domingo, 18 de maio de 2014

Sem-abrigo

Joe Reilly - Homeless hands on Thanksgiving Day (aqui)

Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este texto pertence a uma série denominada cadernos do esquecimento. Texto de 18.12.2009.

Está ali, 30 anos depois de o ter conhecido. Na altura, dava-lhe talvez uns sessenta anos. Era um excesso, certamente motivado pela juventude do meu olhar. Naqueles tempos, era a personagem mais altiva que conhecia. Nunca conheci ninguém, mesmo depois, tão altivo, arrogante, de uma pesporrência sem fim. Usava a frieza do olhar azul para colocar o mundo à distância, combinava a estranheza do saber com o sangue de família para esmagar pessoas como se fossem mosquitos. Os anos passaram, e essa personagem desapareceu, aliás rapidamente, do meu horizonte. Não que a tenha esquecido. Talvez a sua estratégia fosse a de ficar na memória dos outros pela sobranceria do comportamento. Voltei a vê-la há dias. Discurso ainda articulado, mas tudo o resto se tinha desvanecido. Numa conferência, lá estava na assistência, agora para mendigar uns minutos de tempo de antena. Até aquele momento nunca tinha conhecido um verdadeiro sem-abrigo.

2 comentários:

  1. Um metáfora poderosíssima. E assim que quero comentar, mesmo que não seja essa a mensagem inicial, porque abrigo pode ser ética, moral, pudor, respeito.

    Boa semana

    Um abraço

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    1. Foi uma experiência penosa, lembro-me, a de assistir àquele triste espectáculo, ao desespero de alguém que queria vender um produto que já ninguém comprava.

      Boa semana,

      Abraço

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