sábado, 31 de maio de 2014

Pobre anacrónico

Pedro de Berruguete - Bessarion (1476)

Um texto novo a intercalar nos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

Cheguei sempre tarde a tudo. Não é um problema de pontualidade, mas de anacronismo. Sou anacrónico, completamente. Por exemplo, a minha geração viveu embevecida com o rock. Para dizer a verdade, nunca consegui gostar de rock. Tentei, confesso que tentei, mas o meu anacronismo congénito nunca me deixou. Preferia ouvir música francesa, coisa que ninguém digno de consideração fazia nesses dias. Passaram por aqui, há dias, os Rolling Stones e um frémito de nostalgia correu país fora. Não consegui perceber a emoção. Não me consigo transferir para os corações derretidos por tais memórias. Sou anacrónico e isso é o pior que pode acontecer a uma pessoa que vive nos dias de hoje.

Mesmo numa área tão excêntrica como a filosofia ser anacrónico tornou-se sinónimo de estar excluído. Gosto de ler aquilo que me cai em frente dos olhos sub specie aeternitatis, isto é, como se fosse uma verdade eterna, a qual se manifesta, na leitura, para mim. Isto revela, porém, a mais pura insensatez. Não há verdades eternas e a ciência faz-se através de um progresso histórico, como se a verdade precisasse da demora do tempo e do esforço aturado das gerações para se dar a conhecer. Ora para que serve uma verdade que apenas está disposta a despir-se para o último dos homens dormir com ela, recusando-se a todos outros, mostrando-lhes, quanto muito, mais um milímetro da coxa? Nada de particularmente excitante.

O meu anacronismo é uma revolta contra o espírito dos tempos modernos e dos seus sacerdotes, os cientistas, as gentes da moda, os vendedores de novidades, os empreendedores. Acreditam no progresso em direcção à verdade e à felicidade, crêem na superação – dialéctica ou não – dos estádios anteriores, e, humildemente, aceitam a tenaz disciplina da razão para assim contribuírem para a futura vitória do conhecimento e do bem-estar. Tomado por um egoísmo execrável, pergunto-me: para que serve a futura grande vitória da ciência se eu já estarei morto, se já estaremos todos definitiva e irremediavelmente mortos? Compreendo muito bem o monge copista medieval na sua tarefa de preservar as verdades eternas, ou um erudito do Renascimento e os seus múltiplos cuidados filológicos para devolver a pureza dos textos onde a verdade se oculta. Gosto de ler Homero, Platão, Aristóteles ou Ésquilo como se não houvesse amanhã, nem superações, nem tempo, nem história, nem progresso. Pego nos romances ou nas obras de hoje desse modo, mas já não há quem queira escrever sub specie aeternitas. Os modernos adiaram a verdade e a vida para quando estivermos todos mortos. Não tenho remissão.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Caos e ruína?


Portugal, alguns números para começar. Em 2009, a direita (PSD+CDS) valia 40,1%, agora vale 27,7%. Arco da governação (PSD+CDS+PS) valia 66,7%, agora 59,2%. Esquerda não governamental (CDU+BE) valia 21,4%, agora 17,24%. Esquerda total (PS+CDU+BE) valia 48%, agora 48,7%. É difícil, para além de Marinho e Pinto, encontrar claros vencedores das eleições. Derrotados há. O maior é o Bloco de Esquerda, que navega num mar de equívocos e prepara-se para ficar reduzido aos pequenos grupos que lhe deram origem. A direita também saiu derrotada, mas não tanto como se pensa. Tem ainda hipóteses de vir a ganhar as próximas eleições. Depende daquilo que se passar no PS. Seguro ganhou, mas nunca uma vitória teve tanto sabor a derrota. A esquerda não governamental perdeu claramente, embora o PCP tenha subido a votação. O PCP é um vencedor não pelo aumento do número de votos ou da percentagem (sobe apenas 2%, depois de três anos de malfeitorias governamentais), mas porque o arco da governação ficou abaixo dos 60%. Esta foi a grande vitória do PCP, que também ganhou no campeonato com o BE. Falta compreender o que significa a votação em Marinho e Pinto. A situação, porém, parece caótica.

Na Europa, a direita liberal ganhou seguida dos socialistas. O dado relevante, porém, é o crescimento da extrema-direita. Nacionalistas, fascistas e nazis entraram em força para o parlamento europeu. Há um redesenhar do conflito político. Até aqui, o que estava em jogo era um conflito entre os que defendiam políticas liberais (a direita e os socialistas) e uma esquerda enfraquecida e nostálgica dos tempos onde o Estado social tinha um papel central no debate e conflito políticos. Agora o debate vai ser recentrado em torno do conflito entre liberalismo e nacionalismo, entre os que querem matar o Estado-Nação e os que se arvoram como os seus últimos defensores, isto é, a extrema-direita. Se a situação política portuguesa parece caótica, a europeia traz com ela a visão da ruína. A continuação das políticas liberais apenas conduzirá ao aumento da popularidade da extrema-direita antiliberal. Por outro lado, o retorno a uma situação anterior, onde o Estado social servia como cimento político e dique contra os extremismos, parece completamente impossível. A Europa está completamente enredada na armadilha que ela própria montou. Contrariamente ao que muita gente pensa, há coisas que se tornam inevitáveis. Provavelmente, a morte da União Europeia e uma nova época de nacionalismos Europa fora pode ser uma delas. Tempos negros esperam-nos.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O espectáculo socialista

Max Ernst - Oedipus Rex (1922)

Lembremos uma trivialidade que toda a gente tende a esquecer. A política não é o lugar da moral e os homens políticos só recorrem à moral se isso for útil. O que está em jogo na vida política é apenas uma coisa: conquistar e manter o poder. Todo o resto é acessório, incluindo os denominados interesses do povo. Para um político, qualquer que ele seja, os interesses da comunidade valem tanto como a moral. Se servirem para conquistar e manter o poder, muito bem. Caso contrário, não valem um cêntimo. Nada disto é novo. Sempre foi assim e desde Maquiavel se tem consciência de que a política é isso e nada mais.

Por isso, não vale a pena que o cidadão comum moralize a luta fratricida dentro do Partido Socialista. Nós cidadãos comuns estamos de fora e seria um grave erro perder o espectáculo com considerações de ordem moral. Os militantes socialistas apoiantes de Seguro terão razão para moralizar a situação, para falar em golpe imoral de António Costa. Mas essas palavras não representam qualquer consciência moralmente virtuosa, mas uma estratégia política do actual líder socialista e dos seus apoiantes. O eleitor comum tem tudo a ganhar com esta guerra. Caso não seja resolvido na secretaria, o conflito tornará a liderança dos socialistas mais forte, o que ampliará o leque de escolhas dos eleitores no mercado eleitoral. 

