bem-comum e do peso que estes devem ter na decisão política.

O crescimento eleitoral da extrema-direita em França só é compreensível neste novo quadro. Sublinhe-se, em primeiro lugar, a conversão da antiga direita, conservadora ou democrata-cristã, e da esquerda socialista ao liberalismo e o abandono que ambas fizeram da ideia de comunidade. O que move hoje as políticas governamentais é o lucro privado. O bem-comum, o patriotismo e a solidariedade comunitária – que eram advogados, embora de forma diferente, tanto à esquerda como à direita – foram pura e simplesmente abandonados. Em segundo lugar, a esquerda marxista parece ter perdido qualquer capacidade de atracção. Serão legião os antigos eleitores operários do PCF que agora suportam a Frente Nacional. Sem se perceber isto, não compreenderemos que a senhora Le Pen está apenas a aproveitar um espaço político ao abandono.

A experiência do passado mostrou uma coisa curiosa. Capitalismo e socialismo puderam conviver nas mesmas comunidades, conflituaram e negociaram, fizeram casamentos de conveniência. Hoje em dia, o crescimento das desigualdades levará a uma mais acentuada polarização entre aqueles que triunfam na sociedade de mercado, e afirmam posições ostensivamente liberais, e o exército dos derrotados da vida, cuja esperança final acaba por estar na ideia de uma pátria mítica, onde a velha ordem comunitária seja restaurada. Resta-nos saber se a convivência entre o neoliberalismo e as forças emergentes do comunitarismo encontrará, na radicalidade que se desenha, espaço para negociar e ceder.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A vítima excepcional

Jack Levine - O Prisioneiro

Continuo a leitura do romance Tudo Passa, de Vassili Grossman. De súbito, alguma coisa sobre a realidade portuguesa se ilumina ao ler uma reflexão sobre os campos de concentração soviéticos. Ivan Grigórievitch, personagem central, foi um dos inúmero presos políticos da era Estaline. Não fizera nada, mas uma simples denúncia, sem qualquer fundamento, leva-o a trinta anos de campo de concentração. Libertado com a morte de Estaline, reflecte sobre todo o mecanismo posto em marcha pela perseguição política. Descobre que a generalidade dos prisioneiros inocentes tem uma dupla perspectiva sobre o que aconteceu. Cada um sente-se uma excepção. Ele estava inocente, a sua prisão mais do que injusta foi um engano, um equívoco do partido. O sentir-se excepcional por parte da vítima das perseguições de Estaline acabava por ser um processo de legitimação das perseguições e de defesa da sua justeza. A vítima era uma excepção, todos os outros - e aqui vem a segunda perspectiva - que foram presos nas mesmas circunstâncias eram culpados. O partido poderia cometer pequenos enganos - como no seu caso - mas nunca enganos em massa. O sentir-se excepção é o mecanismo pelo qual a subjectividade se submete e torna racional decisões fundadas na irracionalidade e arbítrio do poder político.

Quando nos interrogamos sobre a razão do comportamento benevolente e cordato dos portugueses, uma atitude de aceitação e de acordo tácito com as mais arbitrárias injustiças que lhes são infligidas pelo governo e pela troika, teremos alguma coisa a aprender com o sentimento dos prisioneiros dos campos de concentração soviéticos. Como eles, cada português sente-se vítima de terrível injustiça. O professor que perdeu o lugar na escola, o operário que viu o salário descer, o quadro médio ou superior que foi despedido, o funcionário que foi colocado na mobilidade, o aposentado cuja reforma foi amplamente cortada, cada um, olhando o seu caso, acha que foi vítima de uma injustiça. Mas também pensa, ao mesmo tempo, que ele - ou no melhor dos casos o seu grupo - é uma excepção, pois sempre foi um trabalhador empenhado e zeloso. A política global está correcta, julga, pois os outros viveram acima das suas possibilidades, são preguiçosos, pouco activos, gente sem virtude que apenas quer gozar e viver à tripa-forra. 

