Pedro de Berruguete - Bessarion (1476)
Um texto novo a intercalar nos cadernos do esquecimento provenientes do meu antigo
blogue averomundo.
Cheguei sempre tarde a tudo. Não é um problema de pontualidade, mas de
anacronismo. Sou anacrónico, completamente. Por exemplo, a minha geração viveu
embevecida com o rock. Para dizer a
verdade, nunca consegui gostar de rock.
Tentei, confesso que tentei, mas o meu anacronismo congénito nunca me deixou.
Preferia ouvir música francesa, coisa que ninguém digno de consideração fazia
nesses dias. Passaram por aqui, há dias, os Rolling Stones e um frémito de nostalgia correu
país fora. Não consegui perceber a emoção. Não me consigo transferir para os
corações derretidos por tais memórias. Sou anacrónico e isso é o pior que pode
acontecer a uma pessoa que vive nos dias de hoje.
Mesmo numa área tão excêntrica como a filosofia ser anacrónico
tornou-se sinónimo de estar excluído. Gosto de ler aquilo que me cai em frente
dos olhos sub specie aeternitatis, isto
é, como se fosse uma verdade eterna, a qual se manifesta, na leitura, para mim.
Isto revela, porém, a mais pura insensatez. Não há verdades eternas e a ciência
faz-se através de um progresso histórico, como se a verdade precisasse da
demora do tempo e do esforço aturado das gerações para se dar a conhecer. Ora
para que serve uma verdade que apenas está disposta a despir-se para o último
dos homens dormir com ela, recusando-se a todos outros, mostrando-lhes, quanto
muito, mais um milímetro da coxa? Nada de particularmente excitante.
O meu anacronismo é uma revolta contra o espírito dos tempos modernos
e dos seus sacerdotes, os cientistas, as gentes da moda, os vendedores de novidades, os empreendedores. Acreditam no progresso em direcção à
verdade e à felicidade, crêem na superação – dialéctica ou não – dos estádios anteriores, e,
humildemente, aceitam a tenaz disciplina da razão para assim contribuírem para
a futura vitória do conhecimento e do bem-estar. Tomado por um egoísmo execrável, pergunto-me:
para que serve a futura grande vitória da ciência se eu já estarei morto, se já
estaremos todos definitiva e irremediavelmente mortos? Compreendo muito bem o
monge copista medieval na sua tarefa de preservar as verdades eternas, ou um
erudito do Renascimento e os seus múltiplos cuidados filológicos para devolver a
pureza dos textos onde a verdade se oculta. Gosto de ler Homero, Platão, Aristóteles ou
Ésquilo como se não houvesse amanhã, nem superações, nem tempo, nem história,
nem progresso. Pego nos romances ou nas obras de hoje desse modo, mas já não há
quem queira escrever sub specie
aeternitas. Os modernos adiaram a verdade e a vida para quando estivermos
todos mortos. Não tenho remissão.
Quase que me identifico com o primeiro período do texto. Assumo que nunca interiorizei o rock em toda a sua influência na música contemporânea.
ResponderEliminarAlgumas excepções não têm relevância, Fui e ainda sou um Francófilo, musicalmente e não só.
Um abraço
A música francesa ainda a oiço, embora já não seja a minha praia. Quanto a França, a coisa já teve melhores dias. A muitos níveis, diga-se.
EliminarAbraço