Desfrutemos a tragédia - ou será uma comédia? - que assola as hostes socialistas, a luta entre o actual incumbente - aquele rapaz com aspecto de sacristão que ameaçava o governo com abstenções violentas - e o velho pretendente - raposa batida na luta de gladiadores. É sempre um belo espectáculo ver as pretensões pessoais postas em jogo, observar os golpes que os adversários darão um ao outro, descortinar a vontade dos deuses e a forma como estes estão decididos a proteger ou a punir um dos oponentes. Nestes momentos de luta política, o pior que o homem comum poderá fazer é olhar o combate político a partir dos olhos da moral. O que, para nós, está em jogo é a qualidade estética do espectáculo, o prazer que ele nos pode dar. Veremos se os actores estarão à altura das expectativas e das pretensões que acalentam no fundo dos seus desmesurados egos.

terça-feira, 27 de maio de 2014

Tempo de espera

Carlo Carra - A Espera (1926)

Um texto novo a intercalar nos textos dos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

Se há uma coisa que devo ao curso de filosofia é o ter refinado a capacidade de me colocar de fora, tornar-me exterior, encontrar um lugar a partir do qual posso olhar e observar a trama que compõe a tragédia dos homens. A filosofia é um exercício de voyeurismo. Eu sei que colocar-se de fora não é virtuoso. Não faltarão actores - essa gente ansiosa e plena de energia produtora de acontecimentos - que verberarão aqueles que se dedicam ao vício da observação. Paciência, mas quem disse que a vida é um exercício virtuoso ou que eu pretendo cultivar as virtudes do mundo? Estar fora não tem qualquer vantagem relativamente ao estar dentro e comprometido com os negócios mundanos. O mal que atingir aqueles que estão comprometidos com o mundo atingirá também os que estão fora. Há, no entanto, um prazer específico do voyeur, o prazer de ver chegar a terrível tempestade, sabendo-se impotente para a travar. O prazer de observar aqueles que julgam evitar, pela sua estrénua acção, tempestades torná-las, a cada dia que passa, mais próximas. O prazer de saber que se está num tempo de espera, num tempo onde aquilo que foi o nosso mundo se desagrega e se prepara para desabar. O tempo de espera não é um tempo sem emoção nem acontecimentos. Pelo contrário, é a hora em que se vê os actores impotentes perante o destino, as instituições a arder, o mundo a tremer, mas que ainda não se sabe o novo mundo que nos espera. Da janela, o voyeur observa a sua casa a cair.

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O caso Marinho e Pinto

Igor Palmin - Old Tallinn, Estonia (1983)

O grande vencedor da jornada eleitoral de ontem foi o ex-bastonário da Ordem dos Advogados Marinho e Pinto. A sua eleição releva algumas linhas de força da situação política actual, as quais merecem atenção. Vale a pena salientar dois pontos.

Em primeiro lugar, esta eleição indica a grande erosão das partidos tradicionais e a emergência, em Portugal, de fenómenos políticos de grande intensidade gerados pela situação de pós-democracia em que vivemos. O facto de a democracia se ter tornado virtual, pois os eleitores estão convencidos de que a possibilidade de políticas verdadeiramente alternativas deixou de existir, abre o caminho para o voto em personagens estranhas ao fenómeno político, embora com presença mediática. É um voto refúgio gerado no desconsolo e num protesto que não se quer comprometer. É um voto pós-moderno numa pós-democracia. Mas este é apenas um lado da questão. Há outro e mais interessante.

A eleição de Marinho e Pinto é sintoma de que o país começa a ficar maduro para outra coisa. Não partilho da ideia propalada de que Marinho e Pinto seja um populista. Tem formação jurídica e política sólida, conhece bem os mecanismos do Estado de direito e parece-me prezar autenticamente os mecanismo democráticos. No entanto, há no estilo pessoal algo que surge aos olhos do público como sendo de natureza justicialista. Não é que ele o seja, mas tem, pelo discurso e pela forma como exprime esse discurso, essa aparência. Ora a sua eleição mostra que começa a haver mercado para gente mais truculenta. Não sendo Marinho e Pinto propriamente um populista, a sua eleição é o signo de que em Portugal começam a estar reunidas condições para a emergência de populismos de direita radical. A natureza invertebrada do voto pós-moderno em Marinho e Pinto pode ser apenas o prelúdio de uma metamorfose nos afectos do eleitorado. E se as coisas forem por aí, não será a faceta Marinho e Pinto racional e estruturada juridicamente que os eleitores procurarão, mas a faceta do verbo fácil e da palavra cortante, aquela que diz as verdades como quem crava punhais. Alguma coisa mudou no panorama político português.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Primo Levi, Se Isto É Um Homem


Hesito sobre como começar a escrever acerca deste livro. A primeira tentação é, tendo em conta os dias que se vivem, a da recomendação. Deixo-a de lado, e balanço entre o título Se Isto É Um Homem e a última frase do texto introdutório: Parece-me supérfluo acrescentar que nenhum dos factos é inventado. Decido-me pela frase. A pergunta que se coloca é a seguinte: por que razão o autor teve necessidade de reforçar a injunção de Coleridge para que se suspenda a descrença? Segundo o poeta britânico, suspender a descrença por parte do leitor é fundamental para que este possa atribuir verosimilhança a uma narrativa ficcional. A suspensão da descrença é uma estratégia que, ao tomar a narrativa como se fosse verdadeira, permite o investimento do leitor na leitura da obra. Ora Se Isto É Um Homem não é uma narrativa ficcional, mas uma descrição da experiência real do autor num campo de concentração nazi, entre finais de Janeiro de 1944 e finais de Janeiro de 1945. Os factos, porém, são de tal maneira inverosímeis e tão fora da experiência comum da humanidade, que mesmo um texto descritivo e factual necessita, ecoando as palavras de Coleridge, de reivindicar a sua veracidade e sublinhar a necessidade do leitor suspender a descrença.

O título do livro, Se Isto É Um Homem, é retirado do poema que surge, a abrir a obra, como invocação. O quinto verso diz Considerai se isto é um homem. Aqui encontramos o nó da estratégia narrativa. Por um lado, há uma clara preocupação em descrever a luta, dentro do campo e da sua estrutura, para se continuar a respeitar enquanto homem. Por outro, nós encontramos uma investigação descritiva - se é que a expressão faz sentido - da natureza ontológica daquele que é enviado para um campo de concentração. Que tipo de ser é aquele que, sem cometer crime algum, é sujeito a uma experiência, que mais tarde ou mais cedo deveria culminar com a morte. O verso citado traz consigo um imperativo: Considerai. Primo Levi é Químico de formação, um homem de ciência, e isso reflecte-se na forma como descreve a experiência por que passou. Um sujeito que observa um objecto de investigação, eliminando o pathos e tentando iluminar, pela descrição, a razão do acontecido.

A experiência do Lager (campo de concentração) é um desafio à definição tradicional de homem. Este, desde a época clássica dos gregos, é definido como animal racional. Como pertencente ao género animal e, dentro deste género, como tendo uma diferença específica, a racionalidade. A estratégia nazi, relativamente aos judeus, é cindir o género e a diferença específica. Ao acentuar a animalidade dos judeus e ao suprimir-lhe a dimensão racional - aquela que, na filosofia de Kant, torna o animal humano em pessoa - permite-lhes, sem qualquer problema moral, levar a cabo o gigantesco programa de genocídio de um povo, o qual, devido à cisão operada, é pensado como mero rebanho. Tanto o transporte desde Itália - onde Levi é preso com outros resistentes antifascistas - como os primeiros momentos no Lager são a realização dessa desracionalização dos prisioneiros. As condições de transporte assemelham-se, talvez sejam mesmo piores, àquelas em que seria transportado o gado. Chegados ao destino, os prisioneiros são despidos, tosquiados e tatuados com um número.