Este mecanismo de subjectivação tem por função desculpar a vítima da sua submissão ao algoz e transferir para as outras vítimas a culpa pela situação que vive. Se os outros não tivessem vivido como viveram, agora eu viveria melhor, pensa a vítima excepcional. O poder está desculpado e legitimado, pois não queria fazer mal ao inocente, mas tinha de pôr ordem nisto. Está legitimado porque não pode, na sua acção, ter em conta a excepção. Assim, pagam todos, os pecadores e o justo. Como todos se acham vítimas não das forças hostis do poder dominante mas da manha dos outros, dos verdadeiros culpados, o resultado é o amplo consenso com que as políticas actuais são acolhidas por uma grande camada da população vítima delas.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O sentimento de liberdade

Maria Helena Vieira da Silva - Liberdade (1973)

De cada vez que leio estudos como este sinto-me ameaçado. Não é que tenha alguma coisa contra a ciência e a actividade de revelação que os cientistas fazem. Pelo contrário. De onde vem, então, a ameaça? Vejamos este exemplo. Os cientistas descobrem que há pessoas que não gostam mesmo de música, pois alguma coisa se passa com os seus neurónios. É certo que tudo o que fazemos e pensamos tem de estar em conexão com os nossos neurónios, mas sinto-me sempre como se eu fosse mais do que os meus neurónios, de que para além deles, ainda que ancorado neles, exista um qualquer coisa que se sobrepõe à base neuronal e, nessa sobreposição, afirma a sua liberdade. 

Que o meu gosto pela música seja apenas uma predisposição provocada por uma feliz combinação de neurónios deixa-me deprimido. E se a música é assim, todo o resto o será. A ameaça vem da irrisão que a ciência provoca na liberdade. Um dos problemas mais complexos que a ciência coloca ao homem não é a ameaça tecnológica, a criação de um mundo distópico devido às aplicações das ciências naturais. O grande desafio é o de não deixar morrer o instinto da liberdade perante o trabalho contínuo de revelação e de explicação com que a ciência desmonta o homem. Seja como for, a verdade é que as pequenas peças de Erik Satie que estou a escutar, enquanto escrevo isto, me dão grande prazer e, mais do que isso, me restituem o sentimento de liberdade que a ciência tanto gozo tem em me furtar.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Sob suspeita

(Foto encontrada aqui)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 4.11.2009.

É preciso ir mais longe. Isto significa o quê? Significa que devemos desconfiar mais e melhor. Num tempo como o nosso, a suspeita deve recair sobre tudo e sobre todos. Em primeiro lugar, devemo-nos colocar a nós mesmos sob suspeita. Devemos suspeitar dos nossos actos, dos nossos pensamentos, dos nossos gestos, das nossas crenças, das nossas visões. Esta suspeita, porém, deve ser universalizada. A corrosão do carácter, para usar o belo título de um livro de Sennett, é universal, tão universal que já ninguém dá por ela. Aprendemos a viver segundo as regras dos corruptores, e pensamos que elas são não só a lei jurídica como a lei moral. O carácter corroído tornou-se inocência. Esta não é, porém, ausência do mal, mas o desconhecimento da maldade do próprio mal.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Sísifo eleitoral

Ticiano - Sísifo

Se o eleitorado dos países do Sul da Europa tivesse capacidade de reflexão, certamente se veria conduzido à questão: o que terá feito para sofrer, como Sísifo, este castigo de levar às costas - ou empurrando encosta acima - um grupo político que logo o abandona e esquece tudo o que tinha prometido? Ontem, em França, mais uma vez os eleitores, que ainda há pouco tinham eleito os socialistas para a Presidência da República e feito despenhar o centro-direita, decidiram carregar às costas o centro-direita e deixar rolar encosta abaixo os socialistas. Quando os socialistas se tiverem despenhado por completo, nas próximas presidenciais, os eleitores transportarão o candidato da direita até ao Eliseu, para dar início à tarefa de o empurrar e preparar a subida dos socialistas. Um crime muito grande terão feitos os povos do do Sul para que os deuses os tenham castigado com tal tarefa. A não ser que, exaustos do exercício, se entreguem nas mãos de soluções mais radicais. Em França, os sinais dessa exaustão começam a ser preocupantes e até aqueles que podem vir a ser as grandes vítimas da solução decidiram entregar-se nas mãos dos promitentes algozes.

domingo, 30 de março de 2014

Metamorfoses 28 - Encontrar razões na desrazão

Paul Cezanne - House and Trees (1890-94)

28. Encontrar razões na desrazão

Encontrar razões na desrazão,
ouvir o eco dos gritos,
a dor estendida no cristal das casas.

