quarta-feira, 11 de julho de 2012

A consciência de um político

Juan Genovés Candel - Sobre la representación política (1973)

Enquanto que tal outro, inchado de orgulho, exaltado pelas riquezas, pelas honras, pela jovem e desrazoável beleza do corpo, inflama a sua alma de desmedida. A crer nele, não precisaria nem de senhor nem de chefe; pelo contrário, sente-se mesmo capaz de conduzir os outros. Este é abandonado pelo deus e, como consequência desse abandono, junta-se a outros homens para se precipitar na confusão e semear a desordem por todo o lado. Muitas pessoas pensaram que ele era alguém, mas não passará muito tempo até que seja castigado pela Justiça com uma pena bem merecida e sem que tenha arruinado completamente a sua casa e a sua cidade. Platão, Leis IV 716 a-b.

Um dos traços fundadores da modernidade é a consciência da autonomização, com Maquiavel, da política relativamente à moral. A virtude política centra-se na conquista e manutenção do poder. A moralidade para o homem público apenas tem interesse se ela ajudar os seus objectivos. Toda a conduta imoral é  politicamente virtuosa se ela ajudar a conquistar e a manter o poder. Se olharmos para os agentes políticos que pululam por aí, facilmente se percebe a sua intencionalidade e, rapidamente, se descobre esta filiação moderna.

Contudo, esta perspectiva sublinhada por Maquiavel não é propriamente moderna, mas diz respeito à própria natureza daqueles que pretendem ocupar um lugar de poder. O texto de Platão citado é a prova disso. A crítica à desmedida e à imoralidade deve ser lida como o negativo de uma realidade traumática.  É a própria experiência do arbítrio dos tiranos que conduz à necessidade do filósofo pensar a figura do tirano e encontrar nela os traços da desrazão que o conduzirão - se o conduzirem - à perda e à destruição da cidade que teve a infelicidade de o ter como governante.

As nossas elites políticas não são conduzidas à desmedida pela riqueza, a honra ou a beleza. É antes a sua falta que alimenta as aspirações de uns e as concretizações de outros. A insensatez que os conduz não é alimentada por um qualquer excesso existindo a priori, mas por um defeito que, através do exercício do poder, pretendem colmatar. Não vale a pena enumerar a longa lista de comportamentos dos agentes políticos em cargos executivos que provam a tese. O que é importante perceber é que eles são fruto de uma desmedida, e que essa conduz, como acontece connosco, a comunidade à ruína.

A crítica da desmedida era, no tempo de Platão, um exercício de uma elite espiritual. O seu sucesso prático era francamente limitado. Nos dias de hoje e enquanto exercício intelectual, essa mesma crítica sofre das mesmas limitações. Contudo, há uma diferença. A opinião pública, apesar do condicionamento imposto pelos media, e os cidadãos em geral têm um poder efectivo, uma capacidade  real para exigir um comportamento moralmente virtuoso, em matéria de assuntos públicos, aos governantes. 

A desmedida, o excesso, a insensatez devem ser controladas pelos cidadãos. Isso, porém, implica uma reorientação do nosso olhar sobre a política. Não se trata já de substituir os políticos dos outros pelos nossos, mas de criar uma cidadania activa e crítica que limite o poder de quem é eleito. É preciso reduzir a desmedida do governante à frugalidade do servidor, que é aquilo que a palavra ministro significa. Quanto mais crítica e activa for a cidadania independente, menos espaço terá o servidor para os seus excessos. A consciência de um político não reside nele, mas em nós.

2 comentários:

  1. Que manifesto...! Muito bem, concordo plenamente. Dá gosto ler.

    Leio o seu texto enquanto vejo na televisão, sem atenção, a transmissão do debate na AR. Não sei se é costume isto ou se hoje se passa lá alguma coisa de especial. Mas o que ali se passa é uma teatralização que tem pouco a ver com o que se passa no mundo. Palavreio, palavreio, palavreio - cada um repete os seus argumentos sem grande imaginação, alguns quase ao nível da indigência. E uma miudagem que nem se percebe de onde saíu. E outros, estafados, cheios de sono.

    Servidores, estes?

    Mas se estes, na sua maioria, não estão nem aí, muito menos estão os cavalheiros (e cavalheiras) que se sentam no balcão do governo...

    Mas tem razão: nós todos é que temos que ser mais exigentes. Deverão, sentir, na prática que estão lá para servir os interesses dos portugueses e que é perante nós todos que devem apresentar-se de consciência tranquila e mãos limpas.

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    1. Esta é uma primeira aproximação sobre aquilo que tinha prometido há tempos. O artigo do Jornal Torrejano da próxima 6.ª feira é complementar deste. Haverá, posteriormente, uma continuação.

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