Não se perceberá nada deste processo de desracionalização dos homens se não se tiver em conta que ele é um processo que nasce da razão e tem uma estrutura profundamente racional. Por exemplo, os prisioneiros que são escolhidos para trabalhar (os outros são escolhidos para morrer) ouvem a descrição meticulosa das condições onde vão exercer o seu labor. Tudo obedece a uma lógica racional, de uma razão calculante e eficaz, que aplica à desracionalização dos prisioneiros as técnicas de eficiência e de eficácia originadas na razão moderna e iluminista, e que estão presentes tanto na razão de Estado como na lógica organizacional da empresa moderna. Partes substanciais da obra são dedicadas ao trabalho dos prisioneiros. O conceito que se deve usar não é o de trabalho, mas, e na sequência de Hannah Arendt, o de labor, esse esforço físico do animal laborans, do escravo. O labor no Lager tem uma dupla função. Por um lado, supre as necessidades de mão-de-obra dos alemães, e, por outro, sublinha, em cada dia, o estatuto de animal não racional dos prisioneiros. O labor é uma estratégia de desracionalização do animal humano e de aniquilação do estatuto moral da pessoa.

Nestas circunstâncias, o dilema que se põe a cada prisioneiro é se fará parte dos eleitos - isto é, dos que vão sobreviver - ou dos danados - os que morrem. É na luta pela pertença ao primeiro grupo que se coloca a dimensão moral transportada pelo título. O Lager é um ambiente social fervilhante, onde homens destituídos da sua condição moral de pessoas tentam, desesperadamente, manter-se na vida, isto é, preservar a sua dimensão animal. A questão moral pode-se enunciar assim: aquele que sobrevive deve-o à sua aniquilação como pessoa moral ou a sobrevivência foi acompanhada pela preservação do respeito por si mesmo. O que se descobre nas descrições de Primo Levi é que são múltiplas, e por vezes nada honrosas, as estratégias de sobrevivência. Tudo o que na vida fora do Lager está recalcado, pelas regras de civilidade e pelas competências de socialização, vem agora à superfície. Suprimida a racionalidade moral que transforma o animal humano numa pessoa detentora de direitos, emerge uma racionalidade biológica - digamos assim - que luta para triunfar, para nunca deixar de pertencer ao grupo dos eleitos, independentemente dos expedientes usados.

Esta racionalidade biológica é o outro lado da racionalidade calculante que os alemães, com os seus delírios étnicos e os seus planos de genocídio, põem em acção. O Lager  foi o lugar de uma gigantesca experiência biológica e social, um lugar onde se pôde observar o animal humano separado da razão que o torna em pessoa moral, e reduzido à sua condição de animal social. Mas esse lugar infernal que Primo Levi, com a sua razão de cientista, nos dá a ver é ainda uma outra coisa. É um espelho da sociedade alemã, na qual a própria razão, de tão hipertrofiada, se tornou em desrazão. É o espelho de uma nação onde o poder, ao perder todo e qualquer limite, se tornou absoluto e, por isso mesmo, lugar do mal absoluto. A razão pura, fora dos limites que a constrangem, torna-se na mais pura loucura, no arbítrio absoluto. O Lager é o sintoma, a prova e o espelho disso mesmo.

Primo Levi (2011). Se Isto É Um Homem. Alfragide: Teorema. Tradução de Simonetta Cabrita Neto.

Devemos votar?


Domingo haverá eleições europeias. Os candidatos desesperam na solidão a que foram abandonados e os eleitores sorriem com condescendência de uma campanha sem tino nem relevo. Por um acaso, tenho estado a ler um romance que merece leitura e meditação de todos, pois ajuda-nos a compreender a natureza do poder, de qualquer poder. Trata-se de Wolf Hall (assim, na tradução portuguesa) de Hilary Mantel. É uma obra de 2009, muito premiada, e que se inscreve no género do romance histórico. A intriga passa-se no tempo de Henrique VIII, de Inglaterra, e tem como personagem central Thomas Cromwell. O que merece meditação não será tanto o talento de homens como Cromwell, Wolsey ou More, mas o arbítrio do Rei, um arbítrio quase sem controlo. Ali observamos o poder nu e na sua verdade, na forma como se pode abater sobre qualquer um e suprimi-lo.

Dirá o leitor que estamos já muito longe do século XVI, que os governantes de hoje não dispõem do arbítrio dos reis absolutos, que vivemos em tempos menos bárbaros e que, pelo menos na Europa, já não se aprecia o espectáculo de ver cabeças a rolar no cadafalso. Será verdade, mas apenas uma verdade parcial. Os tempos estarão mais civilizados, mas a essência do poder não se alterou, nem se alteraram os desejos e anseios dos homens que ocupam esse poder. Não mandam matar, saem do poder se são derrotados nas eleições, parecem pessoas cordatas. Isso acontece, todavia, porque a consciência dos cidadãos cresceu e foi limitando a acção dos governantes. Contudo – e Portugal é um exemplo muito claro disso – seja qual for a área onde tenham liberdade, os detentores do poder não hesitam em impor a sua vontade e os seus interesses, mesmo que isso implique o mal para muita gente.

Foi porque nós cidadãos não prestámos atenção a esta liberdade dos governantes e não a limitámos pela lei que estamos na terrível situação que é a nossa. A solução não é voltar as costas à política e fazer de conta que as eleições nada têm a ver connosco. Isso apenas reforça o poder arbitrário das elites políticas e diminui a capacidade dos cidadãos em controlar a acção dos agentes políticos. Devemos votar, devemos exigir um maior limite à acção dos governos e uma maior transparência na prestação de contas. O problema de Portugal não está no tamanho do Estado, mas no excessivo poder que os governantes possuem. Chegou o tempo em que os eleitores não podem ser ingénuos, ora votando no partido do coração (como se fosse um clube de futebol), ora desistindo de ir votar. Devemos usar o voto como uma arma para limitar aqueles que detêm o poder, sejam eles quem forem.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

A odiosa perfeição

Reimundo Patiño - A Queda de Ícaro (1973)

Um texto novo a intercalar nos textos dos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

É terrível a perfeição. Não me refiro àquela perfeição que resulta do trabalho aturado e da desconfiança daquele que faz esse trabalho com o resultado da sua produção. Essa resulta de um exercício céptico e de uma descrença na virtude do próprio labor. Não, refiro-me à perfeição imaginada que invade a vida de todos os dias, os planos de cada um e os projectos colectivos. A perfeição imaginada é a mais fácil das perfeições e também a mais perigosa. Imagina-se uma coisa e, nesse acto, infunde-se a crença de que tudo correrá conforme os desejos. A nossa faculdade de desejar, porém, tem uma enorme capacidade de se enganar e de espalhar o véu da ilusão sobre a realidade. Por norma, a realidade não se converte ao desejo, resiste-lhe, vira-lhe as costas, ri-se. A perfeição final vai-se transformando num sonho cada vez mais longínquo, até que se torna em pesadelo vivo. Não há pior inimigo do que a perfeição, esse projecto de cabeças ocas e vontades vazias.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Tempos sombrios

Ángel Mateo Charris - O emigrante (1999)

