quinta-feira, 1 de maio de 2014

Vassili Grossman, Tudo Passa


De que trata este romance (Tudo Passa) de Vassili Grossman? Não é apenas um retrato arrepiante - ainda que o seja - da Rússia sob as mãos de Estaline. No cerne da trama romanesca está um conflito entre o desejo e a tradição. O desejo de liberdade, não só da liberdade no sentido das liberdades públicas, mas de uma liberdade essencial, aquela que era reconhecida aos cidadãos gregos e negada aos escravos. Essa liberdade de ir e vir, de fazer o que lhe aprouver sem ter de dar contas a ninguém, que é uma liberdade mais funda do que a liberdade política. A tradição que conflitua com a liberdade é a da servidão, da subjugação do homem a poderes incomensuráveis que o oprimem e o reduzem a zero. Essa tradição da servidão está presente na história da alma russa, nas velhas instituições da Igreja e do Czar, mas que, com a revolução bolchevique de 1917, se prolonga no Estado planificador, um Estado que planifica e controla a vida até aos mais ínfimos pormenores.

Ivan Grigorievitch é libertado depois de 30 anos num campo de concentração soviético. Tinha sido encarcerado devido a uma denúncia de um colega. Na verdade, não cometera qualquer crime. Era mais uma das inúmeras vítimas do terror estalinista e das grandes purgas dos anos trinta. Como no Terror na Revolução Francesa, também na União Soviética a mínima suspeita sobre a virtude revolucionária era suficiente para conduzir alguém à perdição. Perdição que tanto podia resultar no fuzilamento como no internamente num Gulag (campo de concentração). A libertação deve-se à morte de Estaline e ao início do período de crítica ao estalinismo na União Soviética, a época de Nikita Krushchev. A grande questão que se coloca ao protagonista é se aquela libertação significa mesmo uma transição para a liberdade.

O romance dá-nos a ver como a paranóia do terror centrada num Estado totalitário e planificador reduz a pessoa a um zero. Não é apenas o encarceramento durante 30 anos que aniquila Ivan Grigorievitch, mas o corte radical com o mundo e com os laços pessoais que lhe é imposto. Ao sair, descobre que a namorada lhe deixara de escrever há muito não por ter morrido, como supunha, mas porque acabara por casar com outra pessoa. Ao dirigir-se à casa de família, descobre que a mãe morrera e a casa desaparecera. Com isto, o autor sublinha algo de inesperado. Num regime comunista, onde era suposto a existência de fortes laços comunitários, a vida humana é atomizada e os homens apenas possuem laços muito ténues, efémeros, passageiros, como o próprio título do romance sublinha.

Esta atomização do mundo da vida resulta da corrupção moral da sociedade soviética derivada da ausência de liberdade e de um Estado planificador todo-poderoso. A corrupção moral é dada pelo clima de denúncia instituído, pelas cedências que as pessoas se sentem obrigadas a fazer para poderem singrar na vida. Num espaço político em que o Estado tudo controla, a moral é reduzida a um jogo ardiloso de sobrevivência à custa da negação dos princípios de lealdade com os amigos, de respeito pelo outro e por si mesmo. Este clima moral tem como principal vítima a liberdade. A liberdade mais básica é aniquilida se temos medo do vizinho, do colega de escola ou de trabalho, do familiar, se se correm riscos de ver transformado um conflito pessoal num crime político, devido ao mecanismo da denúncia instituído. Uma ausência de liberdade tal que transforma a voz num mero sussurrar.

Na trama romanesca, Vassili Grossman dá-nos a ver o resultado terrível de uma sociedade planificada. Aquilo que poderia ser uma opção meramente económica entre uma economia de mercado e uma economia do plano (esta seria, defendia-se, uma forma de eliminar a irracionalidade do capitalismo) transbordou para a própria vida social na URSS. Não apenas a produção e distribuição de bens obedecia ao plano quinquenal, mas toda a sociedade estava sujeita à planificação. O próprio terror das purgas estalinistas do anos trinta, de que o protagonista é vítima, bem como a morte de milhões de camponeses ucranianos (a narrativa destes casos é um dos grandes momentos do romance), nas fomes de 1932-33, são planificadas, obedecem a uma decisão e a um objectivo político previamente determinado. Uma sociedade do plano não significa apenas a intrusão do Estado na vida dos homens, o aniquilar da sua liberdade. Significa também a sua redução a zero. E se cada ser humano é um zero, o seu assassinato é irrelevante.

O romance combina narrativa e ensaio, mas este não é um acrescento aos acontecimentos, mas o resultado da reflexão a que o próprio Ivan Grigorievitch é conduzida pelas suas experiências existenciais. Não é um filósofo que teoriza, mas um homem marcado pela vida que medita. Medita sobre o quê? Sobre a relação adversa entre a Rússia e a liberdade, sobre a longa tradição de servidão. Estaline não perverteu a obra de Lenine, não. Estaline foi o fiel continuador do leninismo e da determinação dos brilhantes bolcheviques que fizeram a revolução de Outubro. Estaline não é a causa, é apenas mais um. A figura de Lenine merece uma longa meditação por parte de Grigorievitch. O dirigente da revolução de Outubro é um homem dúplice. Alguém que nas relações pessoais é bondoso. Um homem culto e ocidental, mas absolutamente impiedoso e incapaz de escutar as razões do outro quando se trata de assuntos de poder. O autor poderia ter integrado Lenine na leitura que Maquiavel faz no Príncipe, mas opta por o colocar na longa tradição de despotismo e servidão russos, encarnados na relação dos homens com a Igreja Ortodoxa e o Czarismo. Com isto, abre o caminho para tornar patente que a revolução bolchevique de 1917 acabou por ser um corte com a janela de liberdade que tinha sido aberta no século XIX com o fim da servidão e em 1917 pela revolução de Fevereiro. Acabou por ser uma continuação do despotismo czarista por outros meios. O que interessa ao romancista Vassili Grossman é menos a meditação sobre o poder mas a interrogação sobre a liberdade e a sua trágica falência na Rússia. Liberdade essa que é o princípio fundamental de toda a existência humana digna desse nome e também de toda a arte. Liberdade que não passava de um mero desejo perante a longa e férrea tradição do despotismo russo.

Vasili Grossman (2013). Tudo Passa. Alfragide: D. Quixote. Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra. 

2 comentários:

  1. Os Estados são aquilo que os homens que os dirigem querem que eles sejam ou não. Figuras como Estaline, Hitler, Mao, Pol Pot e outros "menores", criaram universos concentracionários, para aprisionar e exterminar milhões de pessoas.
    Mas é preciso não ignorar que, por exemplo, os neoliberais, que dizem que não gostam do Estado, também destroem populações, ainda que de maneira civilizada, sem necessitar de Gulags, Ghettos ou Killing fields.

    Um abraço

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    1. O Vassili Grossman não teve a experiência do neoliberalismo. Também não esteve no Gulag. Viveu na URSS e viu a sua grande obra, Vida e Destino, ser proibida. Não é pouco. Por outro lado, os neoliberais amam perdidamente o Estado, desde que os favoreça e aos seus negócios.

      Abraço

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