A vida desfaz-se vagarosa, quieta,
inscrita no húmus seco,
onde tudo, tudo se decompusera.

Pego no álbum de fotografias
e desfolho o passado.
Nos olhos, um rio de areia e metáforas.

sábado, 29 de março de 2014

A morte do grande planificador

Stalin dead

Mas, de repente, a 5 de Março, Stálin morreu. Esta morte rompeu o gigantesco sistema de entusiasmo mecanizado, da ira popular e do amor popular estabelecidos por ordem do comité do partido.

Stálin morreu fora do plano, sem ordem dos órgãos de direcção. Stálin morreu sem ordem pessoal do próprio camarada Stálin. Nesta liberdade, neste voluntarismo da morte havia qualquer coisa de dinamitador, contradizendo a própria essência profunda do Estado. Grande perturbação abrangeu as mentes e os corações. (Vassili Grossman, Tudo Passa, p. 31)

Mais uma vez somos confrontados com a questão: para quê a literatura? E a resposta não poderia ser mais clara do que neste extracto do romance de Vassili Grossman. O autor revela-nos aquilo que sem a literatura não seria visível. Se a vida não é o lugar onde se manifesta a liberdade, então esta refugia-se e revela-se na morte. Não estamos perante uma asserção metafísica, mas diante do uso de uma estratégia literária, a ironia. O supremo planificador e ordenador da vida de milhões de pessoas é impotente para planificar e ordenar a sua morte, esse momento tão íntimo e intransmissível. E nestas poucas linhas está todo o drama e toda a limitação do comunismo. O plano, a planificação e o planificador são impotentes perante a morte. Uma sociedade onde a vida era planificada ao mais ínfimo pormenor vê-se confrontada com a irreverência libertária da morte. A liberdade assomava onde seria menos esperada e menos deseja, ela que não era desejada em lado algum. Tudo isto torna-se visível porque a literatura, através dos instrumentos retóricos e poéticos de que dispõe, no-lo dá a ver. É para isto que serve a literatura, para dar a ver o invisível. 

sexta-feira, 28 de março de 2014

A herança

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Um dos aspectos mais doentios dos defensores das políticas governamentais prende-se com o problema da terrível herança do despesismo. A partir do púlpito governativo, das cátedras televisivas ou das tribunas da blogosfera, um conjunto de sacerdotes da ausência de despesa pública arengam contra as velhas gerações gastadoras. Fazem-no, sem pudor, em nome das novas gerações que irão ficar a braços com uma terrível dívida. Esta retórica pantanosa pretende misturar, como se fossem a mesma coisa, o conjunto de investimentos em importantes infra-estruturas materiais e imateriais com os gastos resultantes da corrupção ou dos delírios eleitorais das várias irmandades que têm estado no poder em Portugal.

É preciso sublinhar – pois são muitos os distraídos – que as gerações mais velhas, as tais que são agora acusadas de despesismo e de deixarem uma dívida para as outras gerações pagarem, quando morrerem não irão levar para a cova as auto-estradas, os hospitais e centros de saúde, as bibliotecas, os centros desportivos. Também não levarão as universidades, os politécnicos, as escolas, nem os laboratórios ou os centros de investigação. E mesmo que gostem muito de futebol, deixarão cá os malfadados estádios do Euro de 2004. Essas gerações, quando morrerem, também não levarão as licenciaturas, mestrados e doutoramentos que ajudaram a pagar aos filhos e aos netos. Se estivermos bem atentos, a terrível e negra herança da dívida tem um lado solar e luminoso. Tornou, apesar de tudo o que a crise trouxe de mau, a vida das novas gerações melhor e Portugal num país menos risível. Este discurso geracional é absurdo e injusto. Ninguém das gerações agora acusadas levantou a voz contra a dívida contraída na Monarquia e que só acabou de ser paga em 2002.