Na Europa aproximam-se tempos sombrios. Nazis na Ucrânia com o apoio das potências ocidentais, perseguições a judeus, crescimento, em alguns países do antigo bloco de leste, das forças neo-nazis. Em França, Inglaterra e Holanda espera-se forte votação em partidos de extrema-direita. Haverá, noutros lugares, também fortes votações em partidos nacionalistas. Mesmo na Alemanha a perseguição ao emigrante desempregado parece estar por um fio (aqui). Podemos sempre pensar que a livre circulação de pessoas é uma utopia, e é essa utopia que está a ser desmantelada pela realidade. Talvez seja assim, mas isso apenas serve para mascarar a causa real que está a conduzir a Europa de volta aos seus tempos mais negros. A liberalização da economia mundial destruiu o modus vivendi dos europeus, destruiu grande parte da sua indústria e levou com ela os empregos, e trouxe a proletarização das classes médias. Foram as políticas ultra-liberais impulsionadas por Thatcher e Reagan, e depois seguidas pela direita e pela esquerda governamentais, que criaram as condições para que estes fenómenos se desenvolvessem. Se essas políticas não forem travadas, podemos esperar o pior. Quem estudou alguma coisa sobre a lógica sacrificial percebe, de imediato, que nestas circunstâncias os estrangeiros vão servir como bode expiatório. Os emigrantes precisam de se cuidar e de ter quem deles cuide. Mas a perseguição ao emigrante será apenas o início.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Uma cultura suburbana

Egon Schiele - Subúrbio I (1914)

Há uma cultura suburbana terrível que tomou conta do Estado e das instituições. O primeiro contacto prático que tive com essa cultura foi ao nível da educação. Há empresas que preparam, putativamente, as escolas para serem avaliadas pela inspecção. No pobre linguarejar com que tentam enquadrar uma realidade complexa como a instituição escolar, descobri que os alunos deixaram de ser alunos e passaram a chamar-se clientes. Isto, com a intervenção da troika, está a tomar conta dos serviços públicos, nos quais existe uma clara tentativa de substituir uma lógica cívica por uma lógica económica (ver Público). Este deslumbramento suburbano perante as lógicas e as denominações de mercado nem se deve, muitas vezes, a uma conduta moralmente repreensível. Deve-se, antes, a uma profunda ignorância do sentido das palavras e a um arrebatamento parolo com as modas do dia. Imaginemos apenas o caso da educação. Um aluno tem deveres, entre eles o de estudar. Um cliente - supondo que paga de alguma maneira - tem apenas direitos, o direito de ser servido. Só quem não pensa, pode achar que as palavras não têm importância. Doentes e alunos não são clientes, são sujeitos portadores de direitos e de deveres, os quais não são reguláveis pelas lógicas mercantis que instauram a relação fornecedor-cliente. Nada há de mais irritante do que esta imposição de uma cultura suburbana por parte dos múltiplos desbiografados que se multiplicam nos diversos nichos de poder.

domingo, 18 de maio de 2014

Sem-abrigo

Joe Reilly - Homeless hands on Thanksgiving Day (aqui)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 18.12.2009.

Está ali, 30 anos depois de o ter conhecido. Na altura, dava-lhe talvez uns sessenta anos. Era um excesso, certamente motivado pela juventude do meu olhar. Naqueles tempos, era a personagem mais altiva que conhecia. Nunca conheci ninguém, mesmo depois, tão altivo, arrogante, de uma pesporrência sem fim. Usava a frieza do olhar azul para colocar o mundo à distância, combinava a estranheza do saber com o sangue de família para esmagar pessoas como se fossem mosquitos. Os anos passaram, e essa personagem desapareceu, aliás rapidamente, do meu horizonte. Não que a tenha esquecido. Talvez a sua estratégia fosse a de ficar na memória dos outros pela sobranceria do comportamento. Voltei a vê-la há dias. Discurso ainda articulado, mas tudo o resto se tinha desvanecido. Numa conferência, lá estava na assistência, agora para mendigar uns minutos de tempo de antena. Até aquele momento nunca tinha conhecido um verdadeiro sem-abrigo.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Vender a alma ao diabo


Não há estatuto social mais equívoco que o da classe média. Emergindo do fundo da sociedade, a sua posição dá-lhe a ilusória certeza de que está mais perto das classes altas do que dos baixios sociais de onde proveio. Logo na primeira geração, tende a traçar uma fronteira intransponível com o mundo de onde partiu. Isso reflecte-se na orientação eleitoral. Pacheco Pereira deu uma particular atenção ao fenómeno, sublinhando as transferências de votos do PCP para o PSD, nos tempos de Cavaco Silva.

As pessoas pertencentes à classe média – antiga ou nova – desconhecem, porém, que a sua posição social é a mais precária de todas. Resulta, nas sociedades contemporâneas, de uma concessão. Na Europa, esse estatuto cresceu devido ao medo do comunismo. A criação de amplos estratos médios foi uma estratégia de aliciamento das pessoas. Uma espécie de compra de consciências para que, falhando o ardil da religião, a tentação revolucionária não conduzisse largas massas a aceitar a retórica comunista e os ideais igualitários. Agora que o perigo vermelho morreu, as classes médias são um estorvo. Ganham demasiado e concentram em si dinheiro muito desejado por aqueles que em tempos as fomentaram.

Uma das fontes de fabricação de classe média foi, tradicionalmente, a universidade. Durante muitos anos, o ensino superior representou uma linha de demarcação social importante. O estatuto social de advogados, médicos, engenheiros, arquitectos, até de professores de liceu separava-os dessa linha terrível abaixo da qual o status é se não pouco recomendável, pelo menos olhado com desdém. Esse estatuto, porém, era uma ficção. Os portugueses estão a descobrir isso. O saber está longe de ser um poder. Hoje muitos engenheiros, professores, arquitectos, advogados – amanhã serão os médicos -, etc. têm como horizonte o salário mínimo, por vezes menos. Não só porque, intencionalmente, foram fabricados mais licenciados do que o necessário, mas também porque o declínio das classes médias é muito mais irrevogável que a palavra de Paulo Portas.

Nas próximas eleições europeias, iremos encontrar uma resposta a esta decadência da classe média. Não em Portugal, pois tudo chega aqui com alguns anos de atraso, mas por essa Europa fora. O ressentimento das classes médias em vias de proletarização vai fazer crescer exponencialmente a extrema-direita. Em desespero, com os laços cortados com a antiga condição social e com os partidos de esquerda que as ajudaram a chegar ao seu estatuto, as classes médias europeias preparam-se para, mais uma vez, vender a alma ao diabo.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

O amor à novidade

Paul Gauguin - O que há de novo?

Os marinheiros - diz ele - não gostam de nada que seja novidade.
- Nem ninguém - dissera ele. Tanto quanto sei.
Não pode haver novidades em Inglaterra. Pode haver coisas antigas com uma nova apresentação, ou coisas novas que finjam ser antigas. (Hilary Mantel, Wolf Hall)

Este diálogo - um diálogo ficcional - pertence ao início do século XVI, quando se aproxima a queda do poderoso cardeal Thomas Wolsey, incapaz de dobrar o Vaticano ao premente desejo de Henrique VIII em desfazer o casamento com Catarina de Aragão e, assim liberto, poder desposar Ana Bolena. Estamos na antecâmara dos tempos modernos, os mercadores exercem já uma considerável influência social, mas o gosto pela novidade parece ainda não se ter instalado. Pode-se sempre suspeitar que este desprezo pelo novo é um reflexo do Renascimento e da desenfreada paixão pelas antiguidades, pelos clássicos greco-latinos. Estamos ainda longe - mais de um século - da célebre querela, ocorrida em França, entre os antigos e modernos. Este temor pela novidade, todavia, é um sentimento mais profundo que as disputas artísticas sobre os modelos a seguir. 

Teme-se que a novidade seja um desarranjo do mundo, a introdução de um princípio caótico que ameaça destruir o cosmos. Mesmo o nascimento de um filho não é sentido como o advento do novo, mas como a continuação do passado, através do reforço de uma linhagem, seja esta nobre ou plebeia. A novidade é, genericamente, temida pelas culturas tradicionais. O intenso ardor pela novidade só pode ter sido obra de mercadores ávidos de encontrar novos mercados e assim poderem enriquecer. A novidade, na verdade, é filha da cupidez. É esta que move o mundo e que conduz ao frenesim pela busca do novo. Nunca pensamos o suficiente sobre a vitória do espírito mercantil. Protestamos quando o nosso mundo se desarranja e a nossa vida perde o sentido e a solidez que julgámos um dia ancorada na ordem das coisas. Esse, porém, é o preço a pagar pelo amor à novidade e pela vitória do espírito mercantil.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Sonhos lúcidos

Wassily Kandinsky - Small Dream in Red (1925)

Consta que, aplicando uma certa quantidade de energia eléctrica ao cérebro, o sonhador pode transformar um sonho - de preferência um pesadelo - num sonho lúcido (Público). Um sonho lúcido é aquele em que o sonhador sabe que está a sonhar e consegue controlar o próprio sonho, o que poderá levar a que evite, no sonho, certas situações dolorosas. A responsável pelo estudo alvitra a possibilidade de, no futuro, poder haver intervenções terapêuticas, nomeadamente nos sonhos pós-traumáticos. Certamente que as aplicações médicas serão interessantes e, eventualmente, beneficiarão os pacientes. 

No entanto, há neste conceito de sonho lúcido um desafio a crenças fundamentais do último século. A ideia de que o sonho pertence ao domínio do inconsciente, a esse domínio onde o eu não é já o eu, a esse lugar onde a luz da razão não penetra. A razão cartesiana - com a sua luz natural - volta-se agora, em busca de certeza e consolo, para dentro dos sonhos do homem. Alguém dado à ironia, e conhecedor de Descartes, diria que esta é mais uma tentativa para fornecer a Descartes um poder para discernir a realidade do sonho. A verdade, porém, é que este é mais um passo no controlo da realidade global do homem e um avanço na transformação da realidade humana. A aplicação da luz da razão ao homem acaba por lhe retirar o mistério que o envolve e torná-lo de tal maneira transparente que chegará a hora em que nada poderá esconder dos outros ou de si mesmo. Duvido que um estado de completa e total lucidez sobre nós e os outros seja uma coisa diferente da vida no inferno.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Uma estranha pátria

Buenaventura Aumatell Tarradellas - Utopia da liberdade (1987)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 09.12.2009.

O desafio. Ser racional e desconfiar da razão. Viver racionalmente na conduta social e privadamente descobrir os limites dessa racionalidade. Será a razão filha da política? Resultará essa faculdade do exercício do cálculo na relação com o outro e da necessidade de agir segundo a justa medida? Será ela um produto da praxis? A tradição ocidental pensou o homem como animal racional. Nietzsche pensou-o como uma ponte entre o animal e o sobre-homem. Mas se o homem é uma ponte, que coisa nele fará com que seja essa ponte. Não a condição animal, pois essa é uma das margens. Resta a conclusão: a razão é uma ponte. As pontes ligam o aquém e o além. O aquém da razão todos conhecemos, são os afectos, as emoções, as pulsões. Mas o que será o além da razão? O que será a sobre-razão? Para além da ponte está a não ponte. A sobre-razão só pode ser uma não-razão. Qual o território dessa não-razão? A infra-razão, o aquém da razão, tem por território a necessidade natural, físico-biológica, a razão habita o território da necessidade social, pois não é ela a filha da praxis política? À sobre-razão resta-lhe um estranho território, o da liberdade. Onde cessam as necessidades naturais e a sociais, começa o país da liberdade. A razão ainda é uma prisão para aquele que se quer aventurar nessa estranha pátria. Não basta, para ser livre, desconstruir as estratégias do corpo como pensou Platão e a tradição ocidental com ele. Não basta opor a razão ao corpo, o espírito à matéria. Não basta sequer perorar contra os dualismos, cartesianos ou outros. O corpo encerra a razão, a razão encerra a liberdade. A sobre-razão talvez seja a faculdade de abandonar ambos os cativeiros. Mas como será possível uma sobre-crítica dessa sobre-razão que lhe assinale os direitos e os limites? Talvez o território da liberdade não tenha limites e o que penetra nele esteja liberto de direitos e de deveres.

domingo, 11 de maio de 2014

Afinal era um resgate dos bancos

Rodney Smith - Twins Leaning Outward (1997)

O senhor Philippe Legrain - conselheiro independente de Durão Barroso entre 2011 e Fevereiro de 2014 - veio tornar claro, em entrevista ao Público, aquilo que muita gente afirmava. Que o resgate financeiro não visava servir os países que o suportaram nem sanear as suas finanças públicas, mas resgatar os bancos alemães e franceses. Muitas são as ignomínias que o senhor Legrain elenca, mas aquela que deveria ser olhada com mais atenção é a da promiscuidade entre os bancos e os políticos. Estes surgem como agentes dos interesses dos bancos e, tendo em vista o cumprimento do laço feudo-vassálico informal a que estão presos, desprezam os cidadãos e não hesitam em transformar a vida das pessoas num autêntico inferno, adoptando políticas erradas apenas para defenderem aqueles que na verdade representam. A questão essencial é da falsa representação ao nível democrático. Podemos pensar que, desde há muito, o laço entre representantes políticos e representados é ténue. Talvez, mas nunca como agora isso se tornou tão claro. Na prática, o sistema democrático já não é democrático - e isto não é apenas um problema europeu, pois passa-se o mesmo nos EUA -, apesar da sua aparência formal. Na pós-democracia em que vivemos, representantes eleitos e cidadãos representados estão de costas viradas uns para os outros e vivem realidades completamente diferentes.

sábado, 10 de maio de 2014

Baptista-Bastos, Elegia para um caixão vazio


Elegia para um caixão vazio foi publicado pela primeira vez em 1984. Representa, ao mesmo tempo, a crónica da desilusão de uma geração e a recapitulação da construção de uma subjectividade, a tentativa, através da rememoração, de solidificar essa subjectividade, quando o pano de fundo – com os seus mitos e os seus imperativos – onde ela se formara se desvanece e o mundo, impiedoso, desenha caminhos tão desencontrados daqueles que o protagonista desejara.

A subjectivação do protagonista gira em torno de dois topos centrais. Na verdade, trata-se de duas utopias que percorreram uma parte daqueles que pertencem à geração de sessenta do século passado. Uma dessas utopias é de natureza política, a da construção de uma sociedade liberta da dominação económica e social. A outra é de natureza erótica ligada à libertação sexual. É no confronto com os imperativos da pólis e com as solicitações de eros que o indivíduo se constrói e organiza a mitologia e os rituais que compõem a sua existência.

Tudo isto, porém, é já objecto de um exercício da memória, como se pertencesse a um outro mundo a cuja verdade, e à maneira do platonismo, se acedesse através da reminiscência. Esta referência ao platonismo não é despropositada, pois os mundos utópicos surgem idealizados e os objectivos do protagonista purificados. No entanto, essa idealização geracional é sempre apresentada tendo por pano de fundo o trágico da existência com aquilo que a vida tem de decepcionante e longe da idealidade. O sexo surge como um mundo caótico e os companheiros de luta política nem sempre se apresentam como moralmente virtuosos. Mas o contraponto mais verrumante com estes mundos utópicos reside na tentação omnipresente do álcool. O álcool é a confissão de que o entusiasmo político e o êxtase sexual estão longe de preencher a ânsia de plenitude que assola a personagem central do romance.