Mas não houve má despesa pública? Houve. Houve decisões erradas e dinheiro que se perdeu nos corredores da corrupção. Mas esta campanha contra a despesa pública, uma campanha que confunde investimento no país e nas pessoas com falcatruas e delírios eleitorais, tem um duplo objectivo. Em primeiro lugar, justificar a destruição das estruturas do Estado que visam fomentar a igualdade de oportunidades (a Educação, a Saúde e a Segurança Social). Em segundo lugar, e esse é o seu desiderato final, transferir grandes somas das instituições públicas para as mãos de privados, mercantilizando o acesso à saúde, à educação e, se for possível e rentável, à própria segurança social. O que esta gente pretende, em nome das novas gerações, é destruir qualquer possibilidade dessas gerações terem uma vida digna.

quinta-feira, 27 de março de 2014

O apagamento da figura humana

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 3.11.2009.

Desde que comecei, aqui no blogue, a publicar poesia feita em cima de quadros, a exibição da figura humana, nesses quadros, foi-se tornando cada vez mais rara. Há séries (séries de poemas publicados no averomundo) onde ela é constante, mas nas últimas,  actual incluída, são cada vez menos os quadros onde se vislumbra um ser humano. Não quer dizer que os não haja. A primeira série deste género que publiquei, uma série feita sobre - em cima de - quadros de Gustav Klimt, tinha um certo equilíbrio entre quadros onde a figura humana estava presente e outros onde ela estava ausente. Vista daqui parece o prenúncio de uma certa esquizoidia, entendida esta na sua raiz grega, que remete para uma cisão, uma fenda que se abre na forma das coisas, neste caso da realidade humana.

Esta evolução, provavelmente passível de reversão, não representa um acréscimo de misantropia, nem um culto tardio dos deuses silvestres, nem uma patologia específica, espero. Por vezes, a humanidade cansa-nos, ou cansamo-nos de nós próprios, o que vai dar ao mesmo. Isso seria uma boa razão para o seu esquecimento. Um olhar enviesado sobre o homem, por outro lado, pode ser mais penetrante, poeticamente falando, do que um olhar directo. Ao ir apagando a figura humana, deixo pairar perante o olhar as suas obras, a aldeia que fez nascer, a paisagem que deixou subsistir, a casa que construiu, a ponte que ergueu entre duas margens. Estas obras humanas transfiguradas pela arte acabam por tornar o Homem, apesar de tudo, mais aceitável. São uma ilusão, mas são aquela ilusão que permite não desesperar completamente da humanidade. Esquecer os homens nas suas obras, naquelas sobre as quais a arte fez cair o véu da ilusão, poderá ser a condição necessária para os aceitar.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Metamorfoses 27 - Escrevo sobre o papel a biografia

Michel Larionov - O nu azul (1903)

27. Escrevo sobre o papel a biografia

Escrevo sobre o papel a biografia,
a história que nos trouxe aqui
e te deixou à minha mercê.

Uma escrita hesitante, pensativa
cruza gestos esquecidos
com a crónica das palavras perdidas.

A página avança nestas mãos
e o corpo exulta
na feroz ventura da memória.