Entre a idealização e a realidade vai uma longa e cruel distância. As aspirações políticas da geração de sessenta – ou de uma parte dela – mostraram-se impotentes para dobrar o curso do mundo. Se o 25 de Abril ainda apresentou, por um momento, a possibilidade de fazer inscrever o ideal utópico no terreno concreto das relações sociais, os anos oitenta são um tempo onde todas as ilusões acabam, e uma imensa decepção se abate sobre quem julgou ser possível uma revolução social que permitisse aos homens descobrir a sua efectiva fraternidade e construir uma sociedade mais igualitária. O romance de Baptista-Bastos também é, por isso, uma crónica da decepção, o reconhecimento de uma derrota, talvez uma tentativa de salvaguardar, para memória futura, a elevação moral dos pressupostos da geração a que pertenceu.

O conflito central, estruturante da narrativa, joga-se, porém e de forma surpreendente, entre o espaço público e o espaço doméstico. Na verdade, o protagonista escreve em casa rodeado pela família, pela mulher e pelos filhos, pelo sogro que ali vem ler os jornais. Este é o ambiente onde está, efectivamente, a personagem principal do romance, uma esfera doméstica, um mundo tecido pela banalidade da vida familiar, pelas solicitações dos filhos, pelas injunções da mulher. As aventuras no espaço público – políticas ou eróticas – são já só recordações, memórias, anamnese. Eis a realidade que se opõe à exaltação do tempo utópico onde a esperança política estava viva e a sexualidade era uma promessa, nunca cumprida, de entusiasmo dionisíaco.

Não se trata apenas de mostrar o desencanto de uma geração que viu o desfazer da sua mitologia, mas também de sublinhar a retracção do espaço público onde os homens agiam, tanto no domínio político como no erótico. O caixão vazio é uma metáfora sobre Portugal, a sua configuração, o facto de parecer não ter lá dentro um povo. Mas por contiguidade, por efeito metonímico, pode-se pensar o espaço desse caixão vazio como o espaço público de onde parece haver uma retirada generalizada. Não haverá, por certo, maior confissão de derrota do homem público do que a sua redução à condição doméstica. É esta domesticidade que conduz às palavras finais do romance: Creio que estou na idade de escrever um livro de amor.

Baptista-Bastos (2009). Elegia para um caixão vazio. Alfragide: Oficina do Livro. Primeira edição: 1984.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Campanha eleitoral


A campanha eleitoral para as eleições legislativas de 2015 começou no domingo com o anúncio ao país da chamada saída limpa de Portugal do resgate financeiro. Exibida como a coroa de glória da governação e oferecida como testemunho da capacidade daqueles que governam, não tardará a ser apresentada como penhor para solicitar os votos dos portugueses. Esta farsa esconde uma realidade tenebrosa.

Esconde que o ajustamento pouco teve a ver com o défice do Estado. Pelo contrário, a dívida hoje é muito superior à que existia em 2011. O ajustamento serviu para destruir um conjunto de direitos e de garantias da generalidade das pessoas. Teve ainda como finalidade começar a grande desarticulação dos serviços sociais (Saúde e Educação).

Esconde que este programa não era uma inevitabilidade. Haveria, como defenderam pelo menos dois prémios Nobel da Economia, outras formas mais eficazes e menos dolorosas de fazer o ajustamento e de enfrentar o problema do défice do Estado. Na verdade, o ajustamento português foi uma conspiração entre as elites políticas europeias para empobrecer as classes populares e destruir as classes médias. Foi uma enorme experiência social de destruição dos mecanismos comunitários.

Esconde que a saída limpa foi feita à custa de um aumento enorme de impostos, de uma diminuição drástica de salários e de pensões nos serviços do Estado e da destruição compulsiva de empresas e de empregos. Em conexão com isto, assistimos a um aumento exponencial da emigração, a qual atingiu níveis idênticos aos dos anos sessenta do século XX.

Esconde que este processo foi uma forma de transferência de rendimento das classes médias e populares para o clube dos ricos. Sem que o país tivesse visto desenvolver-se a sua capacidade produtiva, um pequeno grupo viu os seus rendimentos aumentar desmedidamente, enquanto a generalidade dos portugueses empobrecia.

Esconde que nada daquilo que é inútil no aparelho do Estado foi mexido. A única despesa cortada foi a de salários e de pensões, mas toda a estrutura burocrática – produto do famoso jobs for the boys – manteve-se incólume. A chamada reforma do Estado não reformou coisa nenhuma, não mexeu nos interesses que o colonizam e sugam os recursos da comunidade.

A partir de agora, a campanha eleitoral vai endurecer. É provável que, até às eleições, nada de muito essencial seja mexido, mas uma nova vitória em 2015 da actual maioria abrirá caminho para a destruição irreversível da componente social do Estado português. É isso que está em jogo.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

A História não dorme

Salvador Dali - Desintegración de la persistencia de la memoria (1952-54)

As sondagens mostram que os grupos de extrema-direita vão ter um bom resultado e em França e na Holanda deverão ganhar, o que os torna potencialmente na mais poderosa força política do próximo parlamento. (Público)

O que estamos a assistir poderia encontrar explicação no título do quadro de Salvador Dali. Literalmente, estamos perante a desintegração da persistência da memória. Enquanto a memória viva dos horrores do século XX persistiu, as políticas europeias foram cuidadosas, evitaram extremar-se do ponto de vista económico e apontaram sempre na direcção do equilíbrio dos interesses, naquilo a que se convencionou chamar o pacto social-democrata. A partir dos anos 70 do século passado a memória começou a turvar-se. Foi um processo relativamente moroso, mas que recebeu um estímulo impensável com a queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética. A partir daí, os agentes políticos e os interesses económicos pensaram que tinham entrado num admirável mundo novo. Estavam, enfim, livres da persistente memória que vinha acumulando pavorosas recordações desde os finais do século XIX até ao final da segundo guerra mundial. Entregaram-se, então, à destruição dessa memória e, ao mesmo tempo, recomeçaram o jogo, há muito interrompido, da mercantilização da sociedade. Só os ricos contam agora. Tudo, mas mesmo tudo, perdeu valor ou dignidade e passou apenas a ter um preço cuja verdade é ditada pelo mercado. Se uma memória  humana persistente pode ser desintegrada pelo fetichismo do mercado, a História, todavia, está longe de ser uma deusa benévola e cordata, mesmo se a tentam enfeitiçar e perante ela exibem grandes e deslumbrantes fetiches. Aquilo que estava a dormir voltou. Está em força na Ucrânia e prepara-se para entrar, agora em grande estilo, no Parlamento Europeu. Como Deus, a História não dorme.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

O espírito da adolescência

Jaime Burguillos - Ocaso (1976)

Um texto novo a intercalar nos textos dos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo blogue averomundo.