terça-feira, 25 de março de 2014

Isto e o seu contrário

Francisco de Goya - Morreu a verdade

Quanto valerá a palavra - a palavra política, entenda-se - de um político? Por exemplo, que valor tem a afirmação do líder da bancada parlamentar do PSD de que não haverá mais cortes de salários e de pensões? Ou, noutro contexto, que credibilidade tem a palavra de Obama sobre o fim da recolha maciça de dados telefónicos pela NSA? O interessante neste tipo de promessas é que elas estão excluídas dos dois jogos-de-linguagem onde podiam ter algum  valor para os cidadãos. Não representam um contrato jurídico e, por isso, os seus autores não podem ser confrontados com a quebra de um contrato. Também não representam uma afirmação moral e, por isso, os seus autores nem sequer estão submetidos ao escrutínio que sofrem as pessoas de moralidade duvidosa ou de má reputação que não honram a palavra. O valor deste tipo de afirmação é meramente político e insere-se no jogo da luta pelo poder e pela sua manutenção. O que está em jogo, então, neste tipo de afirmações não é a sua verdade, mas a sua eficácia política. Qual o resultado de tudo isto? Nada nos garante, a nós simples mortais, de que aquelas palavras queiram dizer o dizem e não queiram dizer, precisamente, o seu contrário. A verdade, só lateralmente, faz parte do jogo-de-linguagem político, enquanto auxiliar da luta pelo poder. Para nós, é como se Montenegro ou Obama nem sequer tivessem falado.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Para quê literatura?

Lewis Hine - Great Depression - man lying down on pier, New York City docks (1935)

Consciência, dizes tu? És demasiado pobre para manteres a consciência.  (Knut Hamsun, Fome)

Voltemos aos lugares-comuns para parafrasear Hölderlin: para que serve a literatura em tempos de indigência? Antes de mais, haverá tempos que não sejam de indigência? Não é o tempo a casa dos indigentes, isto é, de todos nós? Não nos desviemos, porém, e respondamos à questão de Hölderlin com outro lugar-comum: a literatura serve para perturbar e inquietar. Perturbar e inquietar significam dar que pensar. A literatura dá que pensar. É o que faz a frase de Knut Hamsun no romance Fome. Ela mostra-nos, inopinadamente, que a consciência moral não tem um valor absoluto. Está ligada a um nível mínimo de propriedade, abaixo do qual os homens não têm direito sequer à consciência moral ou direito à presunção de a possuir. Ao manifestar o trágico da existência, a literatura explora os estratos que compõe os nossos valores e desafia o pensamento, confrontando-o com o mundo da vida. O sujeito cartesiano, despido de corpo - logo, despido de fome - pode, nas suas diversas metamorfoses - nomeadamente, na kantiana - arvorar valores morais absolutos, mas a personagem literária não habita o céu puro do pensamento. Ela tem mundo, tem corpo e tem fome e é nesta terra impura que a literatura nos mostra os valores e nos obriga a pensá-los.

domingo, 23 de março de 2014

Metamorfoses 26 - Trabalhar lentamente a pedra

Caspar David Friedrich - Neubrandenburg in Morning Mist (1816-17)

26. Trabalhar lentamente a pedra

Trabalhar lentamente a pedra,
deixá-la levedar
no fogo do medo e da dor.

Depois, com as mãos, abrir-lhe sulcos,
um leito seco e rugoso
por onde a água em tropel correrá.

Quando regressar a sombra da noite,
esperar que o passado se vá
e a aurora traga o murmúrio da manhã.

sábado, 22 de março de 2014

Convicções

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 19.10.2009.

O meu problema não é a ausência de convicções. Eu tenho múltiplas e diferenciadas convicções, arrasto-as comigo, durmo com elas, passeio-as pela rua, chego a jantar com elas. O meu problema é diferente. Reside no simples facto de não acreditar em nenhuma das minhas convicções. Mas isso não é o pior. O pior é que eu não acredito mesmo em poder acreditar nessas convicções. Há um livro de Paul Ricoeur que me fascina desde que saiu, em 1995. Resultou de longas conversas com François Azouvi e Marc De Launay. O que me fascina não é o seu conteúdo, mas o título e aquilo que ele pressupõe. O livro chama-se A Crítica e a Convicção. O pressuposto é que o exercício crítico da Filosofia acaba por depurar as convicções, tornando o convicto mais convicto das suas convicções. O meu fascínio reside no simples facto de nenhuma convicção que eu possa ter resiste ao exercício da crítica. A crítica dissolve todas as convicções, todas as crenças, tudo aquilo que tomamos por verdadeiro. Por isso, protesto pela dissolução niilista da verdade, protesto contra o relativismo. Mas não creio sequer no meu protesto, não passa de um gesto inútil.

sexta-feira, 21 de março de 2014

O caminho para o autoritarismo


Um estudo europeu – European Social Survey “Significados e avaliações da democracia” – mostra a existência, em Portugal, dum declínio da satisfação com a democracia. Os dados da investigação referem que, nos países com maiores desigualdades de rendimentos, a justiça social surge como elemento indissociável do conceito de democracia. Ora, segundo alguns intelectuais de orientação liberal, a democracia não deve estar ligada às expectativas de evolução dos rendimentos das pessoas ou a considerações de igualdade social. A democracia seria apenas um método de escolha da governação, cujo valor seria intrínseco, isto é, que valeria independentemente do rendimento da população ou do sentimento de equidade social.

Esta abstracção não tem em conta que a democracia tem, antes de mais, um valor instrumental. Ela serve para alguma coisa. A democracia deve ser vista sempre – como o mostra a tradição política clássica do Ocidente – em concorrência com outros regimes políticos. Os regimes políticos visam assegurar uma vida social pacífica, onde as pessoas possam desenvolver os seus projectos de vida, os quais têm por finalidade promover a sua felicidade e bem-estar. Se a democracia for apenas um método de escolha das elites governantes, corre o risco de perder o conteúdo substancial (permitir que as pessoas se realizem) e tornar-se dispensável. É isto que o estudo referido detecta.

O declínio da satisfação com a democracia em Portugal nasce, certamente, da percepção, por parte dos portugueses, de que o regime não lhe está a proporcionar a possibilidade de realizar os seus legítimos anseios. Neste momento, a democracia não consegue evitar a emigração massiva dos portugueses, não consegue evitar a contínua diminuição dos seus rendimentos, não consegue evitar o desemprego avassalador, não consegue evitar o crescimento exponencial das desigualdades, não consegue evitar o estranho sentimento de que não há futuro que valha a pena.

Em Portugal, a democracia nasceu intimamente ligada à esperança de uma vida mais digna e mais realizada. Ao negar-se à vida democrática a capacidade de promover essa esperança e essa dignidade, está-se a abrir o caminho para que emirja o desejo de outro tipo de governação. Não é que o actual governo ou o anterior sejam não democráticos ou os seus membros não advoguem um regime democrático. O problema está nas políticas abraçadas pelos governos. São estas políticas – com o seu projecto de acentuação das desigualdade e injustiças socias – que estão a destruir a democracia e a abrir o caminho para soluções autoritárias. 

quinta-feira, 20 de março de 2014

Escola de monstros

Max Ernst - Placa para una escuela de monstruos (1968)

O novo livro de Filomena Mónica tem por objecto a escola pública. Melhor, a degradação da escola pública. Independentemente do método utilizado ou das opiniões pessoais da socióloga, há uma coisa que é óbvia e que ela sublinha muito claramente. Trata-se da culpabilidade dos ministros da educação no grau de degradação a que se está a chegar. Todas as utopias e desejos, mais ou menos secretos, de cada uma dessas personagens foi vertida em lei e acabou em cima da cabeça dos professores. Os ministros da educação - todos, o que inclui o actual incumbente - esforçaram-se arduamente para escavar a autoridade dos professores, trabalharam com afinco para os desviar das tarefas de instrução, inventaram uma instituição absolutamente doente e demente. Cada novo ministro tem por objectivo superar em delírio legislativo o anterior, embora raramente substitua os delírios dos anteriores. Soma delírio a delírio. A escola tornou-se, devido à imaginação desenfreada de tantos reformadores sociais, de esquerda e de direita, um lugar irreconhecível e monstruoso. Repito, monstruoso. As tarefas dos professores pouco ou nada têm a ver com a instrução. São longos exercícios burocráticos, exercícios executados por ordens ministeriais - vêm com a força da lei - e vigiados pelo zelo dos organismos respectivos.