É bom quando nada acontece, dizia Bjartur. 
Alguns queixam-se  da monotonia,
são marcas da adolescência,
as pessoas sensatas abominam acontecimentos.
(Halldór Laxness, Gente Independente, p. 324)

Nunca como nos dias de hoje o espírito da adolescência foi tão vincado. O desejo de acontecimentos, a impaciência por não ocorrer nada, a frívola busca da acção, tudo isso revela a imaturidade que tomou conta do Ocidente, uma imaturidade cheia de terrores que impelem os indivíduos para o fazer acontecer, como se a vida não passasse de uma promoção contínua de eventos. O espírito de iniciativa, alçado com a modernidade ao primeiro plano, é a marca dessa adolescência tornada eterna. Não se compreende, porém, que fazer acontecer é aproximar do fim, fazer com que o ocaso, o pôr-do-sol, ocorra mais rapidamente e tudo mergulhe nas trevas da noite.

terça-feira, 6 de maio de 2014

A voz do poder e a voz da verdade

Lee Miller - Oasis village, Egypt (1936)

Uma das experiências mais marcantes destes três últimos anos foi a do peso da voz do poder. Não podemos dizer que as liberdades foram aniquiladas, que a pluralidade de expressão desapareceu, que não existiu contraditório. Não, todos os mecanismo formais da liberdade de expressão estiveram e estão activos, não existiu nem existe censura, houve e há uma razoável oportunidade para escutar as oposições. No entanto, o poder teve a capacidade e o talento para impor uma interpretação da realidade e fazê-la surgir aos olhos das pessoas como sendo verdadeira. Uma verdade incómoda e dolorosa, mas uma verdade. Como é que a falsificação da realidade conseguiu ser imposta como a verdade? Como é que o mais árido dos desertos é apresentado e aceite como um oásis? 

Havia e há, por parte dos receptores, uma predisposição para aceitar a mensagem do governo. Ela é simples e vai ao encontro do senso comum. Resume-se à ideia de que se estava a gastar acima das nossas possibilidades, o que contraria as regras da economia doméstica que o senso comum de qualquer cidadão entende. Depois, os discursos alternativos eram plurais. E esta pluralidade chocou com o monolitismo do governo e dos seus apoiantes. Além de plurais, esses discursos eram complexos. Pouca gente tem capacidade para reconhecer a complexidade dos contra-argumentos ou para desconfiar do carácter enganador do senso comum. Por fim, a voz do governo teve um conjunto muito amplo e fiel de amplificadores na comunicação social e nos blogues.

Tudo isto, contudo, não é suficiente para perceber como é que um discurso falacioso sobre a realidade teve poder para se impor como verdade. A razão reside no facto de ele estar escorado no poder. No poder político e no poder económico. Apesar da atitude maldizente dos portugueses relativamente aos políticos e aos ricos, existe neles uma clara sacralização do poder. No íntimo, veneram os ricos e santificam a palavra dos políticos, se estes possuem poder. Foi esta sacralização dos poderes - tanto mais vistos como sagrados quanto mais são verberados da boca para fora - que permitiu que o discurso do poder se tornasse aceitável, que o deserto fosse visto como um oásis, e que a voz do poder fosse a voz da verdade.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Suspeita

Max Beckmann - Acrobat on the Trapeze (1940)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 21.11.2009.

Marx, Nietzsche, Freud. A escola da suspeita, a luta contra a idolatria, a desmontagem do bezerro de ouro. Mas que deus anunciavam estes estranhos profetas? A libertação da opressão, o crepúsculo dos ídolos, a inevitabilidade de uma ilusão. Mas se suspeitarmos da suspeita, se contra ela virarmos a sua poderosa máquina hermenêutica, o que nos resta? 

domingo, 4 de maio de 2014

Metamorfoses 33 - Os navios que passam sob o olhar

Raoul Dufy - Cais de Le Havre ao entardecer (1901)

33. Os navios que passam sob o olhar

Os navios que passam sob o olhar
devolvem o eco do que fui,
a memória rasurada do que acabou.

Sentado no cais, olho as pequenas mudanças,
o tiritar da vida sobre as águas,
o rosto ignorado da primeira infância.

Não tenho biografia nem desejo de futuro.
Basta-me o ardor desta hora
e uma canção velha e sem melodia.

sábado, 3 de maio de 2014

O orgulho da autonomia

Rodney Smith - A. J. on Ladder (1994)

Ouvido e não ouvido, respondeu Bjartur. Não posso negar que não tenha ouvido rumores acerca daquela trapalhice das associações. E fizeram-me uma visita na Primavera com esse intuito. Mas até agora tenho tido por hábito reger-me de acordo com as minhas ideias e não por aquilo que os outros me dizem, mesmo que se trate daqueles dois de Rauðsmýri. (Halldór Laxness, Gente Independente, p. 237)

A leitura do romance de Halldór Laxness é um momento de confronto com uma virtude social que é débil em Portugal. Bjartur, o protagonista da obra, é o protótipo da independência. Toda a sua luta tem por finalidade construir uma vida, para si e para os seus, em que não haja dependência de terceiros, seja de indivíduos ou de instituições, como a paróquia, no caso do romance. Este espírito de autonomia torna as comunidades mais exigentes e o jogo social mais transparente. Um espírito de independência é o fundamento do controlo do poder político por parte dos cidadãos e da autonomia e liberdade da própria comunidade política.

O facto desta virtude ser muito débil em Portugal tem-nos conduzido a múltiplos momentos como os que estamos a viver ou a regimes ditatoriais como o foi o Portugal do Estado Novo. Hoje em dia, está na moda a crítica à excessiva dependência das pessoas relativamente ao Estado social. Esse, porém, é apenas um aspecto de algo muito mais grave. A própria sociedade está presa numa teia de dependências de natureza feudal, na qual os vassalos prestam homenagem e tributo ao soberano, ficando assim na sua mão, embora não seja já muito claro quem é o soberano e quem é o vassalo.

Esta teia de relações de dependência - teia tecida pelos fios da política, da religião e da economia - é um jogo jogado por aqueles que possuem já algum peso social e algum poder de troca. Essa teia, porém, tem tido, ao longo da nossa história, um terrível papel. É nela que ficam presos ou outros, aqueles que pouco ou nada têm. É nela que eles aprendem a servidão e o espírito tão pouco liberal de dependência de terceiros. Enquanto os portugueses forem tributários do espírito de dependência, só podemos esperar a continuação indefinida do sarilho onde estamos metidos. Bjartur é um herói islandês. Talvez isso explique a forma como a Islândia lidou com uma situação tão aflitiva como a nossa. Portugal precisa de muitos e muitos Bjartur, de pessoas que afirmem o orgulho da sua autonomia e sublinhem a cada instante o desejo de ser independente.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

E agora?

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Este último artigo sobre o 25 de Abril visa o depois, não a história que sucedeu nos últimos quarenta anos, mas o depois que está em marcha neste momento. Podemos começar com um problema: o rumo do país ainda se insere no 25 de Abril? Se olharmos as comemorações deste ano, descobrimos duas respostas. A ausência dos capitães de Abril das comemorações oficiais diz-nos que não. O facto de o primeiro-ministro ter usado, nessas comemorações, um cravo vermelho na lapela diz-nos que sim.

O dia 25 de Abril representa, na verdade, uma abertura do país a múltiplos caminhos. O actual – a construção de uma sociedade liberal – fazia parte desses caminhos. Por muito que não se goste, ele ainda é um florescimento do 25 de Abril e inscreve-se nas possibilidades então abertas. As opções políticas tomadas são legítimas, pois foram sufragadas pelos eleitores e são controladas institucionalmente e pela opinião pública. Resultam da liberdade de escolha que o 25 de Abril instituiu, de forma ampla e séria, pela primeira vez em Portugal. Negar isto pode ser consolador, mas substitui o exercício da razão pelo ressentimento.

Este tipo de negação prende as pessoas a um conflito ilusório entre as políticas actuais e aquilo que imaginam que foi – ou deveria ter sido – o caminho do país. Esse passado real ou ideal acabou. Está morto. Essas possibilidades abertas pelo 25 de Abril estão consumadas e encerradas. Há que olhar para as possibilidades que se abrem a partir da realidade que vivemos e não daquela que gostaríamos de viver. Isto significa que não há alternativas às actuais políticas? Não, significa antes que é preciso pensar novos caminhos, caminhos que entrelacem a crescente liberalização das sociedades e os processos de equilíbrio social e de solidariedade interclassista e intergeracional.


Significa ainda que precisamos de aprender uma nova e mais exigente atitude onde se inscreve a vertente competitiva e a vertente solidária. Precisamos de pensar a sociedade como um conjunto de redes de indivíduos autónomos, mas ligados entre si. Precisamos de compreender os limites da intervenção do Estado nos processos de solidariedade e descobrir novas formas de a instituir. O novo caminho que Portugal está a seguir – uma das portas que Abril abriu – pode ser amaldiçoado, podemos sentir traição nele, mas nada disso é essencial. O importante é pensar e agir para, nestas novas circunstâncias, tornar a sociedade portuguesa, ao mesmo tempo, mais competitiva e mais justa. Isso dá que pensar, o que nem sempre gostamos de fazer. Mas poder fazê-lo foi outra das portas que Abril abriu.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Vassili Grossman, Tudo Passa


De que trata este romance (Tudo Passa) de Vassili Grossman? Não é apenas um retrato arrepiante - ainda que o seja - da Rússia sob as mãos de Estaline. No cerne da trama romanesca está um conflito entre o desejo e a tradição. O desejo de liberdade, não só da liberdade no sentido das liberdades públicas, mas de uma liberdade essencial, aquela que era reconhecida aos cidadãos gregos e negada aos escravos. Essa liberdade de ir e vir, de fazer o que lhe aprouver sem ter de dar contas a ninguém, que é uma liberdade mais funda do que a liberdade política. A tradição que conflitua com a liberdade é a da servidão, da subjugação do homem a poderes incomensuráveis que o oprimem e o reduzem a zero. Essa tradição da servidão está presente na história da alma russa, nas velhas instituições da Igreja e do Czar, mas que, com a revolução bolchevique de 1917, se prolonga no Estado planificador, um Estado que planifica e controla a vida até aos mais ínfimos pormenores.

Ivan Grigorievitch é libertado depois de 30 anos num campo de concentração soviético. Tinha sido encarcerado devido a uma denúncia de um colega. Na verdade, não cometera qualquer crime. Era mais uma das inúmeras vítimas do terror estalinista e das grandes purgas dos anos trinta. Como no Terror na Revolução Francesa, também na União Soviética a mínima suspeita sobre a virtude revolucionária era suficiente para conduzir alguém à perdição. Perdição que tanto podia resultar no fuzilamento como no internamente num Gulag (campo de concentração). A libertação deve-se à morte de Estaline e ao início do período de crítica ao estalinismo na União Soviética, a época de Nikita Krushchev. A grande questão que se coloca ao protagonista é se aquela libertação significa mesmo uma transição para a liberdade.

O romance dá-nos a ver como a paranóia do terror centrada num Estado totalitário e planificador reduz a pessoa a um zero. Não é apenas o encarceramento durante 30 anos que aniquila Ivan Grigorievitch, mas o corte radical com o mundo e com os laços pessoais que lhe é imposto. Ao sair, descobre que a namorada lhe deixara de escrever há muito não por ter morrido, como supunha, mas porque acabara por casar com outra pessoa. Ao dirigir-se à casa de família, descobre que a mãe morrera e a casa desaparecera. Com isto, o autor sublinha algo de inesperado. Num regime comunista, onde era suposto a existência de fortes laços comunitários, a vida humana é atomizada e os homens apenas possuem laços muito ténues, efémeros, passageiros, como o próprio título do romance sublinha.

Esta atomização do mundo da vida resulta da corrupção moral da sociedade soviética derivada da ausência de liberdade e de um Estado planificador todo-poderoso. A corrupção moral é dada pelo clima de denúncia instituído, pelas cedências que as pessoas se sentem obrigadas a fazer para poderem singrar na vida. Num espaço político em que o Estado tudo controla, a moral é reduzida a um jogo ardiloso de sobrevivência à custa da negação dos princípios de lealdade com os amigos, de respeito pelo outro e por si mesmo. Este clima moral tem como principal vítima a liberdade. A liberdade mais básica é aniquilida se temos medo do vizinho, do colega de escola ou de trabalho, do familiar, se se correm riscos de ver transformado um conflito pessoal num crime político, devido ao mecanismo da denúncia instituído. Uma ausência de liberdade tal que transforma a voz num mero sussurrar.

Na trama romanesca, Vassili Grossman dá-nos a ver o resultado terrível de uma sociedade planificada. Aquilo que poderia ser uma opção meramente económica entre uma economia de mercado e uma economia do plano (esta seria, defendia-se, uma forma de eliminar a irracionalidade do capitalismo) transbordou para a própria vida social na URSS. Não apenas a produção e distribuição de bens obedecia ao plano quinquenal, mas toda a sociedade estava sujeita à planificação. O próprio terror das purgas estalinistas do anos trinta, de que o protagonista é vítima, bem como a morte de milhões de camponeses ucranianos (a narrativa destes casos é um dos grandes momentos do romance), nas fomes de 1932-33, são planificadas, obedecem a uma decisão e a um objectivo político previamente determinado. Uma sociedade do plano não significa apenas a intrusão do Estado na vida dos homens, o aniquilar da sua liberdade. Significa também a sua redução a zero. E se cada ser humano é um zero, o seu assassinato é irrelevante.

O romance combina narrativa e ensaio, mas este não é um acrescento aos acontecimentos, mas o resultado da reflexão a que o próprio Ivan Grigorievitch é conduzida pelas suas experiências existenciais. Não é um filósofo que teoriza, mas um homem marcado pela vida que medita. Medita sobre o quê? Sobre a relação adversa entre a Rússia e a liberdade, sobre a longa tradição de servidão. Estaline não perverteu a obra de Lenine, não. Estaline foi o fiel continuador do leninismo e da determinação dos brilhantes bolcheviques que fizeram a revolução de Outubro. Estaline não é a causa, é apenas mais um. A figura de Lenine merece uma longa meditação por parte de Grigorievitch. O dirigente da revolução de Outubro é um homem dúplice. Alguém que nas relações pessoais é bondoso. Um homem culto e ocidental, mas absolutamente impiedoso e incapaz de escutar as razões do outro quando se trata de assuntos de poder. O autor poderia ter integrado Lenine na leitura que Maquiavel faz no Príncipe, mas opta por o colocar na longa tradição de despotismo e servidão russos, encarnados na relação dos homens com a Igreja Ortodoxa e o Czarismo. Com isto, abre o caminho para tornar patente que a revolução bolchevique de 1917 acabou por ser um corte com a janela de liberdade que tinha sido aberta no século XIX com o fim da servidão e em 1917 pela revolução de Fevereiro. Acabou por ser uma continuação do despotismo czarista por outros meios. O que interessa ao romancista Vassili Grossman é menos a meditação sobre o poder mas a interrogação sobre a liberdade e a sua trágica falência na Rússia. Liberdade essa que é o princípio fundamental de toda a existência humana digna desse nome e também de toda a arte. Liberdade que não passava de um mero desejo perante a longa e férrea tradição do despotismo russo.

Vasili Grossman (2013). Tudo Passa. Alfragide: D. Quixote. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.