Este lugar distópico, onde as regras normais de um lugar de instrução já não são reconhecidas, tornou-se um espaço produtor de monstros, uns maiores, outros menores. O sagrado peso da comunidade educativa, a intervenção, quase sempre enviesada e parcial, dos pais, a sobre-protecção das crianças e dos jovens, a abolição das regras de disciplina, a cultura de ócio e de desprezo pelo trabalho e pelo rigor são criações dos nossos ministros da educação. Utilizaram a escola e os professores para tentar ganhar votos, dando a ideia de que eram fortes e iam domesticar a classe docente. A bajulação do eleitorado, apanágio de vários governos, através da protecção dos supostos desejos dos encarregados de educação  e das forças locais tem tido como meta uma campanha interminável contra os professores. O resultado - e isto apesar de alguns progressos nos estudos internacionais - foi transformar a escola numa paisagem de um romance de Kafka ou num cenário de Beckett.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Metamorfoses 25 - As pequenas mudanças abrem crateras na rua

Sean Scully - Change Drawing # 7 (1974)

25. As pequenas mudanças abrem crateras na rua

As pequenas mudanças abrem crateras na rua
por onde entra o destino
coberto de poeira e pedras da calçada.

Trazem os braços sujos de musgo
e em cada mão a navalha esguia
com que retalham a vida cansada.

Onde chegam, tudo entra no segredo da noite.
E elas cantam num sussurro de água,
cantam na fímbria da vida a morte adiada.

terça-feira, 18 de março de 2014

Tragédia ou farsa?

KIRILL KUDRYAVTSEV - AFP - Putin na Praça Vermelha (Público)

Olho a fotografia de Kirll Kudryavtsev e sou tomado por uma mão-cheia de lugares-comuns. A incomum situação da Crimeia parece que serve para isso mesmo, para sublinhar os lugares-comuns a que a imaginação se vê compelida. A coreografia que a foto revela reenvia-nos, de imediato, para uma imagem tipo Hollywood. Eis um lugar comum inusitado. A elite russa, na Praça Vermelha, comporta-se à maneira americana. Se estavam à espera dum desfile modelo 1.º de Maio, com tanques, tropas e bandeiras vermelhas, enganaram-se. Temos o doce coração da Rússia como pano de fundo cinematográfico da tomada, por via referendária, da Crimeia.

Eliminada a exaltação soviética pela performance hollywoodesca, que outro lugar-comum salta aos nossos olhos? O nacionalismo russo expresso nessa letal ligação entre o coração - o amor - e a pátria - a bandeira. Nos tempos pós-nacionalistas e de morte do Estado-Nação, segundo a retórica liberal europeia, eis que o nacionalismo entra em força Europa adentro. Também os conflitos em torno do amor pátrio são um lugar-comum europeu. Estava recalcado, mas parece ter ainda potência suficiente para elevar a voz e lançar a Europa em plena irrisão. É preciso não esquecer que o nacionalismo europeu tem a seu crédito múltiplas guerras, entre elas duas guerras mundiais. E aqui entra um outro e surpreendente lugar-comum. Hegel terá dito que a história repete-se sempre, pelo menos duas vezes. Ao que Karl Marx acrescentou: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. Resta-nos saber se a encenação que vemos se reporta a uma tragédia grega ou a uma farsa pós-moderna?

segunda-feira, 17 de março de 2014

Do exercício da arrogância

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 11.10.2009.

É preciso uma enorme dose de arrogância para alguém se candidatar a um cargo público com a suposição de ser capaz de resolver os problemas da comunidade ou dos outros. A candidatura, toda a candidatura, é um exercício paranóico de arrogância. Não basta a mera auto-estima, a confiança em si. Todo o poder, sem excepção, se funda na arrogância, exprime-se através da altivez e da sobranceria, por vezes, se conveniente, através do desprezo. Aquele que luta pela conquista ou manutenção do poder não é apenas audaz, é presunçoso e, muitas vezes ou sempre, insolente. A verdadeira virtude política não passa de um repositório de qualidades para a prática do mal. Não por acaso, o poder é o lugar do mal e o poder absoluto, o do mal absoluto.